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Entrevistas

Entrevistas

A educação dos jovens: a escola e seus atores

Jaqueline Deister, bolsista de jornalismo do Observatório Jovem do Rio de Janeiro/UFF (O.J./UFF), entrevistou o pesquisador  Juarez Dayrell, coordenador do Observatório da Juventude da UFMG e professor da Faculdade de Educação. A entrevista aconteceu no mês de setembro, em Niterói, e tratou da relação entre os jovens e a escola de ensino médio

 

 

O que eu acho dessa história de “Pacto pela juventude" lançado pelo CONJUVE.

Pacto, na minha experiência, é coisa de organismo internacional, coisa de Unicef, por exemplo, um daqueles inventos dos "comunicadores" das organizações que têm como efeito organizar um bocado de eventos onde o prefeito ou outro "político" pode chamar os holofotes, a imprensa e o marketing, para falar bonito, "juntar a sociedade", todas as forças políticas e sociais para mostrar um grande "consenso" porque, como se diz, a questão da criança (ou da juventude, dá na mesma) é "suprapartidária", então, todos podem se juntar nesse grande esforço nacional em favor da juventude
Todos podem aderir ao pacto; desde o político corrupto, que assim tem a oportunidade de lavar publicamente sua alma, até o empresário com "responsabilidade social" que por um lado explora seus trabalhadores (jovens e pais dos jovens), ou pior, reprime com a violência greves e ocupações de terras, e por outro lado aparece em público para mostrar sua adesão ao grande "Pacto" que irá salvar a juventude. (Aqui é preciso abrir um parêntesis para dar os Parabéns  aos companheiros da “Viração”! Os únicos, que eu saiba, que tiveram a coragem de recusar um financiamento de uma dessas empresas "com responsabilidade social", a Votorantim, e escrever uma carta pública para explicar seu gesto).

Essas grandes manifestações de “consenso” nos lembram que, infelizmente, a influência de Habermas sobre a sociologia e a política brasileira, e em particular sobre os militantes dos movimentos, foi bem significativa, e todos ficamos achando que sempre é possível, desejável, aliás, indispensável, fazer política por consensos .... assim se ocultam os conflitos, ou se deslegitimam, ou se desautorizam, conflitos que são, como nos ensinam filósofos da política como H. Arendt, Rancière, Chantal Mouffe, constitutivos da política, aquela com o “P” maiúsculo.

Aos promotores desse “Pacto” queria perguntar: porque, apesar desse grande interesse da sociedade brasileira pela "questão da juventude" hoje, como diz Marcio Pochmann, de cada 10 postos de trabalho que se criam no Brasil (e, graças ao recente "boom econômico" hoje no Brasil estão se criando muitos postos de trabalho), só 1 vai para os jovens? Por que se gasta tanto dinheiro com programas emergenciais que viram permanentes, que aprisionam os jovens em lugares fechados, em cursos de formação de baixíssima qualidade, que prometem, prometem, miragem de qualificação, certificação, ingresso no mercado, e todos sabemos que nada disso acontece? Soube, por exemplo, que na Bahia os jovens egressos do Pro-jovem nem conseguem ter acesso ao ensino médio, porque a escola não reconhece o diploma do Pro-Jovem.

Porque não se constroem equipamentos de cultura e lazer, gratuitos, bonitos e em número adequado às necessidades da grande quantidade de jovens que há nesse país (semana passada fui visitar o CCJ aqui em São Paulo, um espaço bonito, enorme, que nas intenções deveria acolher 2000 jovens por dia, mas, na prática, nos momentos de pique, durante os shows, consegue juntar 300 ... e não tem espaço para fazer esporte, para não "contaminar" a cultura com o barulho da "paixão nacional") e no lugar disso se espalham precários "pontos de cultura" para cada um se virar na construção de seu espaço? Porque o grosso do dinheiro do governo vai para o Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), programa que combina de forma magistral três ingredientes: repressão, prevenção, e promoção da juventude, e a gente não olha para isso, não discute sobre isso, não reflete ...

Bem, os "especialistas" em juventude dirão que tudo isso acontece porque a "questão da juventude" é muito nova na sociedade brasileira, faz muito pouco tempo que entrou na agenda, por isso precisa amadurecer.

Eu acredito, e não sou a única, que se não conseguimos criar efetivos espaços públicos de conflito essa questão passará de moda em breve sem deixar rastros .... ou aliás, deixará, sim, na vida de uns quantos políticos que construíram a sua carreira encima disso, e de umas quantas ONGs que conseguiram lucrar com isso ...

Os comentários sobre o Pacto que circularam na lista do FNMOJ (Fórum Nacional de Movimentos e Organizações Juvenis) ressaltaram o fato que o CONJUVE, com o lançamento desse “Pacto” quer pegar carona do sucesso da Conferência Nacional (cujo sucesso não se deu, em nada, à participação do CONJUVE e dos Conselheiros, muito pelo contrário ...) e tentar se legitimar de alguma forma (porque, de fato, esse Conselho está muito pouco legitimado, tanto pela sua forma e composição, como pelo seu modus operandi e, até agora, não mostrou para o que veio), apoiando e tentando divulgar as resoluções da Conferência. E que, infelizmente, essas formas da política estão fazendo escola, e pelo país estão se espalhando Conselhos sem legitimidade nem força política para funcionar, controlar, fiscalizar, e “Planos estaduais” copiados de algum documento de circulação internacional, que listam um bocado de demandas, mas não comprometem os governos com nenhuma ação concreta.  

Será que não é hora de deixar de lado esses papos de “consenso”, parar de gastar energias em conselhos e outras instâncias de “participação” que mais aprisionam do que fortalecem os movimentos sociais, e voltar a denunciar, reivindicar, ocupar as ruas, explicitar os conflitos?

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Saiba mais sobre o "Pacto pela Juventude"

Os jovens e o ensino técnico

O Observatório Jovem entrevistou Gaudêncio Frigotto, pesquisador das relações entre trabalho e formação humana e políticas públicas em educação profissional, técnica e tecnológica. Gaudêncio é professor do Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ) e professor titular colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF

Observatório Jovem (OJ): Recente estudo coordenado pelo economista e presidente do Ipea, Márcio Pochmann, mostra que existem 424.083 trabalhadores disponíveis no comércio para 430.833 vagas existentes, o que dá uma sobra de 6.750 postos. Na indústria, o número de trabalhadores disponíveis soma 329.035, para 445.628 postos, o que representa um déficit de 116.594 trabalhadores. Segundo Pochmann, é paradoxal que faltem trabalhadores qualificados em um quadro de excedente de mão-de-obra. As análises decorrentes dos dados apontam, então, para a necessidade de se repensar a política de emprego no Brasil, isso incluindo o investimento na qualificação de novos trabalhadores através do ensino técnico.

(fonte: O GLOBO - RJ - 8/11 - Só 18% dos que buscam emprego têm qualificação).

O aumento da qualificação profissional dos jovens trabalhadores resolveria o problema? Não faltariam vagas, caso houvesse uma qualificação em grande escala? O que é verdade e o que é mito neste debate?

Gaudêncio Frigotto: No atual debate sobre esta questão estamos diante de uma aparente contradição. Por um lado faltam jovens qualificados como mostram os dados acima, mas, por outro, como evidencia em entrevista recente o mesmo Márcio Pochmann, o Brasil perde anualmente cerca de 160 mil trabalhadores, a maioria de jovens que migram para países dos centros hegemônicos do capitalismo. Estes jovens são os melhores qualificados. Na expressão de Pochmann trata-se do biscoito fino no olho gordo do mundo. A explicação desta aparente contradição ou deste paradoxo não é alcançada pelo pensamento liberal de viés linear, fragmentado e funcionalista.  Somente uma análise histórica, que nos é dada por autores como Caio Prado Junior, Florestan Fernandes, Francisco de Oliveira, Leda Paulani, entre outros, permite entender que isto resulta do tipo de projeto societário pelo qual burguesia brasileira optou. Um projeto de desenvolvimento desigual e combinado onde, como assinala Francisco de Oliveira, o analfabetismo, a pouca e fraca escolaridade, a lata informalidade do mercado de trabalho, etc, não são entraves a esse tipo de opção, mas a sua condição de ser. Uma sociedade que produz a desigualdade e se alimenta dela.

As reformas neoliberais da década de 1990 acabaram por radicalizar esta opção assumindo de forma ainda mais enfática as mazelas apontadas por Caio Prado: o mimetismo ou cópia, o endividamento externo e a assimetria predatória e absurda entre os ganhos do capital e dos trabalhadores. É deste processo que resulta, como analisa Leda Paulani, a reiteração de um projeto societário rentista e financista e que, na divisão internacional do trabalho, afirma a opção dominante pelo trabalho simples e de baixo valor agregado.
A sobra é dos melhores qualificados que, tanto por razões de preconceito com o trabalho técnico, sobretudo da "classe média", resultante do estigma escravocrata, quanto pela remuneração, preferem migrar para países onde remuneram o trabalho simples igual ou mais que o trabalho complexo aqui no Brasil. Aos jovens filhos de trabalhadores historicamente lhes é negada escolaridade básica em quantidade e qualidade. Com efeito, apenas 46% dos jovens têm acesso na idade normal ao ensino médio e destes 60% fazem em horário noturno  de forma precária. Por outro lado, o Sistema S, que ganha compulsoriamente do fundo público cerca de 5 bilhões de reais ao ano, a partir de meados da década de 1980, de forma aberta e em certo sentido cínica, optaram por se transformar em unidades de negócio vendendo cursos que a maioria dos jovens não podem pagar.

Quem optou e produziu o apagão educacional e de qualificação foi a burguesia brasileira e não os jovens  da classe trabalhadora e seus pais. A reclamação da falta de escolaridade e de qualificação dos empresários, políticos e intelectuais da classe dominante brasileira é profundamente cínica.
 
OJ: "Profissionalização de alunos em nível médio" ou "Direito à qualificação técnico-profissional de jovens trabalhadores"? Qual o real destino do ensino técnico? Pensar de uma maneira ou de outra faz diferença?

Gaudêncio: Sem educação básica, isto é, aquela que fornece os fundamentos para entender a vida social, cultural política e, ao mesmo tempo, a física, a química, a matemática, a biologia, etc, não se tem profissionalização de qualidade. Tem-se adestramento. E, também, não se tem cidadania real. Tanto a educação básica, quanto, integrada a esta, a educação profissional são um direito social e subjetivo e uma necessidade para acompanhar e analisar as mudanças que os próprios seres humanos introduzem nos processos produtivos e na vida social, cultural e política.

Como assinalei acima, a burguesia brasileira historicamente negou a escolaridade básica e, como conseqüência, a formação profissional efetiva à maioria dos jovens e adultos trabalhadores. Além disso, sempre lutou por uma educação unidimensional - a que serve ao mercado e ao capital. Uma educação ou  adestramento, polivalente, cujo objetivo é formar trabalhadores, como lembra Carlos Paris, que façam bem feito o que se lhes manda fazer e que pensem que a eles não compete discutir política, cultura arte, etc.

Para os trabalhadores e educadores que atuam  nos deferentes espaços da sociedade e na escola e que têm uma visão crítica às relações sociais capitalista compete lutar, no plano teórico e  da prática, por uma educação que desenvolva todas as dimensões do ser humana. A isso denominamos uma educação omnilateral ou politécnica.  Por isso, pensar de uma maneira ou de outra faz uma diferença radical. Ou seja, de  reproduzir  e legitimar a exploração e alienação ou de combate-la e, de dentro desta sociedade, buscar superá-las.

OJ: Muitos jovens que se encontram no ensino técnico associam as atividades acadêmicas do curso com um trabalho remunerado. As razões para isso estão relacionadas à busca do aumento de renda familiar, assim como de autonomia financeira e maior liberdade para o jovem. Essa aproximação dos  estudos com o mundo do trabalho traz que conseqüências? É saudável ou  proveitoso para o jovem trabalhar e estudar?

Como sinaliza a questão, estes jovens buscam precocemente inserir-se no mercado de trabalho por que necessitam. E necessitam não só economicamente, mas também por razões culturais e psico-sociais. Mas isso representa uma dupla violência e mutilação. Primeiro porque acabam fazendo uma educação básica truncada e de baixa qualidade. Segundo porque são  explorados no mercado de trabalho. Seria mais justo e econômico para a sociedade, como aponta uma vez mais Márcio Pocmann, dar a esses jovens uma renda mínima em forma de bolsa. Justo porque a educação básica plena é constitucionalmente garantida e com efeitos positivos duplos na economia. Empregaria perto de  seis milhões de adultos no lugar destes jovens e  estes, ao se integrarem  ao mercado de trabalho  responderiam às exigências técnicas do sistema produtivo. Mais que isso, se integrariam como cidadãos com bases para discutir o destino da sociedade.

Mesmo na negatividade desta inclusão precoce, todavia, estes jovens têm vantagens em relação aos jovens que crescem, na expressão de Antônio Gramsci, como mamíferos de luxo. A luta, entretanto, é na direção de uma sociedade que onde o vínculo com o trabalho se dê na perspectiva do trabalho como principio educativo e não pelo trabalho alienado. Vale dizer também que permitir que toda a criança e jovem possam socializar-se é um dever da sociedade, assim como o direito ao trabalho. A sociedade de classes mutila e lesa, de forma diversa, a uns e a outros. Aos  filhos dos trabalhadores pela negação a escolaridade integral e pela exploração e, aos mamíferos de luxo,mediante uma socialização que os aliena e os produzem seres humanos que naturalizam a exploração. Humanamente, por mais que pareça paradoxal, perdem menos os filhos da classe trabalhadora.
 
