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Educação, saúde... por último, o lazer!

O lazer é entendido como um direito da juventude? Quem responde é o professor da Escola de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Vitor Andrade de Melo

Em entrevista ao Observatório Jovem, o pesquisador fala sobre a dificuldade de acesso de grande parte da juventude aos equipamentos culturais da cidade e afirma: “o problema não está apenas na falta de dinheiro, mas na educação para o lazer, para as atividades culturais”. Vitor Melo é também coordenador do Grupo de Pesquisa "Anima": Lazer, Animação Cultural e Estudos Culturais, da UFRJ.

Há um conceito de lazer?

Existe um conceito de lazer que tem sido mais aceito até os dias de hoje. É sistematizado por um sociólogo francês chamado Joffre Dumazedier, que, desde a década de 60, está envolvido com a sociologia do trabalho e em função disso ele começou a estudar o não trabalho. De acordo com ele, para conceituar lazer utilizaríamos duas grandes categorias. A primeira é o tempo, que é uma categoria mais de natureza social, o tempo disponível, ou seja, fora do trabalho e das obrigações, da decorrência do trabalho também, porque, por exemplo, quando você está pegando um ônibus para ir da sua casa para o trabalho, você não está no seu tempo de trabalho, mas é um tempo em decorrência do trabalho, então, essa seria a categoria tempo. A outra categoria, seria atitude, que é a busca do prazer. Não necessariamente você vai obter prazer na atividade e nem estou dizendo que prazer é algo somente possível nos momentos de lazer. Espera-se que no trabalho também as pessoas tenham prazer. Mas uma das marcas dos momentos de lazer seria a busca do prazer, então, se fôssemos dar um conceito de forma geral e considerando essas duas categorias, as atividades de lazer seriam atividades culturais, sempre atividades que devem ser entendidas no âmbito da cultura, vivenciadas, o que significa que podem ser fruídas ou praticadas, quer dizer, ou você assiste ou você participa ativamente, vivenciadas em seu tempo disponível, tendo em vista a busca do prazer.

Pode-se entender esse tempo disponível como tempo livre?

Eu falo sempre tempo disponível porque existe uma grande discussão conceitual sobre a idéia de tempo livre. Alguns autores mais ortodoxos vão dizer que não é possível tempo livre em uma sociedade que não tem liberdade. Eu também não estou de acordo com essa visão ortodoxa, mas para evitar problemas conceituais eu falo tempo disponível, aquele tempo livre do trabalho e das obrigações. Esse conceito considera basicamente o lazer como um fenômeno moderno típico da revolução industrial, do modelo de trabalho formal, onde se observa um tempo bastante artificializado. O homem já não mais trabalha pelo tempo da natureza, ele tem nove horas de trabalho hoje e quando artificializamos o tempo do trabalho tendemos também a artificializar todos os outros tempos sociais. Isso não quer dizer que sociedades pré-industriais não tinham diversão, o que eu quero dizer é que após a revolução industrial a modernidade adquire características próprias. O que vai acontecer é que a nova dinâmica do trabalho tem colocado esse conceito em cheque. Eu diria que possivelmente daqui a alguns anos teremos um novo conceito de lazer porque as fronteiras entre trabalho e não trabalho já não estão tão precisas quanto eram no início da organização do modelo de produção fabril.

Por que essas fronteiras não são tão mais visíveis?

Pelas novas configurações do capitalismo. Por exemplo, com o desenvolvimento da rede internacional de comunicações, da qual a internet hoje é a sua faceta mais conhecida, já tem empresas onde todo mundo trabalha em casa. A lógica do trabalho dentro de casa em certo sentido é muito mais perversa do que o trabalho fora de casa porque você não tem uma marca da jornada de trabalho, você acorda e começa a trabalhar e só termina quando acaba seu número de tarefas para aquele dia, em compensação você pode parar para descansar, ou almoçar ou ainda para se divertir. Essa nova lógica de trabalho faz com que você já não tenha mais como antigamente o tempo de trabalho o não tempo de trabalho. Da mesma forma, já tem alguns estudiosos notadamente norte-americanos que estão estudando os impactos da internet na reorganização do tempo de trabalho. Todos nós trabalhamos hoje por windows, temos várias janelas abertas, a pessoa está trabalhando na mesa de computador, mas está com o MSN aberto, com o jogo aberto, com um outro site aberto, então você acaba misturando as lógicas. Com isso me parece que estamos vivendo uma nova organização do tempo de trabalho, inclusive com certa proximidade do modelo de produção industrial com o modelo de produção artesanal. Estamos de certa forma vendo o rompimento dessas fronteiras clássicas e estáticas entre trabalho e não trabalho. Eu não sei se isso vai ser bom para o trabalhador, eu desconfio que vai ser complicado, que vamos ter cada vez menos tempo de lazer, cada vez mais trabalho e isso inclusive está sendo gerado por essa própria dinâmica dos meios de comunicação. Se os meios de comunicação trouxeram uma série de benefícios eles também trouxeram problemas ligados a essa reorganização dos nossos tempos sociais.