OJ: É comum se falar que os jovens de hoje vivem num mundo no qual a  identidade profissional está em crise. A exigência de capacidades para  assumir múltiplas funções profissionais e a falta de herança profissional nas famílias é visto como um problema. Qual o lugar do Ensino Técnico nesse contexto?

Gaudêncio: A identidade profissional efetivamente está em crise e esta crise está associada às mudanças dos processos produtivos e as formas organizacionais daquilo que a literatura crítica denominou de produção flexível. Este novo contexto de crescente  incorporação de ciência e técnica aos processos produtivos (capital morto), agora sob uma nova base tecnológica digital-molecular exacerba  o desemprego estrutural e desloca a concepção de qualificação e de profissão. Conseqüentemente também fica combalida a identidade profissional. As noções de competência e de empregabilidade expressam esta metamorfose conceitual e encontram sua expressão concreta no ideário de trabalhador polivalente e flexível. Também, no plano ideológico, se busca apagar a identidade de classe ou de categorias profissionais vinculados ao sindicato. O empregável é o indivíduo portador de um conjunto de competências lidas pelo mercado como desejáveis. Uma espécie de trabalhador just-in-time que tem que fazer  bem feito aquilo que se lhes pede. E o que se lhes pede não é somente formação técnica adequada, mas também adesão afetiva à empresa. O tempo de permanência na empresa é até que responda à necessidade daquele processo produtivo.  Para os não empregáveis resta-lhes o ideário do empreendedorismo ou a busca de ser patrão de si mesmos. Produz-se uma situação de provisoriedade permanente. Como aponta Richard Sennett,  elimina-se a possibilidade de  planejar o longo prazo.
 
Neste contexto o ensino técnico tem sido alvo de um intenso embate na sociedade brasileira, mormente nas últimas quatro décadas. Um ensino técnico adaptativo a esta lógica destrutiva do sistema capitalista ou, de dentro dela a luta para  dar aos jovens elementos de formação técnica, social e política de sorte que os prepare para entender esses processos e, na mediada  de sua organização e disposição de luta, reduzir os processos de exploração e alienação. O balanço que várias pesquisas apontam sobre o tema e, dentre estas, quatro projetos que coordenei sobre o tema, nos indicam uma relação orgânica do Estado com os interesses imediatos do mercado e das organizações empresariais. Todavia, estas mesmas pesquisas  assinalam que quando se  têm projetos educativos que buscam uma formação técnica, social e política integral, os jovens têm maiores chances de inserção no mercado de trabalho e, também de lutar pro seus direitos.

Na verdade a grande luta é para que todos os jovens, independente de sua origem social, possam ter uma educação básica (fundamental e média) que, ao mesmo tempo articule o específico ao geral, o técnico ao social, cultural e político. A isso que denominamos de educação e/ou formação unitária,  omnilateral, integral, politécnica ou tecnológica.

OJ: Os jovens que ingressam no Ensino Médio Técnico, quando comparados com seus colegas que cursam o Ensino Médio propedêutico, parecem ter outra relação com a expectativa de cursar o ensino superior. Em alguma medida as aprendizagens e experiências tidas no ensino técnico favoreceriam a construção de uma mentalidade com outras prioridades que não a formação em nível superior.Você concorda com esta percepção?

Gaudêncio: Somos uma sociedade que tem na sua estrutura constituinte  a cultura do coronel e do bacharel. Ambas herdeiras da cultura escravocrata.  A primeira reitera a violência direta e truculenta com o trabalhador e a segunda pelo desprezo com o trabalho manual e técnico. Estas duas marcas se reforçam e fazem com que a classe média busque para seus filhos as escolhas que melhor preparam para o ingresso no ensino superior. Se estas escolas forem , como tem sido no Brasil, a  Federal de Ensino Técnico e tecnológico,disputam estas vagas, não para  buscar os empregos técnicos, mas para ter mais chances de ingresso na Universidade nos cursos de maior prestígio social. Este ideário também atinge os jovens da classe trabalhadora, embora, sem dúvida com menor intensidade , pois a necessidade os empurra ao mundo do trabalho precocemente.  A busca do ensino superior para estes se vincula, entre  outras razões, não só pelo prestígio mas porque o acesso ao ensino fundamental e médio não garantiu para estes jovens o  seu déficit  de escolaridade, cada vez maior, mesmo para ocupações que um nível superior não seria necessário.

As mudanças de prioridade podem estar ocorrendo mas certamente de forma lenta. Várias reformas de ensino, como aponta Luiz Antônio Cunha em suas pesquisas, tiveram nitidamente a intenção de retenção à demanda por ensino superior. O decreto 2.208/97, já extinto, tinha claramente esse objetivo.

OJ: Os CEFETs são, inegavelmente, escolas de ensino técnico de excelência no Brasil. Entretanto, os dados indicam que negros e pobres são minoria nessas escolas públicas que reproduzem a desigualdade de acesso à educação pública e de qualidade que encontramos no nível superior. Não estaríamos diante da necessidade da formulação de políticas de ação afirmativa também para os CEFETs?

Gaudêncio: Para quem acompanha há três décadas as mudanças no ensino técnico federal certamente tem a sensação de um processo contínuo de elitização por um lado e, por outro, reforçando o primeiro, de abando-no  progressivo do ensino médio.  Assim é que paulatinamente a Rede  de Escolas Técnicas Federais que representavam, junto com outras poucas escolas públicas, o reduzido ensino médio público de qualidade, foram se transformando em Centros Federais de Educação Tecnológica. A forma que se deu este processo é emblemática para  demonstrar nossa postura de culto ao bacharel . Inicialmente foram sancionadas três Escolas Técnicas ao nível superior. Tratava-se das escolas melhor estruturadas e com mais larga tradição. Mas no governo José Sarney, usando de sua prerrogativa de Presidente da República, alçou  Escola Técnica Federal do Maranhão a Centro  Federal de Educação  Tecnológica (CEFET). Essa medida  foi o sinal verde às pressões políticas que desembocaram na transformação, por decreto, de todas as Escolas Técnicas Federais, em Centros Federais de Educação Tecnológica.  Aos poucos o ensino médio foi secundado e foram se desenvolvendo cursos de licenciatura de nível superior, muitos deles de duvidosa qualidade como mostram  várias avaliações

No Governo Fernando Henrique Cardoso, foi dado golpe de misericórdia ao ensino técnico de nível médio pelo Decreto 2.208/97, acima mencionado, mediante o qual separava a educação média propedêutica do ensino técnico de nível médio. Este último poderia ser feito como pós-médico ou concomitante. A pressão para reduzir e paulatinamente extinguir o ensino médio integrado.

Ainda no governo Fernando H. Cardoso se montou o primeiro projeto de Universidade Tecnológica  do CEFET do Paraná . Em 2005 o CEFET  Paraná foi alçado a Universidade tecnológica. Na mesma lógica e dentro da cultura do bacharel, começo uma pressão enorme para a criação de várias universidades tecnológicas.  Por diferentes razões, dentre elas econômicas, mas não só, o governo  assinalou que apenas alguns CEFETs teriam condições de  efetivamente concorrer a esse pleito. O caminho da pressão política e corporativa foi de ir pelo atalho criando os IFETS, Institutos Federais de Educação Tecnológica, equivalentes à universidade.  O grifo é para  perguntar: por que já não Universidade Tecnológica simplesmente?  Mais uma vez a artimanha política que tirara do governo a obrigação de dar estrutura de universidade, mas garante ao dirigente máximo o título de  Reitor equivalente.

Mostrei este processo para evidenciar de que o ensino médio técnico nesta rede será ínfimo onde quer que permaneça, se permanecer... E depois a burguesia brasileira reclama do o apagão de técnicos qualificados.
 Por isso penso que inicialmente cabe uma pressão para que esta rede não só priorize o ensino médio técnico integrado, o amplie e se constitua em base de apoio para as redes Estaduais e Municipais de Educação. O próprio governo tem exemplos de como isto poderia mudar o perfil da formação técnica. A Escola Técnica Joaquim Venâncio, da FIOCRUZ, faz ensino médio técnico integrado de excelência, coordena e apóia nacionalmente redes de escolas técnicas na área de saúde. Concomitantemente, sem dúvida, a disputa é para quem tem prioridade freqüentar estas escolas. Nesse particular, várias  têm experiências de acesso que dão prioridade aos alunos  de escolas públicas . Trata-se de assumir isso como uma política pública afirmativa e ampliá-la.  

OJ: Em linhas gerais, como você avalia as atuais políticas públicas do Governo Federal e dos Estados para o ensino técnico no Brasil?

Gaudêncio: Nos primeiros três anos do atual governo, junto com vários colegas de Universidade, participei diretamente da discussão dos rumos do ensino médio técnico. O primeiro movimento foi de dar base para  a revogação do Decreto 2.208/97 e promover uma nova  medida legal para restaura o ensino médio integrado. O leitor que queira se aprofundar no entendimento  desse processo pode consultar o pequeno livro organizado por mim, Maria Ciavatta e Marise Ramos: Ensino médio Integrado: concepção e contradições. São Paulo, Cortez, 2005.  O Decreto 2.208/97 foi revogado e em seu lugar veio do Decreto 5154/04 restaurando o ensino médio integrado. Esta restauração, todavia, que poderia ser uma travessia para uma reformulação mais profunda da legislação educacional, pelo fato do governo não assumir o projeto longamente discutido ao longo da década de 1990 pelos educadores e suas organizações, caiu no vazio e as mudanças se tornaram pífias por um duplo movimento. Primeiramente  o governo delegou ao Conselho Federal pensar a regulamentação do Decreto 5154/04. O que ocorreu é que  o legislador deste Decreto foi o mesmo do Decreto 2.208/97. Assim deixou-se em aberto para que se continuasse como estava ou se mudasse.  Como o governo nem mesmo induziu a rede federal a retomar o Integrado, o que prevaleceu foi  a manutenção do status quo. A tendência da Rede Federal de CEFTs ou IFETS, ou Universidades Tecnológicas é de priorizar o ensino superior e a pós-graduação.

Nos Estados, fora daqueles que já tem uma larga tradição de educação técnica profissional, apenas o Paraná  assumiu, com recursos próprios, a restauração do ensino técnico profissional integrado.  Um dos campos que o atual governo esta ampliando á criação de novos  Centros de Educação Tecnológica. Esse esforço é, na minha avaliação importante. Todavia, se não se lhe der direção política de projeto filosófico e pedagógico, esse esforço será refém da esperteza política e do espírito corporativo. As últimas mudanças que têm ocorrido na Secretaria de Educação Tecnológica parecem apontar nesta direção. Lamentavelmente, a despeito de  avanços que se possa perceber, o atual governo é refém da falta de um projeto societário mais claro que afirme, além das políticas distributivas e compensatórias, reformas estruturais. A  política educacional é caudatária desta  ausência.

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Entrevista com Marina Garcia e Guilherme Ferreira - estudantes da Escola Politécnica da Fiocruz

A Educação técnica: Para que e para quem?

Entrevista com Marina Garcia e Guilherme Ferreira - estudantes da Escola Politécnica da Fiocruz

Marina de Freitas Garcia e Guilherme Santana Ferreira são alunos da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz (E.P.S.J.V.), Rio de Janeiro. Ambos acabam de passar para o terceiro ano no Laboratório em Biodiagnóstico em Saúde, que cursam junto com o ensino médio, na própria escola politécnica.

Os dois são membros do grêmio da escola e puderam falar tanto dos aspectos do ensino, da estrutura, como da participação estudantil nas decisões da diretoria

Observatório Jovem: Que diferenças vocês vêem entre o estudo de vocês e o estudo de quem cursa uma escola de ensino médio propedêutico?

Marina de Freitas Garcia: A primeira diferença que eu vejo é o tempo que a gente fica aqui. A gente fica aqui de 8h ás 17h e isso consome muito, a gente tem que chegar em casa e estudar tanto para o ensino médio quanto a para o ensino técnico. A outra diferença que eu vejo aqui, não só para o ensino médio normal quanto para outros ensinos técnicos é o contato que a gente tem com a pesquisa, pelo fato de ser uma instituição de pesquisa. No final do terceiro ano a gente tem que apresentar uma monografia, tem que ter orientador, a gente tem aula do projeto... Esse é, pra mim, o grande diferencial da escola...

O.J.: E a diferença entre sair do ensino fundamental e ingressar no ensino técnico?

Guilherme Santana Ferreira: (Diferença) sempre tem, né? Porque o ensino técnico exige uma responsabilidade bem maior do que o ensino básico. Principalmente aqui. Você deixa de estudar de manhã ou de tarde para estudar o dia todo; já é o primeiro choque, no primeiro dia de tarde você já está cansado, você já não agüenta mais ficar aqui. Depois, porque é uma maturidade que você tem que ter pra pensar que aquilo que você tá aprendendo você de fato vai precisar, porque quando você tá no ensino fundamental você pensa: ah, o que eu tô perdendo aqui eu posso recuperar depois, tem coisa que eu nem vou usar... Então você nem dá tanta atenção assim ao que você aprende. No ensino técnico não, porque no final vai ser uma profissão que você vai estar exercendo.

O.J.: Com aula de oito às cinco, vocês têm tempo de trabalhar?

Marina: Não. A grande maioria dos alunos que faz o ensino médio integrado com o ensino técnico já sabe que não vai dar para trabalhar. Agora, tem os alunos que fazem o curso concomitante (ensino médio em outro colégio e o ensino técnico aqui na FIOCRUZ) e os alunos que fazem o curso subseqüente (que já terminaram o segundo grau e só vêm fazer o técnico).

Guilherme: Os alunos do subseqüente normalmente trabalham...