Você acredita que o lazer é entendido como um direito para a população em geral, e, mais especificamente, para a juventude?

O lazer ainda não é entendido como um direito e se é entendido é como um direito de menor hierarquia perante aos outros. Primeiro a educação, depois a saúde... E por último seria o direito ao lazer. Chamamos isso de hierarquização das necessidades básicas. Isso é mais forte nas sociedades que estão em situação de risco. Se você não tem educação, casa, comida, você tende a achar isso mais valorizado do que o lazer, que parece alguma coisa acessória ou menos importante em função mesmo da lógica moral da sociedade capitalista, que estabeleceu a centralidade da categoria trabalho na organização dos direitos sociais. A própria definição do conceito de lazer considera a centralidade do conceito trabalho. Então, quando o lazer é encarado como direito é encarado como um direito menor ou de forma instrumental, ou seja, é importante ter lazer para tirar as crianças das drogas, é importante ter lazer para tirar as crianças do mal caminho, como se essa fosse a função dos momentos de lazer.

Fala-se muito em preencher o tempo do jovem...

Exatamente, que também tem ligação com uma outra lógica moral da sociedade capitalista: “cabeça vazia, oficina do diabo”. Isso, aliás, se articula com a lógica judaico-cristã que de alguma forma sustenta ou se articula complexamente com a manutenção da lógica da sociedade capitalista. Mas, eu diria que existem alguns dados bem interessantes. O Fábio (Peres), membro do nosso grupo de pesquisa sobre o lazer, a animação cultural e estudos culturais - Grupo Anima , está fazendo doutorado em Saúde Pública na Fiocruz. No trabalho de mestrado, ele entrevistou lideranças da Fiocruz para ver que espaço o lazer ocupava na sua agenda de reivindicações e surpreendentemente o lazer ocupou um espaço que era maior do que imaginávamos antes – um espaço muito pequeno. Então, esse espaço não é muito pequeno. Mas, majoritariamente, o lazer é encarado a partir de uma lógica funcional.
 
A pesquisa Perfil da Juventude Brasileira, de 2003, mostra que diante da pergunta sobre quais atividades os jovens desenvolviam no tempo livre 91% disseram que assistiam à televisão. A atividade ficou em primeiro lugar dentre uma série de atividades sobre as quais os jovens respondiam se desenvolviam ou não. Como você avalia esse dado?

Esse dado não nos surpreende, temos alguns trabalhos no nosso grupo de pesquisa que apontam para essa tendência. Estamos chamando isso de privatização das vivências de lazer. As pessoas têm cada vez menos dinheiro, cada vez menos educação, educação no sentido de que elas não são educadas para o tempo livre, cada vez menos estímulo e oportunidades para sair de casa para os seus momentos de lazer. Isso foi substituído pelos meios de comunicação, que ocupam esse lugar de mediação entre o mundo e a realidade. Basta dizer, que apenas 7% das cidades brasileiras, pelos dados do IBGE, possuem cinema, por exemplo. Poucas cidades têm teatros, museus, bibliotecas ou as têm mal aparelhadas. Mas, muitas cidades têm locadoras. Mesmo na cidade do Rio de Janeiro, o Fábio desenvolveu um indicador chamado Idac, Indicador de Desenvolvimento e Acesso Cultural. O Idac permite não só mapear onde estão os equipamentos culturais da cidade, como permite mapear a desigualdade de acesso em função da proximidade da residência. Assim, vimos onde estão os cinemas da cidade, os museus, dividimos isso pelas regiões e calculamos. Nós chegamos ao dado de que a zona oeste do Rio de Janeiro está 95% defasada em relação ao centro e zona sul da cidade de oportunidades de acesso a cinema, teatro, museu e etc. Isso nós não estamos discutindo nem a qualidade do que está sendo exibido. No mapeamento dos cinemas do Rio de Janeiro, por exemplo, o Rio que é uma cidade privilegiada em relação ao restante do país, já que temos hoje mais de 160 salas de cinema, quando olhamos as salas há até certa distribuição equânime, contudo, as salas que passam filme de uma lógica diferenciada do filme de Hollywood não existem do centro da cidade para lá, apenas do centro para a zona sul, tirando a Barra da Tijuca, que  classificamos como uma área a parte. O que vai acontecer é que temos uma população que mal tem dinheiro para as suas necessidades básicas, não é educado para o seu tempo livre, para o lazer. Os equívocos começam na própria escola. Nossa escola valoriza demasiadamente determinados conteúdos e desvaloriza outros que poderiam ser de grande validade para ampliar as vivências culturais dos alunos. As nossas famílias que seriam a unidade básica de animação cultural também nem sempre são preparadas para fazer a mediação cultural dos nossos jovens. Então, os nossos jovens não têm dinheiro, não tem educação, não tem o equipamento perto de casa, o que lhes resta? Majoritariamente ficar em casa vendo televisão ou reproduzir os mesmos divertimentos que são comuns, ir para o samba, para o pagode, para o futebol... Não estou querendo desvalorizar esses divertimentos, só quero dizer que seria interessante que as pessoas tivessem estímulos e fossem educadas adequadamente para dividir o seu tempo livre entre futebol e museu. Não tem nada que exclua a possibilidade de alguém ser torcedor de um time de futebol e de gostar de qualquer linguagem artística.

Gostaria que você comentasse também outros dados. Uma outra pesquisa, Juventude Brasileira e Democracia, concluída em 2006, mostra que o lugar mais visitado pelos jovens nos momentos de lazer é o shopping, independente de classe social. A ida ao shopping ficou em primeiro lugar nas atividades de lazer de jovens das classes A, B, C, D e E de sete regiões metropolitanas brasileiras. Já a 2ª atividade mais realizada se diferencia de acordo com a classe, para as classes D e E fica em 2º lugar a visita a parques e praças e para as classes A, B e C o cinema ocupa a 2ª posição...

Os shoppings acabaram se apresentando como a grande alternativa de lazer das cidades, porque supostamente são seguros, supostamente tem conforto, paralelo a isso observamos o declínio de formas tradicionais de organização comunitária. Por exemplo, os clubes de bairro. Fizemos um pequeno levantamento quando vínhamos de Santa Cruz até aqui zona sul - centro cada bairro tinha um clubinho pequenininho. Esses clubes foram todos fechando as portas, em função de que? A classe media está cada vez menor, da própria falta de estímulo da busca por esse espaço comunitário. Um outro fato interessante é a organização de festas comunitárias, que hoje são cada vez menos festas comunitárias e mais festas empresariais.  Por exemplo, o fenômeno das festas juninas. Hoje tem uma liga de quadrilha que organiza, as fantasias são luxuosíssimas. E um outro fato interessante também é que a cidade hoje tem quase o mesmo número de cinemas que teve no maior momento de cinemas da sua história. Em 1955, a cidade teve em torno de 175 salas de cinema. Mas veja, em 1955, quase todos os bairros do Rio de Janeiro tinham cinema, hoje apenas cerca de 20 bairros tem cinema e o total de salas é quase o mesmo. Perdemos os cineminhas de bairro. De onde eu vim, Bangu, tínhamos isso e agora temos os complexos de cinema, muitos deles dentro do shopping. A Tijuca que já foi a segunda Cinelândia fechou todos os cinemas de rua, tem cinemas no shopping e agora vai abrir mais seis salas. Então, vamos voltar a ter nove cinemas na Tijuca, mas todos eles dentro do shopping. A própria Cinelandia, se não fossem ali o resistente Palácio e o Odeon, o último que não fechou por iniciativa de um grupo de cinema alternativo junto com a Petrobrás, não teríamos mais cinema naquele que foi o grande palco do cinema nacional. Então, com esse declínio e entendendo o shopping dentro da lógica de uma sociedade do consumo, de uma sociedade do espetáculo, como vai dizer o filósofo Guy Debord, estimula cada vez mais consumir. Notadamente pelo impacto de uma série de imagens e de relações de imagens construídas o shopping acaba substituindo o espaço de outras formas de lazer. Eu queria dizer que eu não sou absolutamente contra shopping, o problema é que esse equipamento, que a priori não é nem um equipamento de lazer, é um equipamento de consumo, está substituindo outras formas de organização comunitária.