Marina: Mas assim, a nossa realidade como estudante de ensino médio e estudante de habilitação técnica é assim: a gente não tem como mesmo (trabalhar)...  O colégio consome a gente...

Guilherme: Nem se precisasse...

O.J.: E vocês acham que quem precisa trabalhar é “peneirado” pela escola ou ela dá estrutura para a pessoa se manter aqui?

Marina: Olha, quando a gente entrou (somos do primeiro ano das cotas de 50% para escola pública) a escola ofereceu uma bolsa de auxílio.

O.J.: Qual o valor da bolsa?

Marina: Na turma de 2006 era o valor de 144 reais. Hoje, por uma questão de corte e até de prioridade do colégio para a contratação de novos profissionais (a escola será ampliada a partir do ano que vem) o valor base é de 72 reais, mas os estudantes que requererem a bolsa de demanda social passam por uma comissão e podem receber o valor integral, de 144 reais.

Guilherme: Eu acho que ele tava perguntando, Marina, é se gente pobre consegue entrar na escola...

O.J.: Já que você tocou no assunto: gente pobre consegue entrar na escola?

Guilherme: Eu acho que qualquer processo de seleção no Brasil hoje é extremamente discriminatório. Tem uns guerreiros que fazem das tripas coração e entram.

Marina: Principalmente aqueles que precisam trabalhar, ajudar (em casa).

Guilherme: O próprio número de vagas é muito limitado. Até nisso já existe uma forma de vetar entrada.

Marina:
Na nossa época as turmas eram só de 20 pessoas, então a relação candidato/vaga era de 70, quase oitenta para uma vaga.

O.J.: O valor de 72 reais é acertado por quem? Tem participação dos estudantes?

Marina: Teve. Como somos do Grêmio, chegamos a freqüentar alguns órgãos/instituições/ entidades de decisão... Tem o grêmio e todos os laboratórios do colégio têm assento nessas reuniões. Tem bastante curso aqui, o próprio diretor diz “não é só uma escola, é uma instituição que dentro dela tem uma escola”. A gente tem aqui pós-graduação, ano que vem vai ter mestrado. São muitas coordenações, muitos laboratórios que coordenam esse Conselho Deliberativo (C.D.), que é o órgão máximo das decisões e o grêmio tem assento no C.D..

Guilherme: Quando começou esse negócio de “de fato a gente vai ter que dar um jeito nessa bolsa porque não tem pra todo mundo” foi instituída uma comissão para ver como isso seria feito. Um integrante do grêmio (no caso eu) teve o direito de participar dessas discussões. Aí a gente foi fazendo essas discussões, a gente teve participação dos alunos, que foi até muito mais expressivo do que a gente achava que ia ser.  A gente achou que tava indo lá só pra dizer que tava indo mesmo, mas a gente conseguiu contribuir bastante, eles receberam, acho que de forma boa, o que a gente tava colocando. No C.D. a diretoria apresentou outra proposta, que era bem parecida com a inicial, a gente teve direito a voto como todo membro do conselho. Pelo menos por parte dos alunos teve uma participação bem legal.

O.J.: E com 72 reais dá pra fazer o quê?

Marina: Ajudar a comer e no auxílio de livros didáticos, paradidáticos. Mas a gente tem consciência que de fato é um auxílio.

Guilherme: Também porque primeiro a gente sabe que as pessoas aqui não precisam desse auxilio. A gente não tem ninguém muito necessitado que se não tiver esse auxílio não consegue continuar na escola. Mas o fato é que como a escola pede muito, as pessoas que têm uma condição legal acabam precisando em algum mês de uma ajuda e tal...

Marina: A própria bolsa é encarada pela gente não só como uma questão que a gente precisava pra alimentação, pra comprar materiais, mas a gente acabava usando pra comprar livros, pra ir aos passeios da escola. A gente tem uma viagem de integração no meio do ano, então, o pessoal que queria ir guardava o dinheiro da bolsa pra ir pra viagem. E aqui a gente também tem muita influência da parte da cultura, então cinema, teatro, a gente acaba que vai muito e essa parte do dinheiro acaba ajudando a gente à sempre estar inserido nessa parte cultural.

Guilherme: É um incentivo...

Marina: Ajuda na própria independência do aluno. Aqui a gente não tem inspetor, não tem sinal. Quando a gente chega, eles falam: vocês chegaram aqui, então, ó, responsabilidade...

O.J.: Qual a relação de vocês com a universidade? Quem cursa o técnico tem vontade de cursar uma faculdade depois?

Guilherme: Acho que 99% das pessoas querem entrar pra faculdade. Tem uma pessoa da nossa sala que diz que não quer...

O.J.: Vocês acham que o colégio estimula vocês a entrar pra faculdade?

Guilherme: Não.

O.J.: Eles acham que “saiu daqui tá pronto pro mercado” ou encaminham pra faculdade?

Guilherme: Não, porque acho que é um colégio técnico, então ele tem que estar formando técnicos, então se espera que até os egressos daqui venham a ser técnicos. Além disso, não tem nada.

Marina: Era legal falar que o ensino médio da gente tem disciplinas que dão todo um respaldo para a formação técnica (filosofia, arte). Mas, essa questão do vestibular é muito discutida entre a gente. Primeiro: a gente não tem como se dedicar como um aluno do ensino médio normal a fazer um pré-vestibular. Tem gente que faz. A gente vai fazer ano que vem, a gente faz à noite, de meia noite as cinco a gente faz trabalhos estuda e faz monografia (risos). O vestibular não é algo que tenha ênfase, não tá nem no plano do colégio. Mas tá no nosso plano, de aluno.

Guilherme:  Acaba dando um pouco de conflito, porque a maioria das pessoas entra no colégio técnico pensando que aquilo vai ser uma alavanca prá universidade. A gente chega aqui e ouve: “Isso aí é por vocês, a gente não vai fazer absolutamente nada, a gente vai fazer o que tem que ser feito, o que se espera de um ensino médio”. O vestibular é uma das coisas que a gente mais discute aqui, tem aluno que fala que tal professor não dá base pro vestibular. Mas a nossa luta é por um ensino de qualidade, se o professor tal não prepara para a prova do vestibular, não tem problema, desde que ele dê uma aula de qualidade.
 
Marina: O ensino médio, embora alguns problemas que a gente possa apontar, comparando com outros colégios da rede estadual, até mesmo com outros colégios de ensino fundamental da rede municipal, é bastante satisfatório, mas se for comparar com colégios como o CEFET, você pode reparar que nossa infra-estrutura aqui é bem maior do que a deles.

O.J.: Que problemas vocês podem apontar no ensino daqui, tanto em relação ao técnico quanto ao médio?

Marina: Olha, o técnico seria até injusto se eu estivesse apontando alguma coisa. Só tem um, que não é do técnico, é da integração... Nosso curso (que faz o ensino técnico e o ensino médio ao mesmo tempo aqui na ESPJV) se chama integrado, só que a gente dificilmente consegue perceber essa integração. É um ponto que todos nós notamos. A gente espera que no próximo ano, que vai ter uma turma para cada habilitação, isso vá mudar... O ensino médio vai ter um currículo que vai se aliar ao técnico.

Guilherme: Porque, por exemplo, a gente vê coisa em química de manhã que a gente já viu no técnico. Essa questão de juntar vários cursos técnicos para cursarem o ensino médio junto atrapalha muito, porque tem que ver o que é melhor pra todo mundo, não acompanha a especificidade de cada curso. Tem que se optar pelo menos pior.

O.J.: E o mercado de trabalho?

Marina: A gente não é preparado para o mercado de trabalho. A gente é preparado para entender o que tá acontecendo e ajudar a melhorar, principalmente na área de saúde, junto com educação, a gente não sabe qual tá pior. A gente tem uma formação técnica que vai ser útil para o mercado... Engraçado, até para você ir contra o mercado você tem que ser inserido no mercado.

Guilherme: A gente tá inserido, mas não como objetivo último.

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5"A preocupação dos movimentos feministas com o público feminino juvenil vem aumentando". No mês da mulher o Observatório Jovem procurou Wivian Weller, autora de “A presença feminina nas (sub)culturas juvenis: A arte de se tornar visível“

No mês da mulher o Observatório Jovem procurou Wivian Weller, autora de “A presença feminina nas (sub)culturas juvenis: A arte de se tornar visível“. Wivian Weller é professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. É coordenadora do grupo GERAJU "Educação e políticas públicas: gênero, raça/etnia e juventude", no qual desenvolve pesquisas sobre os  temas: juventude, relações de gênero e étnico-raciais; culturas juvenis, educação e políticas públicas, metodologias qualitativas, tendo publicado diversos trabalhos em anais, livros e revistas de circulação nacional e internacional.

O tema da entrevista foi a mulher jovem, sua visibilidade e sua luta cotidiana.

Observatório Jovem – Os movimentos feministas da atualidade têm alcançado / alçado as lutas do público jovem?

Wivian Weller - A preocupação dos movimentos feministas com o público feminino juvenil vem aumentando, e as novas feministas já adquiriram um espaço importante, por exemplo, nas edições do Fórum Social Mundial em Porto Alegre ou no 10º Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho ocorrido em 2005 em Serra Negra (São Paulo).
 Algumas autoras e militantes feministas atestam certa “indiferença” das jovens-mulheres em relação ao feminismo ou às lutas feministas. Mas o modelo de Feminismo ou do Ser Feminista está mudando. Hoje muitas jovens não querem ser identificadas como feministas, porque existe uma imagem estereotipada construída em torno dessa categoria e largamente difundida pela mídia. O que percebemos nas entrevistas realizadas com jovens-mulheres é que as mesmas reconhecem os avanços e conquistas do movimento, assim como as conseqüências dessas mudanças para as suas vidas. Sobretudo no que diz respeito à inserção da mulher no mercado de trabalho e à aquisição de maior autonomia em função da independência financeira.

O.J. - Em que época a separação entre homens e mulheres é vista mais claramente?
 
Wivian - Na realidade, essa separação já começa na infância com as brincadeiras de meninos e de meninas. A impressão que temos é que às vezes essa separação é até mais forte na infância, porque os próprios pais acabam, por exemplo, “forçando” os meninos a se interessar por futebol e evitando que eles brinquem com bonecas.

O.J. - É comum encontrarmos publicações sobre juventude e culturas juvenis que compreendem a categoria juventude como um todo, ou seja, que não fazem uma distinção entre jovens-adolescentes do sexo feminino e do masculino. Poderia ser feita uma releitura da bibliografia já existente sobre o tema juventude na qual se leve a questão de gênero em conta? Como se daria tal tarefa?

Wivian - Uma releitura da bibliografia já existente, ou seja, das pesquisas sobre juventude que já foram realizadas sob a ótica geracional e de gênero é quase impossível, pois muitas dessas pesquisas não se ativeram a essas questões no momento em que foram realizadas. Se não tomarmos esse cuidado no momento da preparação de uma pesquisa e da coleta de dados, por exemplo, na elaboração de um questionário, será difícil fazer uma análise das diferenças entre jovens do sexo feminino e do sexo masculino em uma etapa posterior. Nesse sentido, é difícil comparar a juventude dos anos 1960 com a juventude atual no que diz respeito às visões de mundo das jovens-mulheres e dos jovens-homens, pois naquela época não havia essa preocupação por parte dos pesquisadores.
 Felizmente as pesquisas atuais já estão buscando incluir o recorte de sexo e idade na seleção dos indivíduos a serem entrevistados, como, por exemplo, na pesquisa Retratos da Juventude Brasileira: Análises de uma Pesquisa Nacional publicada pela Fundação Perseu Abramo e Instituto Cidadania em 2005. Trata-se de uma pesquisa realizada em 2003 por meio de questionário aplicado a 3.501 jovens de 15 a 24 anos de idade de 198 municípios em 25 estados brasileiros. É um trabalho que nos traz amplas informações sobre a juventude brasileira deste início de século. Apesar do livro não trazer nenhum artigo refletindo sobre as características femininas e masculinas da juventude brasileira é possível fazer uma releitura sob a ótica de gênero a partir das tabelas que nele foram anexadas. Mas também é preciso desenvolver novas pesquisas, não só de caráter quantitativo como também qualitativo. Voltadas para a compreensão das mudanças que estão ocorrendo na juventude no que diz respeito às relações sociais de gênero.

O.J. - Segundo Angela McRobbie e Jenny Garber as mulheres constituem uma categoria social pouco celebrada pelos teóricos críticos e radicais. Essa invisibilidade é atribuída pelas autoras à reação social às manifestações mais extremas das subculturas juvenis. Isso foi escrito em 1975. Quais são essas subculturas e como elas afetam a visibilidade da mulher jovem? A senhora acha que o quadro é o mesmo até hoje?

Wivian - As autoras estão se referindo as subculturas juvenis da Grã Bretanha nas décadas de 1960 e 1970 e discutidas nos trabalhos de pesquisadores do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS). O termo subcultura é utilizado por eles para se referir às culturas de resistência ou às alternativas de jovens da classe operária. Em meu artigo eu também apresento a crítica de alguns autores e partilho da posição de que o termo “cultura juvenil” ou “culturas juvenis” seria o conceito mais indicado, “porque amplia a possibilidade de compreensão das distintas manifestações juvenis, seus estilos ou modos de vida que vêm sendo criados e recriados em diferentes localidades e contextos sociais” (Weller, 2005, p. 110).
 Ainda não temos muitos trabalhos sobre a presença feminina nas culturas juvenis. Mas é um tema que vem despertando o interesse. No momento as salas de cinemas estão apresentando o filme Antônia que também já passou na televisão em forma de seriado. Certamente surgirão novos trabalhos e projetos inspirados no filme. Isso é positivo, porque as mulheres jovens passarão a ocupar um papel central no âmbito das culturas juvenis.

O.J. - O movimento hip-hop e o movimento skinhead estão inseridos numa cultura juvenil predominantemente masculina. Como se dá a inserção de mulheres jovens nestas culturas? Existem também culturas juvenis predominantemente femininas?

Wivian - Ainda podemos falar em culturas ou práticas juvenis predominantemente femininas (por ex. as Fan Girls) e culturas juvenis predominantemente masculinas (hip hop, movimento skinhead, etc.). A inserção das meninas ou jovens-mulheres nas culturas ditas masculinas tem ocorrido gradativamente e os rapazes costumam ver com bons olhos a inserção das mulheres, por exemplo, no movimento hip hop. Mas o contrário ainda não acontece: é raro vermos práticas “ditas femininas” serem incorporadas por jovens do sexo oposto porque existe um controle social exercido sobre os jovens. Aqueles que “se atrevem” são logo estigmatizados pelos colegas.

O.J. - Segundo o IBGE, em 1998 o nível de instrução das mulheres com pelo menos o segundo grau completo foi de 19,2%. Já o dos homens foi de 16,8%. No entanto movimentos feministas reiteraram enfaticamente o enfoque da igualdade de acesso educacional entre os sexos. Por que isso se dá? Qual o reflexo disso na sociedade?

Wivian - Em 2005 o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) publicou uma pesquisa revelando que as mulheres formam a maioria nas escolas a partir da 5ª série do Ensino Fundamental. Elas representam mais de 60% dos alunos que conseguem concluir o Ensino Superior em todo o País.
 A luta feminista por igualdade de acesso educacional entre os sexos iniciou quando as estatísticas ainda apresentavam um outro quadro. Hoje sabemos que existem mais mulheres cursando o ensino superior, mas elas não estão nos cursos de engenharia, informática ou física. Temos um grande número de mulheres das camadas média e alta cursando Psicologia e um grande número de mulheres das classes menos privilegiadas estudando Pedagogia e Serviço Social. Os cursos superiores apresentam atualmente distorções de gênero e de classe que levaram a uma categorização e estigmatização de alguns deles: os cursos de menor prestígio e com salários menores são cursados por mulheres negras e/ou de camadas populares que não puderam freqüentar uma escola particular. Essa diferenciação não resulta apenas do tipo de escola. As diferenças que levam os rapazes a optar por uma determinada área e as meninas por outra, são produzidas tanto nas escolas públicas como particulares.

O.J. - Nos padrões atuais de cultura espera-se que a menina tenha muito cuidado com seu próprio corpo e se comporte dentro dos padrões de conduta previstos para a futura mulher / esposa / mãe. Que caminhos estão sendo traçados pela juventude atual para diminuir tais preconceitos?

Wivian - As juventudes sempre buscaram romper com alguns padrões impostos pela família ou pela religião. A sexualidade hoje não constitui mais um tabu para a maioria das/os jovens. Porém, as conseqüências de uma gravidez indesejada na adolescência ainda são maiores para as meninas do que para os meninos. A “culpa” e a responsabilidade recai sobre elas. São elas que deixarão de ser jovens de forma abrupta para assumir o papel de mães. Nesse aspecto ainda há muito para se fazer ...

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O lazer é entendido como um direito da juventude? Quem responde é o professor da Escola de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Vitor Andrade de Melo

Em entrevista ao Observatório Jovem, o pesquisador fala sobre a dificuldade de acesso de grande parte da juventude aos equipamentos culturais da cidade e afirma: “o problema não está apenas na falta de dinheiro, mas na educação para o lazer, para as atividades culturais”. Vitor Melo é também coordenador do Grupo de Pesquisa "Anima": Lazer, Animação Cultural e Estudos Culturais, da UFRJ.

Há um conceito de lazer?

Existe um conceito de lazer que tem sido mais aceito até os dias de hoje. É sistematizado por um sociólogo francês chamado Joffre Dumazedier, que, desde a década de 60, está envolvido com a sociologia do trabalho e em função disso ele começou a estudar o não trabalho. De acordo com ele, para conceituar lazer utilizaríamos duas grandes categorias. A primeira é o tempo, que é uma categoria mais de natureza social, o tempo disponível, ou seja, fora do trabalho e das obrigações, da decorrência do trabalho também, porque, por exemplo, quando você está pegando um ônibus para ir da sua casa para o trabalho, você não está no seu tempo de trabalho, mas é um tempo em decorrência do trabalho, então, essa seria a categoria tempo. A outra categoria, seria atitude, que é a busca do prazer. Não necessariamente você vai obter prazer na atividade e nem estou dizendo que prazer é algo somente possível nos momentos de lazer. Espera-se que no trabalho também as pessoas tenham prazer. Mas uma das marcas dos momentos de lazer seria a busca do prazer, então, se fôssemos dar um conceito de forma geral e considerando essas duas categorias, as atividades de lazer seriam atividades culturais, sempre atividades que devem ser entendidas no âmbito da cultura, vivenciadas, o que significa que podem ser fruídas ou praticadas, quer dizer, ou você assiste ou você participa ativamente, vivenciadas em seu tempo disponível, tendo em vista a busca do prazer.

Pode-se entender esse tempo disponível como tempo livre?

Eu falo sempre tempo disponível porque existe uma grande discussão conceitual sobre a idéia de tempo livre. Alguns autores mais ortodoxos vão dizer que não é possível tempo livre em uma sociedade que não tem liberdade. Eu também não estou de acordo com essa visão ortodoxa, mas para evitar problemas conceituais eu falo tempo disponível, aquele tempo livre do trabalho e das obrigações. Esse conceito considera basicamente o lazer como um fenômeno moderno típico da revolução industrial, do modelo de trabalho formal, onde se observa um tempo bastante artificializado. O homem já não mais trabalha pelo tempo da natureza, ele tem nove horas de trabalho hoje e quando artificializamos o tempo do trabalho tendemos também a artificializar todos os outros tempos sociais. Isso não quer dizer que sociedades pré-industriais não tinham diversão, o que eu quero dizer é que após a revolução industrial a modernidade adquire características próprias. O que vai acontecer é que a nova dinâmica do trabalho tem colocado esse conceito em cheque. Eu diria que possivelmente daqui a alguns anos teremos um novo conceito de lazer porque as fronteiras entre trabalho e não trabalho já não estão tão precisas quanto eram no início da organização do modelo de produção fabril.

Por que essas fronteiras não são tão mais visíveis?

Pelas novas configurações do capitalismo. Por exemplo, com o desenvolvimento da rede internacional de comunicações, da qual a internet hoje é a sua faceta mais conhecida, já tem empresas onde todo mundo trabalha em casa. A lógica do trabalho dentro de casa em certo sentido é muito mais perversa do que o trabalho fora de casa porque você não tem uma marca da jornada de trabalho, você acorda e começa a trabalhar e só termina quando acaba seu número de tarefas para aquele dia, em compensação você pode parar para descansar, ou almoçar ou ainda para se divertir. Essa nova lógica de trabalho faz com que você já não tenha mais como antigamente o tempo de trabalho o não tempo de trabalho. Da mesma forma, já tem alguns estudiosos notadamente norte-americanos que estão estudando os impactos da internet na reorganização do tempo de trabalho. Todos nós trabalhamos hoje por windows, temos várias janelas abertas, a pessoa está trabalhando na mesa de computador, mas está com o MSN aberto, com o jogo aberto, com um outro site aberto, então você acaba misturando as lógicas. Com isso me parece que estamos vivendo uma nova organização do tempo de trabalho, inclusive com certa proximidade do modelo de produção industrial com o modelo de produção artesanal. Estamos de certa forma vendo o rompimento dessas fronteiras clássicas e estáticas entre trabalho e não trabalho. Eu não sei se isso vai ser bom para o trabalhador, eu desconfio que vai ser complicado, que vamos ter cada vez menos tempo de lazer, cada vez mais trabalho e isso inclusive está sendo gerado por essa própria dinâmica dos meios de comunicação. Se os meios de comunicação trouxeram uma série de benefícios eles também trouxeram problemas ligados a essa reorganização dos nossos tempos sociais.

Você acredita que o lazer é entendido como um direito para a população em geral, e, mais especificamente, para a juventude?

O lazer ainda não é entendido como um direito e se é entendido é como um direito de menor hierarquia perante aos outros. Primeiro a educação, depois a saúde... E por último seria o direito ao lazer. Chamamos isso de hierarquização das necessidades básicas. Isso é mais forte nas sociedades que estão em situação de risco. Se você não tem educação, casa, comida, você tende a achar isso mais valorizado do que o lazer, que parece alguma coisa acessória ou menos importante em função mesmo da lógica moral da sociedade capitalista, que estabeleceu a centralidade da categoria trabalho na organização dos direitos sociais. A própria definição do conceito de lazer considera a centralidade do conceito trabalho. Então, quando o lazer é encarado como direito é encarado como um direito menor ou de forma instrumental, ou seja, é importante ter lazer para tirar as crianças das drogas, é importante ter lazer para tirar as crianças do mal caminho, como se essa fosse a função dos momentos de lazer.

Fala-se muito em preencher o tempo do jovem...

Exatamente, que também tem ligação com uma outra lógica moral da sociedade capitalista: “cabeça vazia, oficina do diabo”. Isso, aliás, se articula com a lógica judaico-cristã que de alguma forma sustenta ou se articula complexamente com a manutenção da lógica da sociedade capitalista. Mas, eu diria que existem alguns dados bem interessantes. O Fábio (Peres), membro do nosso grupo de pesquisa sobre o lazer, a animação cultural e estudos culturais - Grupo Anima , está fazendo doutorado em Saúde Pública na Fiocruz. No trabalho de mestrado, ele entrevistou lideranças da Fiocruz para ver que espaço o lazer ocupava na sua agenda de reivindicações e surpreendentemente o lazer ocupou um espaço que era maior do que imaginávamos antes – um espaço muito pequeno. Então, esse espaço não é muito pequeno. Mas, majoritariamente, o lazer é encarado a partir de uma lógica funcional.
 
A pesquisa Perfil da Juventude Brasileira, de 2003, mostra que diante da pergunta sobre quais atividades os jovens desenvolviam no tempo livre 91% disseram que assistiam à televisão. A atividade ficou em primeiro lugar dentre uma série de atividades sobre as quais os jovens respondiam se desenvolviam ou não. Como você avalia esse dado?

Esse dado não nos surpreende, temos alguns trabalhos no nosso grupo de pesquisa que apontam para essa tendência. Estamos chamando isso de privatização das vivências de lazer. As pessoas têm cada vez menos dinheiro, cada vez menos educação, educação no sentido de que elas não são educadas para o tempo livre, cada vez menos estímulo e oportunidades para sair de casa para os seus momentos de lazer. Isso foi substituído pelos meios de comunicação, que ocupam esse lugar de mediação entre o mundo e a realidade. Basta dizer, que apenas 7% das cidades brasileiras, pelos dados do IBGE, possuem cinema, por exemplo. Poucas cidades têm teatros, museus, bibliotecas ou as têm mal aparelhadas. Mas, muitas cidades têm locadoras. Mesmo na cidade do Rio de Janeiro, o Fábio desenvolveu um indicador chamado Idac, Indicador de Desenvolvimento e Acesso Cultural. O Idac permite não só mapear onde estão os equipamentos culturais da cidade, como permite mapear a desigualdade de acesso em função da proximidade da residência. Assim, vimos onde estão os cinemas da cidade, os museus, dividimos isso pelas regiões e calculamos. Nós chegamos ao dado de que a zona oeste do Rio de Janeiro está 95% defasada em relação ao centro e zona sul da cidade de oportunidades de acesso a cinema, teatro, museu e etc. Isso nós não estamos discutindo nem a qualidade do que está sendo exibido. No mapeamento dos cinemas do Rio de Janeiro, por exemplo, o Rio que é uma cidade privilegiada em relação ao restante do país, já que temos hoje mais de 160 salas de cinema, quando olhamos as salas há até certa distribuição equânime, contudo, as salas que passam filme de uma lógica diferenciada do filme de Hollywood não existem do centro da cidade para lá, apenas do centro para a zona sul, tirando a Barra da Tijuca, que  classificamos como uma área a parte. O que vai acontecer é que temos uma população que mal tem dinheiro para as suas necessidades básicas, não é educado para o seu tempo livre, para o lazer. Os equívocos começam na própria escola. Nossa escola valoriza demasiadamente determinados conteúdos e desvaloriza outros que poderiam ser de grande validade para ampliar as vivências culturais dos alunos. As nossas famílias que seriam a unidade básica de animação cultural também nem sempre são preparadas para fazer a mediação cultural dos nossos jovens. Então, os nossos jovens não têm dinheiro, não tem educação, não tem o equipamento perto de casa, o que lhes resta? Majoritariamente ficar em casa vendo televisão ou reproduzir os mesmos divertimentos que são comuns, ir para o samba, para o pagode, para o futebol... Não estou querendo desvalorizar esses divertimentos, só quero dizer que seria interessante que as pessoas tivessem estímulos e fossem educadas adequadamente para dividir o seu tempo livre entre futebol e museu. Não tem nada que exclua a possibilidade de alguém ser torcedor de um time de futebol e de gostar de qualquer linguagem artística.

Gostaria que você comentasse também outros dados. Uma outra pesquisa, Juventude Brasileira e Democracia, concluída em 2006, mostra que o lugar mais visitado pelos jovens nos momentos de lazer é o shopping, independente de classe social. A ida ao shopping ficou em primeiro lugar nas atividades de lazer de jovens das classes A, B, C, D e E de sete regiões metropolitanas brasileiras. Já a 2ª atividade mais realizada se diferencia de acordo com a classe, para as classes D e E fica em 2º lugar a visita a parques e praças e para as classes A, B e C o cinema ocupa a 2ª posição...

Os shoppings acabaram se apresentando como a grande alternativa de lazer das cidades, porque supostamente são seguros, supostamente tem conforto, paralelo a isso observamos o declínio de formas tradicionais de organização comunitária. Por exemplo, os clubes de bairro. Fizemos um pequeno levantamento quando vínhamos de Santa Cruz até aqui zona sul - centro cada bairro tinha um clubinho pequenininho. Esses clubes foram todos fechando as portas, em função de que? A classe media está cada vez menor, da própria falta de estímulo da busca por esse espaço comunitário. Um outro fato interessante é a organização de festas comunitárias, que hoje são cada vez menos festas comunitárias e mais festas empresariais.  Por exemplo, o fenômeno das festas juninas. Hoje tem uma liga de quadrilha que organiza, as fantasias são luxuosíssimas. E um outro fato interessante também é que a cidade hoje tem quase o mesmo número de cinemas que teve no maior momento de cinemas da sua história. Em 1955, a cidade teve em torno de 175 salas de cinema. Mas veja, em 1955, quase todos os bairros do Rio de Janeiro tinham cinema, hoje apenas cerca de 20 bairros tem cinema e o total de salas é quase o mesmo. Perdemos os cineminhas de bairro. De onde eu vim, Bangu, tínhamos isso e agora temos os complexos de cinema, muitos deles dentro do shopping. A Tijuca que já foi a segunda Cinelândia fechou todos os cinemas de rua, tem cinemas no shopping e agora vai abrir mais seis salas. Então, vamos voltar a ter nove cinemas na Tijuca, mas todos eles dentro do shopping. A própria Cinelandia, se não fossem ali o resistente Palácio e o Odeon, o último que não fechou por iniciativa de um grupo de cinema alternativo junto com a Petrobrás, não teríamos mais cinema naquele que foi o grande palco do cinema nacional. Então, com esse declínio e entendendo o shopping dentro da lógica de uma sociedade do consumo, de uma sociedade do espetáculo, como vai dizer o filósofo Guy Debord, estimula cada vez mais consumir. Notadamente pelo impacto de uma série de imagens e de relações de imagens construídas o shopping acaba substituindo o espaço de outras formas de lazer. Eu queria dizer que eu não sou absolutamente contra shopping, o problema é que esse equipamento, que a priori não é nem um equipamento de lazer, é um equipamento de consumo, está substituindo outras formas de organização comunitária.

As pesquisas mostram que os jovens apontam como principal impedimento para participarem de atividades culturais a falta de dinheiro...

Quando trabalho com grupos sociais diversos é comum as pessoas falarem que não têm dinheiro. Mas quando colocamos na ponta do lápis, dá para ver que não é apenas uma questão de dinheiro. Por exemplo, para você ir ao Maracanã hoje se gasta mais dinheiro do que ir ao cinema, ou do que ir ao Centro Cultural Banco do Brasil, que é gratuito, ou ir ao Instituto Moreira Salles. Até a questão da distância, quem mora em Santa Cruz para chegar no Maracanã também é longe. Mais do que essa questão do dinheiro, é lógico que a questão da renda é importante, há uma questão aí de educação. Essa é uma questão bastante séria, que mesmo os projetos ditos sociais não dão conta, eles não dão conta de se constituírem enquanto pólos de mediação e animação cultural. Eles não dão conta da idéia de formação de público ativo que possa percorrer os espaços da cidade, reivindicar a cidade como sua e entender que o direito a lazer é um direito tão importante quanto qualquer outro direito. Nem mais nem menos. Tão importante quanto. Então, tem uma questão aí que me parece mais frugal, que poderia ser atacada imediatamente, que é a questão do desenvolvimento de iniciativas de educação para o lazer, para as manifestações culturais.

Aí entra também o papel da escola?

Aí entra também o papel da escola, que cumpre bastante mal o seu papel no meu modo de entender. É obvio que a escola continua sendo fundamental, mas me parece que ela é bastante anacrônica em relação ao momento em que vivemos. Mas aí também entra o papel dos projetos ditos sociais, aí também entra o papel da família, aí também deveria entrar o papel de qualquer instituição organizada preocupada com a educação, do estado...

Sobre a distribuição dos equipamentos culturais, se aqui na metrópole eles são mal distribuídos, se compararmos o interior com a metrópole também existe aí um vazio de equipamentos culturais muito grande, não existe?

Enorme. Eu coordenei um trabalho do nosso grupo junto ao Sesc do Rio de Janeiro em 32 municípios do estado. O nosso intuito era contribuir para a auto-organização comunitária no âmbito das atividades culturais e de lazer para que essa auto-organização pudesse constituir enquanto pólo de pressão solicitando co-gestão com o Estado em espaços de lazer. É lógico que existe tanto na capital quanto no interior um cem número de resistência a esse processo surgidas dos próprios jovens, o movimento hip hop, skatistas, alguns jovens ligados a manifestações da cultura popular... Mas majoritariamente no interior a escassez de equipamentos culturais é ainda maior, portanto, há uma grande preocupação com a juventude não ter o que fazer no seu tempo disponível, no entanto, com o desenvolvimento dos meios de comunicação o interior tem acesso às informações, à moda, aos costumes também da capital. Outra preocupação é o fato da própria sociedade do consumo e do espetáculo também buscar se apropriar desses mecanismos de resistência no sentido oposto daquele que foram gerados. O movimento hip hop que num primeiro momento é um movimento de resistência de organização juvenil também é tematizado na televisão, o seu sentido original é bastante modificado para se adequar à regra dessa nova “mercadorização”. Muitas vezes o hip hop também chega a esse jovem de novo já não mais como resistência ou ressignificação, chega como consumo o que não quer dizer que o consumo não possa servir como forma de organização. Eu gosto muito do Nestor García Canclini quando ele vai falar que é necessário uma educação para o consumo, não dá para se opor diretamente ao consumo. A questão é como é que a gente pode criar mecanismos de mediação e educação para que as pessoas possam também saber o que consumir, o que é e o que não é realmente importante consumir. De qualquer maneira, eu diria de forma especulatória, não de forma investigada, que se pegarmos um conjunto comunitário do subúrbio do Rio de Janeiro e identificarmos os hábitos de lazer vamos ver que são muito parecidos com os hábitos de lazer do interior. Então, mesmo que essas pessoas do subúrbio do Rio de Janeiro tenham possibilidade de acesso cultural isso não necessariamente significa que eles acessam. Ainda que a existência de equipamentos seja fundamental, isso não é garantia de que esses equipamentos sejam acessados. Alguns anos atrás o Festival do Rio de Cinema, que é o maior festival de cinema da América Latina, comemorava que tinha batido o seu recorde de vendas de entradas, cerca de 200 mil entradas. Então, veja, 200 mil entradas não são 200 mil pessoas, é muito menos que isso porque tem gente que vai ver dois ou quatro filmes. Vamos dizer que tenham sido atingidas 150 mil pessoas, quer dizer, o recorde do Festival do Rio foi de 150 mil pessoas em uma cidade que tem cinco milhões e 600 mil habitantes. Essas 150 mil pessoas são de um estrato sócio-econômico muito próximo, muito provavelmente aqui do eixo centro-zona sul, muito provavelmente de universitários, de pessoas que tem família com uma formação cultural diferenciada.  Outro dia vi uma coluna do Artur Xexéu que nos dá outro dado interessante para pensarmos o cinema. Ele falou que em 1986 uma entrada de cinema custava o mesmo preço de uma passagem de ônibus, eu ia muito ao cinema nessa época e me lembro que não era caro ir ao cinema... Hoje em dia... Imagine um jovem que tenha que pagar passagem, comida... Como é que uma família, mesmo que seja pequena, pai, mãe e dois filhos, vai poder ir ao cinema no domingo? Imagina o custo que daria isso para uma família! Fica mais barato alugar um DVD... Só que não tem comparação entre essas duas práticas de lazer, não tem comparação estética e não tem comparação com o ato de sair de casa para ir ao cinema, encontrar as pessoas, ir para rua...

Como fica essa questão da sociabilidade dos jovens com essa situação que você está apresentando?

Lógico que os jovens e todos nós continuamos resistindo, apesar das dificuldades encontramos possibilidades de continuar nos encontrando. Agora, não me parece que seja possível negar que houve e continua havendo uma redução perigosa das possibilidades de sociabilidades infantil e juvenil. Notadamente é possível ver isso nas crianças aqui do centro e zona sul, aqui não existe mais o conceito de rua para brincar, esse conceito se perdeu muito, talvez na periferia isso exista ainda mais fortemente, embora o próprio crescimento da violência esteja reduzindo isso. Pode ser que a realidade do interior seja diferenciada. Mas enfim, ainda que não possamos ter uma visão de que tudo se destruiu, me parece que mudou muito a dinâmica de construção de laços de sociabilidades entre os jovens no seu momento de lazer. Foram construídas alternativas, por exemplo, internet. Isso para os jovens que tem acesso, que também são minoria. O que eu estou tentando ponderar é que mudou a forma dos jovens se organizarem, talvez isso expresse uma debilidade e fragilidade das organizações juvenis políticas tradicionais.

A pesquisa Perfil da Juventude Brasileira mostra que 85% de jovens não participam de nenhum tipo de grupo e os grupos que apareceram do qual os jovens participam são religiosos, de música e dança, grupos políticos foi inexpressivo...

Exatamente, e percebemos na universidade como o movimento estudantil e a UNE estão fracos... O jovem não se organiza mais dessa forma, ele não se organiza na associação de bairro. Ele está se organizando a partir de uma outra lógica, quando se organiza. Me parece que não é possível comemorar esse dado. A redução desses laços de sociabilidades certamente traz problemas sérios para os laços de solidariedade e certamente traz problemas para que possamos pensar novas formas de reivindicação política surgida de grupos. É bem verdade que surgem outros movimentos que também encaminham essas reivindicações políticas, mas me parece possível afirmar que majoritariamente a juventude não está envolvida com atividades dessa natureza. Certamente a nova organização nos momentos de lazer é causa e conseqüência disso, ela expressa essa nova forma de organização juvenil e também a reforça.

A mesma pesquisa revela dados sobre o lazer fazendo uma diferenciação de gênero. Os dados mostram, por exemplo, a diferença na participação das jovens e dos jovens nos esportes – as mulheres participam menos. Entretanto, ao responderem sobre atividades que faziam no tempo livre, 66% dos jovens marcaram, entre outras, a opção ajudar em casa, ao passo que a mesma resposta foi dada por 94% das jovens. Pode-se falar em uma divisão sexual do lazer?

Certamente. Esses dados demonstram que esse discurso de que houve um avanço da presença das mulheres não pode ser encarado de forma tão otimista como é encarado por alguns. É óbvio e é motivo de comemoração que existe muito mais respeito e a presença das mulheres é muito maior em todos os ambientes sociais. Mas existem dados gravíssimos que mostram que existe muito a ser conquistado. Por exemplo, há ainda um grau enorme de violência contra mulher, há um número muito pequeno de mulheres em instâncias de poder. E aí nesse caso, percebemos que por mais que tenha mudado muito, as tarefas domésticas ainda são majoritariamente compreendidas como femininas. O próprio Dumazedier já na década de 60 falava do que ele chama de dupla jornada feminina, trabalham em casa e na rua. Eu diria que podemos hoje falar em tripla jornada feminina, as mulheres trabalham, estudam e cuidam da casa, os homens dão uma força. E acham que isso é mostrar que são diferentes porque estão dando uma força em casa. Ainda existem diferenças na possibilidade de acesso e ainda existem territórios que são majoritariamente entendidos como de um sexo ou de outro, como o esporte é majoritariamente entendido como masculino, de outro lado, a dança e a arte são majoritariamente entendidos como femininos, um menino que viesse a dizer que dança, que faz ballet poderia ser motivo de atitudes jocosas. Então, há muitas conquistas e o momento de lazer também é reflexo dessa necessidade de conquistas que estão em outros tempos sociais.

Como você acha que devem ser políticas públicas de lazer para os jovens?

Acho que a primeira coisa é que as políticas públicas de lazer não deveriam ser privilégios de uma secretária, isso é muito difícil em nossa organização política, mas deveriam ser de vários órgãos, inter-setoriais. Quem é responsável por políticas públicas de lazer? Não é só a secretaria de esporte e lazer nem só a secretária de cultura, aliás, as secretarias de cultura parecem sempre secretarias de arte e não de cultura porque entendem que seu papel é cuidar da arte, e mais, não da arte para o público, da arte como forma profissional. Deveria haver uma política pública inter-setorial de lazer que articulasse educação, cultura... É melhor chamar de arte porque aí fica mais tranqüilo, turismo, esporte... E mesmo secretaria de obras. Construir um parque público tem peculiaridades, temos exemplos disso no Rio de Janeiro. Havia uma pracinha feinha onde os idosos tinham construído um lugar para jogar cartas, aí veio um arquiteto e faz no lugar uma praça linda, com uma escada enorme. Mas aí com a escada os deficientes físicos e os idosos já tem dificuldades, tiraram a árvore sob a qual eles jogavam, a outra mesinha de cartas era feia, mas funcionava, a quadra ficou espetacular, mas as crianças não alcançam as tabelas, não dá para jogar futebol. Então, o arquiteto que constrói o equipamento de lazer também tem que ter sensibilidade para o que ele vai construir. O primeiro indicador é esse. Uma política pública de lazer para a juventude tinha que ter em vista que seu papel fundamental é de mediação e formação cultural. Lamentavelmente, grande parte dos investimentos em cultura, em lazer e em esportes nesse país são pela atividade fim e não pela atividade meio, são para a exibição de produtos, mas não adianta exibir produtos se as pessoas não estiverem sensibilizadas para isso. Vou dar um exemplo, a prefeitura do Rio de Janeiro se orgulhava de fazer algum tempo atrás o Panorama de Dança do Rio de Janeiro e cobrava uma quantia irrisória para as pessoas entrarem no espetáculo. Mas se as pessoas não têm um processo de educação para a dança, implementado cotidianamente, a prefeitura só está tornando mais barato o ingresso para quem já vai. Como eu disse que deve ser uma política de mediação, tem então que ouvir o jovem, não pode ser uma política pública traçada de cima para baixo. Mais do que ouvir os jovens e ouvir numa de “ah, vamos fazer o que o jovem quer”, mas em uma atitude de mediador, de negociação, mais do que isso é envolver os jovens ativamente na construção dessa política pública, permitir que ele se sinta protagonista. O grande lance é que as atividades de lazer começam antes que elas aconteçam, então, por exemplo, quando você vai ao cinema a sua atividade de lazer já começa quando você seleciona o filme, lê as críticas e interage criticamente com elas, o lazer passa por ir ao cinema em si e continua depois quando você conversa sobre o filme. Então, esse anterior à atividade em si, já é uma tomada de posição perante o que vai assistir, tem sim o caráter político. O que eu quero dizer é o seguinte, encarar o jovem como protagonista dessa proposta política significa dizer que já nesse momento anterior à atividade em si, estamos contribuindo para a formação política desse jovem, que vai se ver como parte ativa do processo. E não como um público que vai esperar alguém que lhe ofereça algo como uma benesse.

Para terminarmos, você pode falar um pouco sobre o conceito de animação cultural?

A animação cultural é uma discussão teórica ainda não muito desenvolvida no Brasil, mas muito forte em alguns países europeus, notadamente Espanha, França e Portugal, notadamente no contexto pós 2ª guerra mundial com a necessidade de reorganização da sociedade européia. Não existe um conceito único sobre animação cultural, tem uma autora espanhola que levantou cerca de 58 conceitos diferentes. O que o nosso grupo de pesquisa procura fazer é tentar trabalhar o conceito de animação cultural que não seja reflexo da animação cultural européia, quer dizer, que dialogue com um importante referencial teórico construído na Europa, mas que esteja adequado às necessidades peculiares da América Latina e do Brasil. Para nós a animação cultural é uma intervenção pedagógica, trata-se de um educador que vai promover essa intervenção, é uma atitude educacional sempre, uma intervenção pedagógica pautada na idéia radical de mediação. O animador cultural é um mediador. Idéia radical de mediação porque não significa que ele deva assumir, por exemplo, o papel clássico do educador artístico. Ele é mediador, ele não está interessado em dizer o que é melhor e o que é pior, ele está interessado em desobstruir os canais de acesso. Ele está interessado em sensibilizar as pessoas para que elas possam ter acesso à diferentes linguagens, diferentes alternativas de lazer, diferentes formas de pensar a realidade. Mediação cultural, acreditando que a cultura ocupa hoje um papel central dessa ordem social, acreditando que essa ação no campo da cultura pode contribuir para a construção de uma nova ordem social mais justa e fundamentalmente implementada a partir da idéia de fortalecimento de organizações comunitárias. Assim, a animação cultural não é só uma mediação cultural, ela é uma mediação cultural que espera contribuir para organizações comunitárias que possam se constituir enquanto fóruns de política, não da política clássica, mas de uma política adequada aos novos tempos, fóruns de política que possam se constituir enquanto órgãos de reivindicação e construção democrática. Se fossemos simplificar a visão do nosso grupo de animação cultural ela estaria no mesmo termo entre educação social e educação artística, educação artística no sentido amplo, educação estética. Para nós, o esforço primordial do animador é de educação estética porque é esteticamente que a sociedade do espetáculo e do consumo e este sistema exercem seus poderes mais nefastos. É uma educação estética problematizadora que vai colocar em cheque esse modelo único, muito aproximado, ou muito próximo da homogeneidade que é exibido nos meios de comunicação. Com isso eu também não estou dizendo que as pessoas engulam essa homogeneidade sempre, pelo contrário, nem os meios de comunicação são homogêneos e nem as pessoas. Para nós os indivíduos são sempre ativos perante o que é emitido, trata-se somente de contribuir para fortalecer esse grau de atividade dando a conhecer outros tipos de linguagem, de alternativa, de acesso e de conhecimento.

Trabalhadoras domésticas na Bolívia

É sobre a realidade das bolivianas que trabalham como empregadas domésticas que fala ao Observatório Jovem a pesquisadora do Programa de Investigação Estratégica da Bolívia (PIEB) Yara Katrina Peñaranda

Na Bolívia, jovens mulheres camponesas migram para a cidade e têm no trabalho doméstico a forma de se sustentarem e o sonho de se ascenderem socialmente. No campo, lidam com a discriminação de gênero. Pela mentalidade camponesa, apenas os homens precisam estudar para aprenderem a comercializar os produtos da agricultura.

Yara  mostra como existe diferenciação entre as trabalhadoras domésticas migrantes e as originárias da cidade pertencentes a classes pobres. A pesquisadora comenta também sobre o governo de Evo Morales e as polêmicas acerca das políticas implementadas pelo presidente indígena.

Yara Katrina Peñoranda é psicóloga, professora da Universidad de Aquino e da Universidad del Valle. Veio ao Brasil a convite do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) em novembro de 2006, quando concedeu entrevista ao Observatório Jovem.

Observatório Jovem (OJ) - O que é o PIEB?

Yara Peñaranda (YP) - É uma fundação. O objetivo é realizar pesquisas estratégicas e produzir base para a realização de ações para a solução de problemas em nível social. As pesquisas são feitas por pesquisadores juniores e seniores e todas são publicadas.

OJ - Você participou pelo PIEB da pesquisa “Representaciones sociales de la trabajadora del hogar asalariada en la ciudad de Sucre” sobre as trabalhadoras domésticas na Bolívia...

YP - Pesquisamos as condições das trabalhadoras domésticas mulheres porque a maioria são mulheres, tanto de pollera, quanto de vestido, e também as empregadoras mulheres, porque a trabalhadora doméstica se relaciona mais com a patroa e são elas que administram a casa, não os homens. Essas empregadoras pertencem a classes econômicas médias porque apenas a partir desse nível econômico se tem possibilidades de contratar os serviços da trabalhadora doméstica.

OJ - Qual a diferença entre as mulheres de Pollera e de Vestido?

YP - As trabalhadoras domésticas não apenas se identificam pelo gênero, pelo fato de serem mulheres, elas também têm uma raiz étnica. A maioria é de jovens, migrantes do campo e com baixos níveis de instruções. Quando falamos em pollera nos referimos a uma vestimenta típica das pessoas do campo. Quando vão para a cidade essas pessoas continuam usando essa vestimenta, que data do período colonial. No princípio era uma vestimenta espanhola, mas posteriormente começou a ser usada pela população indígena. Essas mulheres chegam à cidade e não conhecem os modos urbanos de vida e começam a trabalhar como empregadas domésticas porque é a única opção de trabalho que têm. Assim, elas estão mais sujeitas à exploração por parte das patroas. As trabalhadoras de vestido ou são aquelas que sempre viveram na cidade, mas têm baixos recursos econômicos, ou são migrantes do campo que mudaram a vestimenta especialmente devido à influência urbana. Há duas diferenças entre esses grupos, a primeira diferença é que as trabalhadoras domésticas de vestido tendem a menosprezar as trabalhadoras domésticas de pollera. As primeiras têm níveis de instrução mais altos e vêem as trabalhadoras de pollera como mais submissas e mais ingênuas.

OJ - Os dois tipos de trabalhadoras domésticas vivem na casa da patroa?

YP - Existem os dois tipos de trabalhos, o que chamamos de cama adentro, que é quando a empregada vive na casa da patroa, e cama afuera, quando a trabalhadora termina o expediente às 18h. Geralmente as trabalhadoras que vem do campo não tem onde viver, então, necessitam de um trabalho que também lhes garanta um teto.

OJ - Você disse que as trabalhadoras de vestido têm um grau maior de instrução. Qual o nível de escolaridade dessas mulheres?

YP - A pesquisa mostrou que a média de estudos delas fica entre a 3ª e a 5ª séries primárias. Uma das razões que fazem as jovens migrarem do campo para a cidade é o estudo. No campo, as taxas de analfabetismo são muito mais altas e a escolaridade das mulheres é menor do que a dos homens devido à discriminação de gênero. Os homens são incentivados a estudar porque, como ajudam no cultivo da terra, precisam aprender a comercializar os produtos. Já para as mulheres, não há sentido em estudarem, segundo a mentalidade camponesa; assim elas não estudam ou apresentam taxas de abandono muito mais altas que os homens.

OJ - Na cidade, essa diferenciação entre homens e mulheres acerca da necessidade do estudo é menor?

YP - Sim. As oportunidades são mais eqüitativas entre homens e mulheres em comparação com as zonas rurais.

OJ - Essa migração das jovens do campo para a cidade é definitivo ou muitas vivem entre a casa onde trabalham na cidade e a casa dos pais?

YP - No grupo das trabalhadoras domésticas essa migração tende a ser mais definitiva. Na Bolívia há dois tipos de migração, total e parcial. A migração parcial se dá quando os jovens geralmente migram nos três meses que não há colheita, porque depende dos fatores climáticos. As jovens, em geral, não se dedicam tanto à agricultura como os homens, então a tendência é de uma migração definitiva. Elas migram para a cidade com expectativas de trabalho e de melhorar sua qualidade de vida e, de certa maneira, também conseguirem uma maior ascensão social. O primeiro trabalho é o de empregada doméstica assalariada e, posteriormente, suas expectativas são de passarem a cozinheira, de cozinheira a lavadeira e de lavadeira a estudarem e passarem a professoras ou enfermeiras.  Mais ou menos é essa a trajetória.

OJ - Nessa pesquisa, vocês citam o desconhecimento das empregadas domésticas sobre a lei 2.450, que lhes garante direitos. A lei, então, não é cumprida?

YP - Não. O estudo demonstrou que 84% das trabalhadoras domésticas não conhecem a lei e 95% dos empregadores também não. É claro que o não cumprimento da lei não é culpa somente do desconhecimento por parte da população em geral, mas da representação que os empregadores têm das trabalhadoras domésticas e da relação que une os dois setores. Essa relação reflete a essência da estrutura social boliviana, então, é mais que tudo o pensamento social discriminatório que leva a uma resistência à lei, e isso também explica 12 anos de luta para que se aprove essa lei. Há mais de três anos de sua aprovação continua sendo descumprida. Não há força social suficiente para pressionar pelo cumprimento da lei.

OJ - Há sindicatos das trabalhadoras domésticas assalariadas?

YP - Sim. Existe a Federação das Trabalhadoras Domésticas Assalariadas, com sede em La Paz, que tem três executivas e existem também quinze sindicatos nos nove departamentos da Bolívia.

OJ - Como é a participação das trabalhadoras assalariadas jovens nos sindicatos?

YP - A forma como os sindicatos atraem as trabalhadoras é por meio de cursos de capacitação – cuidado de crianças, computação, cozinha nacional e internacional.. A maioria das afiliadas são jovens porque também a maioria das trabalhadoras domésticas estão com idade entre 15 e 35 anos.

OJ - Quantas são as trabalhadoras domésticas assalariadas na Bolívia?

YP - Pelos dados de 2002, do último censo de população e domicílios, havia 114 mil trabalhadoras domésticas. Considerando a economia do país, é uma porcentagem muito alta de gente que conta com uma trabalhadora doméstica.

OJ - Ao final da pesquisa, vocês sugerem algumas ações para que a lei 2.450 seja cumprida. Essas ações estão em curso?

YP - Não. Nós levantamos propostas para políticas públicas. Fizemos encontros com instituições envolvidas na temática de trabalho doméstico ou gênero e as executivas da federação e os sindicatos locais das trabalhadoras domésticas para tentar incentivar acordos e também comprometer instituições com a implementação de políticas públicas, como o Ministério da Educação, por exemplo. Depois desses encontros, foram firmados convênios, no entanto, as políticas públicas não estão sendo colocadas em prática como deveria. Não é que não haja dinheiro para implementar as políticas, o problema é que os sindicatos não estão suficientemente organizados para fazerem um acompanhamento rigoroso do cumprimento da lei.

OJ - Há algum tipo de política a nível nacional no combate à opressão de gênero e étnica?

YP - Sobre a discriminação de gênero específica ou étnica não há nenhuma lei. O que existem são regulamentações, por exemplo, a lei contra a violência familiar – geralmente a mulher é a vítima. Existe também um projeto de lei contra a violência política contra as mulheres. Existem leis que de certa maneira tocam no tema de gênero e discriminação. Mas uma lei específica que regule uma discriminação étnica não existe. Sem dúvida, a presidência de Evo Morales, que tem significado uma marca na história da América Latina, está criando um certo encontro entre classes e um certo questionamento de ordem. A Bolívia, é muito marcada a discriminação social e étnica. É algo que se considerava natural, tanto pela classe oprimida, quanto pela classe dominante. A posse de Evo Morales, que é um representante indígena, fez mudar essa ordem estabelecida, é uma ordem que perpetuava os modelos de subordinação. Então, a classe dominante está perdendo força e a classe oprimida está ganhando mais força. E o medo da classe dominante é de que a situação se reverta. O choque cultural está mais forte nesse momento pela conjuntura que estamos vivendo.

OJ - Você já mencionou as iniciativas existentes que, de certa maneira, atuam contra a opressão da mulher, não há outras políticas do governo Evo Morales nesse sentido?

YP - Não. A não ser esse projeto de lei contra a violência política.

OJ - Haverá?

YP - No momento, o governo de Evo Morales está se dedicando mais a temas econômicos do que sociais. Está descuidando um pouco da parte social para centrar-se mais na parte econômica. No nível social está havendo uma reforma educativa, que tem o objetivo de conseguir uma educação mais próxima das necessidades indígenas, porque a educação era mais ocidentalizada. O que se quer resgatar é o sistema andino que está sendo perdido. A reforma educacional está andando um pouco por esse lado. Por outro lado, o que quer o governo Evo é fiscalizar toda a educação, quer que não haja colégios e universidades particulares, isso está causando muita controvérsia no país. Esse é um dos conflitos. Por exemplo, a matéria de religião, no sistema andino não existe Deus do ponto de vista católico. Segundo a constituição do Estado, é obrigatório para todas as entidades educativas, tanto públicas quanto particulares, oferecerem a matéria de religião. E nesta reforma educativa, se está acabando com essa matéria. Então, a classe urbana dominante tem criado muita resistência e a Igreja também. Segundo a constituição política do Estado, a religião oficial é a católica, isso está causando muita controvérsia.

OJ - Em nível geral, como está a aprovação ao governo Evo Morales?

YP - Evo Morales ganhou com 51% dos votos, que é algo único na história do país e da democracia jovem que temos. Levando em conta também que 70% aproximadamente da população boliviana é indígena, Evo tem maior apoio desse setor. Sem dúvida, na classe média há um pouco mais de oposição, eles usam padrões de avaliação diferentes dos que usariam com qualquer outro presidente. Ficam na expectativa de ver o que está fazendo e onde irá se equivocar, precisamente devido à sua raiz étnica. Uma conversa muito comum na Bolívia é que o presidente não sabe falar porque sua língua materna é Aimará. Tivemos um presidente anterior, Gonzalo Sánchez de Lozada, que também não sabia, falava inglês, mas nunca foi questionado. Ao contrário, Evo Morales é muito mais questionado. Qualquer reforma ou mudança causa muito mais controvérsia, porque se põe à prova tudo o que ele representa por suas origens étnicas. Então, há maior resistência da classe média. Há também que se entender os receios desta classe média que se constitui como força importante do país. Comentários gerais são de que “o presidente é mais presidente dos indígenas e não é nosso presidente”. Então, está havendo um fenômeno social muito interessante que não está sendo abordado e seria muito importante fosse.

Juventude e Homossexualidade

Qual a relação entre opção sexual e construção de identidade? Segundo a coordenadora do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM) do Instituto de Medicina Social  da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Maria Luiza Heilborn, essa relação é muito mais flexível do que se costuma imaginar

Em entrevista ao Observatório Jovem, Malu Heilborn desconstrói o imaginário social sobre o tema da  homossexualidade. Ela é antropóloga e autora do livro Dois é par: gênero e identidade sexual em contexto igualitário (Rio de Janeiro, Garamond, 2004).

Observatório Jovem (OJ) - No artigo “Ser ou estar homossexual: dilema de construção da identidade sexual”, você mostra como a característica 'homossexualidade' às vezes, por escolha da pessoa, não define a própria identidade. Como se dá essa escolha?

Maria Luiza Heilborn (MH) - Nessa questão é importante chamar a atenção para o seguinte: existe o plano das práticas sexuais, o plano da identidade sexual propriamente dita e o modo como vai se articular a identidade sexual com a identidade social e também o plano da atração erótica por pessoas do mesmo sexo. Quando se faz pesquisa sobre homossexualidade é preciso distinguir esses três níveis que são muito diferentes. Uma pessoa pode ter fantasias com pessoas do mesmo sexo e jamais experimentá-las, mas pode achar que no final das contas ela é homossexual porque deseja alguém do mesmo sexo mesmo sem ter praticado. Então, não é a prática que define, nem tão pouco a identidade ou a atração. É o modo de articulação entre esses fatores e a maneira como os sujeitos colocam a sexualidade nas suas vidas. Porque o lugar da sexualidade não é central para todas as pessoas da mesma maneira. Às vezes, as pessoas podem construir sua identidade sexual de maneira a ser o ponto central da apresentação de si no mundo, outras podem secundarizar a identidade sexual, ou seja, elas são homossexuais, mas valorizam mais, na sua estratégia de elaboração de sua imagem pública, serem outras coisas, por exemplo, serem profissionais, serem de esquerda ou não, serem pessoas mais discretas ou mais extravagantes. Uma outra coisa que é fundamental é que a trajetória de vida incluindo a trajetória sexual é extremamente variada. São muito raros os casos de exclusividade de homossexualidade. Eu já fiz uma pesquisa quantitativa sobre isso, as pessoas em geral se iniciam com o outro sexo e depois é que elas vão experimentar, se desejarem, relações sexuais com pessoas do mesmo sexo. Isso não é irreversível. Pode-se experimentar ou deixar de experimentar. As identidades nesse sentido não são só flexíveis, são também situacionais. Os contextos fazem com que determinados aspectos da  identidade sejam mais fortes ou menos fortes.

OJ - Isso também se aplica à juventude?

MH - Sim. Eu estou falando de uma teoria geral sobre identidade social e homossexualidade. O que acaba acontecendo? Nesse artigo citado por você eu falo sobre duas moças. Elas são duas médicas, assumiram, fizeram um casamento, uma formalização da união delas através de um ritual de inversão, porque elas se vestiram de preto, ficaram de frente para o público... Elas estão celebrando o fato de estarem juntas, mas estão também fazendo uma bricolagem com a cerimônia de casamento para um conjunto de amigos para os quais a identidade de estarem juntas naquele momento e estarem apaixonadas uma pela outra e vivendo a conjugalidade lésbica é fundamental. Isso não quer dizer que elas vão necessariamente assumir a identidade lésbica para o resto da vida delas. Elas podem mudar de preferência, e outra coisa, elas podem administrar o segredo, porque como é uma identidade tendencialmente estigmatizada, dependendo do contexto social, elas podem, por exemplo, esconder das suas famílias, não revelar no trabalho, não revelar para os vizinhos que elas são um casal. Existem milhões de estratégias de administrar a identidade, sobretudo quando há uma hierarquia social entre a heterossexualidade e a homossexualidade, porque aí tem a questão do estigma nessa hierarquia. Há muitas maneiras de se gerenciar a vida sexual, se assume ou não assume que a identidade sexual é importante para a constituição da sua identidade social, que se compõe de família, parentesco, trabalho, religião, profissão, uma série de outras coisas. Para determinadas pessoas, de fato a identidade sexual aparece como elemento central na constituição de si, em geral os militantes. São os militantes que dizem: “tem que sair do armário”.
 
OJ - Essa escolha de deixar outras características se sobreporem à característica sexual na formação da identidade entra, então, em choque com a proposta do movimento homossexual?

MH - Entra em choque com a militância que acha que, na verdade, essas pessoas são covardes e estão em cima do muro tentando não enfrentar o preconceito. Em geral, hoje em dia, certos setores militantes tendem a denominar isso como auto-homofobia, como se a pessoa tivesse internalizado a homofobia.

OJ - E isso não acontece?

MH - O que se apresenta é que, como vários outros aspectos da vida, não apenas na questão da sexualidade, pode-se gerir usando o segredo. Eu não estou desqualificando a militância, eu a considero muito legítima. Eu só estou dizendo que é uma das estratégias possíveis de lidar com o tema da orientação sexual e que ela não deve ser prescritiva, dizer o que é o certo e achar que as outras pessoas que lidam de outra maneira estão erradas. É claro que para o movimento homossexual quanto mais pessoas se assumirem publicamente como homossexuais é melhor para a questão da visibilidade, mas isso pode ser uma camisa de força. Também tem um certo elemento de normativizar o ideal de ser homossexual. Então, nesse sentido, acaba sendo tão careta quanto a prescrição da heterossexualidade. Eu acho que aos sujeitos deve ser dada a possibilidade de articularem as suas identidades pessoais, que também são sociais, com um pouco mais de flexibilidade. Já sofremos os constrangimentos de gênero, social, racial...  A sexualidade não é o elemento único e exclusivo de nossas vidas. Isso é uma articulação complexa e, que, portanto, se assumir ou não se assumir, em que níveis se assume, em que contexto se assume é muito variável e depende muito das circunstâncias. Uma coisa importante que os movimentos homossexuais trazem claro é a necessidade do apoio aos momentos iniciais dos adolescentes e jovens, particularmente, quando eles começam a identificar eventualmente que tem atração sexual por pessoas do mesmo sexo. Evidentemente se esse jovem estiver em um ambiente de maior tolerância e respeito pela diversidade sexual, incluindo-se a família, facilita enormemente a possibilidade dele viver sem angústia e sem grandes traumas o reconhecimento do seu interesse por pessoas do mesmo sexo.

OJ - Como é a participação dos jovens homossexuais nesses movimentos?

MH - Poucos fazem parte. O movimento é uma parcela muito pequena da sociedade. Alguns grupos hoje em dia, através de subculturas juvenis, mais do que da sexualidade, movimentos de música, por exemplo, tem no estilo de vida, que vai muito além da sexualidade, a demonstração de que são homossexuais. Mas não é que eles estejam no movimento homossexual. Eles explicitam publicamente suas preferências sexuais. Mas isso se combina fundamentalmente com uma questão de estilo de vida. E há milhões de estilos de vida, tanto heterossexuais, quanto homossexuais, e, em geral, do ponto de vista da homossexualidade tende a se imaginar que a heterossexualidade é uma coisa única e os heterossexuais tendem a imaginar que a homossexualidade não tem essa variedade toda. O que eu tentava mostrar nesse artigo é exatamente como é possível gerir a apresentação da identidade sexual se a pessoa a tem. Existem trajetórias biográficas muito variadas de pessoas que mudam, uma hora estão namorando pessoas do mesmo sexo, outra hora do outro sexo. Não tem um caminho perfeito, linear. A pessoa pode ter experimentado e ter desistido, a pessoa pode ter tido uma vida heterossexual - isso é muito comum entre mulheres - e depois de um casamento terminado se descobrir interessada por mulheres. Há também jovens homens que tendem a ter experiências sexuais com homens e mulheres, isso é muito presente na literatura internacional, e depois fazem a escolha por uma vida só gay.  É uma multiplicidade de trajetórias biográficas associadas à sexualidade que é difícil falar de uma homossexualidade porque, inclusive, além da questão do interesse, vontade, atração e desejo de ter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo, ainda tem os elementos que combinam gênero e orientação sexual. Gênero tem a ver com aquilo que em um determinado ambiente social é reconhecido como sendo masculino/ feminino. O fato de uma pessoa ter desejo por outra não quer dizer que ela rompa com as prescrições de gênero atribuídas ao sexo biológico. Pode ser um homem homossexual masculino, pode ser um homem homossexual efeminado, como se chamava antigamente, pode ser andrógino,  elaborando a ambigüidade como uma estratégia de dizer “eu não sou uma coisa nem outra”. A mesma coisa se passa com as mulheres e entre as mulheres ainda há milhões de maneiras de elaborarem a sua lesbianidade. Podem ser mais ou menos masculinizadas ou aquelas que se chamavam algum tempo atrás de lipstick lesbian, ou seja, lésbicas de batom, que é aquela que usa todos os apetrechos que são convencionados como femininos em uma sociedade,  mas gostam de namorar com mulheres e não tem uma distinção de gênero no casal . Há casais que, marcadamente,  tem uma diferenciação de gênero e outros que buscam não ter essa diferenciação.

OJ - Há, então, uma quebra de um estereótipo de homossexualidade, por exemplo, de que as lésbicas são masculinizadas?

MH - Exatamente. Mas veja só, esse exemplo que você citou, essas mulheres masculinizadas também existem, não só existem como também é legítimo existirem, é um modo de estar no mundo onde há uma preferência por usar determinadas vestimentas, cortes de cabelo, postura corporal, forma de falar, de gesticular, tudo isso. É claro que uma mulher lésbica masculinizada tenderá a ser mais estigmatizada do que uma mulher lésbica feminina porque aí tem o duplo "desvio" da orientação sexual e da performance de gênero. A lésbica feminina passa melhor em determinados contextos porque elas não têm as duas transgressões. É claro que isso vai depender também do ambiente social no qual as pessoas estão porque a rede de relações na qual se está pode aceitar melhor a homossexualidade ou no tipo de trabalho que se tem, pois revelar-se lésbica ou gay pode ser um elemento que perturbe a carreira. Em determinados ambientes é assim, em outros não. Em alguns é até positivo,  no meio artístico isso não tem problema nenhum.

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A construção da categoria juventude rural na Reforma Agrária

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De acordo com a pesquisadora Elisa Guaraná, a juventude inserida em movimentos sociais camponeses vem possibilitando novos conceitos e olhares sobre a própria categoria Juventude Rural. Antonio Francisco de Lima Neto, 24 anos, é um dos jovens militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em entrevista ao Observatório Jovem, ele fala sobre como o MST tem pensado a juventude e de que forma os jovens se organizam no movimento. A própria história de vida de Antonio, mais conhecido como Neto, traz questões interessantes sobre como jovens que não estão necessariamente no campo se identificam com a luta dos trabalhadores rurais e passam de certa forma a integrar a categoria juventude camponesa.

Observatório Jovem (OJ) - Conte um pouco da sua história. Você nasceu no campo?

Antonio Neto (AN) - Eu nasci e me criei em Recife. Minha mãe morou até os 15 anos em um engenho de cana de açúcar, em uma cidade na Zona da Mata de Pernambuco chamada Água Preta, mas nunca trabalhou diretamente no campo. Depois que o meu avô morreu, foram para o Recife e construíram uma vida toda lá. Hoje, minha mãe é funcionária pública, trabalha no IBGE. Militei um tempo no movimento estudantil secundarista. Quando entrei na universidade em 2002, comecei a militar no MST, trabalhava na loja da reforma agrária, em Recife. A partir daí fui assumindo algumas tarefas políticas do Movimento e comecei a entrar mais na estrutura orgânica. Fazem quatro anos que eu estou no MST. Estava no primeiro período da faculdade, esse ano eu me formei em história e a gente contribui nessa discussão de juventude no Movimento Sem Terra.

OJ - Como a juventude do movimento se organiza?

AN - A discussão de juventude no movimento já é antiga, mas ela é muito mais de acúmulo individual, muito menos organizativo e muito menos um coletivo da organização. Esse ano, o MST entendeu que a questão da juventude é uma prioridade para estarmos não só discutindo, mas pautando políticas específicas. Esse ano foi um ano mais de estudo e de elaboração de linhas políticas e elaboração teórica. Fizemos um diagnóstico sobre o que afeta não só a juventude rural, mas também a juventude urbana, e como é que nós do MST vamos nos inserir nesse debate e nessa discussão e o que queremos com a juventude. Então, basicamente para nós esse ano, foi esse espaço de acúmulo teórico e metodológico para a partir do ano que vem centrarmos fogo na discussão efetiva. Não só na discussão de seminário, fazer ação direta, mas também sem deslocar o debate da juventude da discussão estratégica, da discussão da organização. Não queremos só pensar em juventude para lutar para políticas públicas que sejam necessárias para a permanência do jovem no campo. Isso é importante, mas o nosso foco principal é como podemos colocar essa juventude que está lá nos assentamentos e acampamentos da reforma agrária para pautar a questão da luta pela reforma agrária e da luta por outra sociedade que é nosso grande objetivo.

OJ - A luta central dos jovens do MST é pela reforma agrária?

AN - A luta pela reforma agrária que é a nossa bandeira, do MST, que é onde o movimento cresceu nesses 22 anos, mas também crescemos no acúmulo teórico sabendo que só a reforma agrária para nós não serve. A reforma agrária é um meio na luta por uma sociedade que acreditamos e estamos construindo, uma outra sociedade que não é essa sociedade capitalista. É a nossa bandeira de luta, mas não perdemos de vista a discussão estratégica de um outro projeto de sociedade. E a juventude se encaixa também nessa discussão. Ao mesmo tempo discutirmos o que vamos querer e o que vamos fazer para tentar criar uma oportunidade para que o jovem assentado ou acampado continue lá no acampamento ou no assentamento, mas também o que ele pode construir para que a gente possa melhorar a educação, o acesso ao trabalho, à renda, à cultura e ao lazer. É necessário criarmos políticas públicas para mantermos os jovens no campo? É. É extremamente necessário, mas essa não é a nossa luta principal e no MST não só lutamos por políticas públicas, costumamos dizer que queremos a nossa juventude derrubando cerca, abrindo cadeado de latifúndio improdutivo, para que possamos dar continuidade à luta da organização dos trabalhadores rurais, não só na questão da juventude. E a juventude tem um papel importantíssimo e imprescindível nesse momento que estamos vivendo, por isso, nós do MST percebemos que a juventude precisa estar pautada. E também quando falamos em juventude, não é só pensar nos jovens do campo porque a nossa juventude em geral, rural e urbana, é atingida basicamente pelos mesmos problemas. Por exemplo, a questão da educação, o jovem da periferia de uma grande cidade é atingido pelo mesmo problema que o jovem do assentamento é atingido, porque no assentamento não temos escola que efetivamente garanta a ele a sua continuidade no campo. Basicamente temos hoje na maioria dos nossos acampamentos escolas de 1ª a 4ª série. Depois disso, o jovem tem que sair do acampamento para estudar na cidade. O tema da educação afeta tanto o jovem da zona urbana, como o jovem da zona rural. Atinge muito mais fortemente a juventude rural porque o campo sempre foi pensado em segundo plano e como uma transferência do modelo feito na cidade. A escola rural hoje foi pensada de forma a levar o mesmo modelo da escola da cidade para o campo, sem respeitar as especificidades do campo, o que a comunidade pode contribuir para a melhoria da escola. A questão da educação, da saúde, do trabalho e renda, do lazer, do esporte, são temas que afetam tanto a juventude rural como urbana. Mas na cidade hoje garantir esses direitos já é complicado, imagine no campo. Imagine hoje nesse processo de organização do campo a partir da lógica de agronegócio, que é uma mera reprodução do modelo colonial, onde produzimos em larga escala, em grandes propriedades e só para a exportação. É a mesma lógica que historicamente vem sendo reproduzida há 506 anos. Difundem a idéia de que o agronegócio é o grande avanço tecnológico e as pessoas e movimentos que lutam pela reforma agrária e pela agricultura camponesa e familiar são atrasados, que querem voltar à idade da pedra. Mas entendemos que essa modernidade do agronegócio é uma modernidade conservadora porque ela mantém a mesma estrutura historicamente montada no país. Então, a questão da juventude também perpassa por esse questionamento de modelo agrícola, para criarmos as condições reais da juventude poder trabalhar dentro do assentamento.

OJ - Você acredita que  há alguma relação entre o jovem permanecer na terra e participar de algum movimento de juventude rural?

AN - Claro. Em vários assentamentos existem experiências em relação à juventude que não conseguimos sistematizar bem ainda, mas para um jovem participar da discussão de juventude dentro de um assentamento é extremamente importante e necessário que ele se sinta parte dessa estrutura, que ele se sinta um jovem do campo. Infelizmente hoje a sociedade reproduz uma lógica de que o campo é atrasado. As próprias professoras que vão dar aula dentro dos assentamentos dizem: “Meu filho, estude para você não ser igual a seu pai que trabalha na terra, estude para ir para a cidade ganhar dinheiro”. Como se a cidade fosse o único espaço onde fosse digno de sobreviver e como se trabalhar na terra, ser agricultor, fosse uma coisa atrasada, indigna. Passam aquela imagem do trabalho pesado que é ruim, que a juventude não quer pegar na enxada, isso é mentira. Claro que tem uma parte dos jovens que não quer trabalhar no campo, não porque o trabalho é pesado, mas porque eles pensam em outras coisas para a vida deles e isso faz parte de fazermos com que o jovem saiba o que ele quer. Se ele quer ficar, tem que ter as mínimas condições para que ele possa ficar. Tem que ter escola, posto de saúde, estrada, mas ele tem que ter essa autonomia também de dizer se ele quer ou não ficar, mesmo tendo essas condições.

OJ - Então, a militância no movimento social valoriza o campo para o jovem?

AN - Isso. Sempre costumamos dizer que a militância para nós é perspectiva de vida. Porque hoje vivemos em um mundo onde não existe trabalho, não existe um mínimo de condições do jovem sobreviver. E a militância para nós é perspectiva de vida mesmo. Fazer militância e luta social para uma outra construção de vida, para garantir que a gente pense no futuro e principalmente fortalecer a nossa luta enquanto movimento rural.

OJ - Mas quem são os jovens para o MST?

AN - Essa é uma pergunta que passamos cinco dias na semana passada sentados na cadeira estudando para ver o que era jovem para o movimento e ainda não conseguimos responder. Chegamos a conclusões desde as mais simples, que é uma faixa etária, que é aquele senso comum da faixa etária como uma transmissão transição? da infância para a idade adulta, até discussões como a de que juventude abrange o mundo todo, que joga para o alto essa questão da faixa etária e leva em conta até o se sentir jovem, assim poderia ser jovem até aquele cara que tem 50 anos e diz que jovem é estado de espírito. Mas aí essa discussão foi muito rica porque ao mesmo tempo em que não conseguimos fechar essa discussão, ela dá pistas e indicações interessantes para tocarmos para onde queremos ir.

OJ - Quais as pistas que vocês acharam?

AN - As pistas também não são tão fechadas assim. O problema é que é muito mais teórico. Conceituar juventude, se você perguntar para a professora Elisa Guaraná ela vai dar uma explicação histórica, de que uma sociedade patriarcal enxerga esse jovem como uma transição e tal, e essas são pistas interessantes. A juventude enquanto conceito é uma construção histórica, não é uma construção meramente teórica, é uma construção histórica para dizer que aquilo é juventude. Mas as pistas principalmente em relação à construção histórica, a esse modelo de sociedade patriarcal, centrado na figura do pai adulto é importante para sabermos. Mas também tem alguns aspectos biológicos, físicos que caracterizam a juventude. Mas a gente procurou também não se restringir a isso.Tem gente que diz que juventude é quando existe vigor físico, mas pode ter um cara de 18, 20 anos que não agüenta dar uma carrerinha daqui na esquina, o cara chega lá e já está morrendo, então se for assim ele vai deixar de ser jovem porque não tem vigor físico. Então, tem algumas indicações que sabemos que não é por ali que temos que ir. E quando sabemos para onde não queremos ir primeiro, já é um caminho, não é o mais fácil. Mas como nesses 22 anos de luta nunca enfrentamos nada fácil, é um caminho que estamos tentando ainda se achar em relação a conceituar o que é juventude. Passamos cinco dias em discussão.

OJ - E a partir desses cincos dias de discussão, o que vão fazer?

AN - Tiramos algumas indicações sobre o que queremos com a discussão de juventude. Uma é o que já falei. Queremos nossa juventude na trincheira da luta. Nosso foco principal estratégico é que a juventude possa dar continuidade à luta do MST, no sentido de construir uma reforma agrária digna não só para a juventude, mas para todo o mundo, para mulher, para menino, papagaio, periquito, tudo. Mas construir uma sociedade que realmente abarque essas coisas. Então, o foco principal é esse, colocar nossa juventude na luta, mas ao mesmo tempo lutar também por algumas conquistas que são pontuais e efetivas, como, melhoria na educação, lutar por políticas que realmente permitam acesso a trabalho e renda, criar algumas políticas que possibilitem a juventude acesso à cultura, lazer, esporte. Mas o nosso foco principal em relação à juventude é na luta estratégica principalmente, de construir uma unidade entre as forças de esquerda desse país, para construirmos um projeto que seja unitário entre a maioria das forças pelo menos e tentar a partir da juventude construir essa unidade. E essa unidade também é feita em outro método de atuação, avaliamos que o trabalho com a juventude requer um método diferenciado do que a gente trabalha com o nosso público que sempre trabalhamos. É um método que não temos definido, estamos construindo.

OJ - Você está falando de um diálogo do MST com a juventude em geral?

AN - Isso. Esse seminário que fizemos, que foi da juventude do movimento, ele não foi somente com o MST, discutimos com outras organizações e movimentos parceiros, que historicamente estão conosco na luta pela reforma agrária.

OJ - Quais são os movimentos?

AN - Os diferentes movimentos que compõem a Via Campesina. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), a Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (Feab), a Pastoral da Juventude Rural (PJR), a Consulta Popular, o Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD) e o movimento negro. Tem uma série de movimentos que estão nesse nicho de discussão da juventude e que se colocou no mesmo lugar para tentar sair de lá com uma coisa mais ou menos construída, no sentido de garantir que a juventude possa construir quais são as políticas públicas efetivas para a juventude, mas construir também um outro espaço de sociedade. Muita gente pode ficar dizendo que o MST discute juventude para fazer revolução, sim, mas é isso mesmo que queremos, queremos também saber de políticas públicas, mas políticas que representem ganhos efetivos para a juventude rural. Por exemplo, existe um programa para a juventude rural que fazemos críticas ferrenhas, que é o Nossa Primeira Terra, que reproduz a mesma lógica de mercado de compra da terra. Quando esses jovens são contemplados pelo projeto já passam a dever, porque é crédito fundiário, não é a reforma agrária, costumamos dizer que é o Nossa Primeira Dívida.O jovem está ali dentro de casa no assentamento, não tem espaço para ficar porque o pai toma conta de todo o lote do acampamento, faz com que o filho trabalhe na roça do pai e como a família é patriarcal o pai que detem todo o poder lá dentro, produção, colheita, venda, o dinheiro fica para o pai e passa pouca coisa para o filho. Quando o jovem sente essa necessidade de sair do lote, precisamos criar políticas que realmente garantam a esse jovem acesso a terra, a crédito, a seguro agrícola, mas que não necessariamente tem que ser nos moldes que já existem. Nós temos que propor outros tipos de políticas públicas.

OJ - Você disse que querem ter crédito, mas ter crédito significa ter dívida. O Nossa Primeira Terra não é considerado legal para vocês justamente por isso. Então, como ter acesso a crédito sem produzir essa dificuldade?

AN - A questão do crédito é uma discussão muito delicada. Porque ao mesmo tempo que o crédito é necessário para produzir e conseguir ter retorno econômico para a sua propriedade, ele precisa ser tratado de uma forma séria. O crédito do Pronaf, por exemplo, é baixo, o rebate é muito mais baixo ainda, os juros são muito altos. Outro problema, quando você entra com um projeto num banco para sair com um Pronaf é sempre pensando nas épocas das culturas, por exemplo, lá no Nordeste, se você quer plantar abacaxi, você tem um tempo da natureza que é o bom para você plantar abacaxi. Só que você entra com um projeto alguns meses antes para que dê tempo dele tramitar e sair o dinheiro na época boa para plantar abacaxi, mas o dinheiro não sai, sai quando termina a época boa para plantar abacaxi. Aí como é que você vai plantar? Então, o crédito precisa ser tratado de uma forma séria como política de estado, que tenha as mínimas condições para que a juventude e o trabalhador rural tenham acesso a ele.

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