As pesquisas mostram que os jovens apontam como principal impedimento para participarem de atividades culturais a falta de dinheiro...

Quando trabalho com grupos sociais diversos é comum as pessoas falarem que não têm dinheiro. Mas quando colocamos na ponta do lápis, dá para ver que não é apenas uma questão de dinheiro. Por exemplo, para você ir ao Maracanã hoje se gasta mais dinheiro do que ir ao cinema, ou do que ir ao Centro Cultural Banco do Brasil, que é gratuito, ou ir ao Instituto Moreira Salles. Até a questão da distância, quem mora em Santa Cruz para chegar no Maracanã também é longe. Mais do que essa questão do dinheiro, é lógico que a questão da renda é importante, há uma questão aí de educação. Essa é uma questão bastante séria, que mesmo os projetos ditos sociais não dão conta, eles não dão conta de se constituírem enquanto pólos de mediação e animação cultural. Eles não dão conta da idéia de formação de público ativo que possa percorrer os espaços da cidade, reivindicar a cidade como sua e entender que o direito a lazer é um direito tão importante quanto qualquer outro direito. Nem mais nem menos. Tão importante quanto. Então, tem uma questão aí que me parece mais frugal, que poderia ser atacada imediatamente, que é a questão do desenvolvimento de iniciativas de educação para o lazer, para as manifestações culturais.

Aí entra também o papel da escola?

Aí entra também o papel da escola, que cumpre bastante mal o seu papel no meu modo de entender. É obvio que a escola continua sendo fundamental, mas me parece que ela é bastante anacrônica em relação ao momento em que vivemos. Mas aí também entra o papel dos projetos ditos sociais, aí também entra o papel da família, aí também deveria entrar o papel de qualquer instituição organizada preocupada com a educação, do estado...

Sobre a distribuição dos equipamentos culturais, se aqui na metrópole eles são mal distribuídos, se compararmos o interior com a metrópole também existe aí um vazio de equipamentos culturais muito grande, não existe?

Enorme. Eu coordenei um trabalho do nosso grupo junto ao Sesc do Rio de Janeiro em 32 municípios do estado. O nosso intuito era contribuir para a auto-organização comunitária no âmbito das atividades culturais e de lazer para que essa auto-organização pudesse constituir enquanto pólo de pressão solicitando co-gestão com o Estado em espaços de lazer. É lógico que existe tanto na capital quanto no interior um cem número de resistência a esse processo surgidas dos próprios jovens, o movimento hip hop, skatistas, alguns jovens ligados a manifestações da cultura popular... Mas majoritariamente no interior a escassez de equipamentos culturais é ainda maior, portanto, há uma grande preocupação com a juventude não ter o que fazer no seu tempo disponível, no entanto, com o desenvolvimento dos meios de comunicação o interior tem acesso às informações, à moda, aos costumes também da capital. Outra preocupação é o fato da própria sociedade do consumo e do espetáculo também buscar se apropriar desses mecanismos de resistência no sentido oposto daquele que foram gerados. O movimento hip hop que num primeiro momento é um movimento de resistência de organização juvenil também é tematizado na televisão, o seu sentido original é bastante modificado para se adequar à regra dessa nova “mercadorização”. Muitas vezes o hip hop também chega a esse jovem de novo já não mais como resistência ou ressignificação, chega como consumo o que não quer dizer que o consumo não possa servir como forma de organização. Eu gosto muito do Nestor García Canclini quando ele vai falar que é necessário uma educação para o consumo, não dá para se opor diretamente ao consumo. A questão é como é que a gente pode criar mecanismos de mediação e educação para que as pessoas possam também saber o que consumir, o que é e o que não é realmente importante consumir. De qualquer maneira, eu diria de forma especulatória, não de forma investigada, que se pegarmos um conjunto comunitário do subúrbio do Rio de Janeiro e identificarmos os hábitos de lazer vamos ver que são muito parecidos com os hábitos de lazer do interior. Então, mesmo que essas pessoas do subúrbio do Rio de Janeiro tenham possibilidade de acesso cultural isso não necessariamente significa que eles acessam. Ainda que a existência de equipamentos seja fundamental, isso não é garantia de que esses equipamentos sejam acessados. Alguns anos atrás o Festival do Rio de Cinema, que é o maior festival de cinema da América Latina, comemorava que tinha batido o seu recorde de vendas de entradas, cerca de 200 mil entradas. Então, veja, 200 mil entradas não são 200 mil pessoas, é muito menos que isso porque tem gente que vai ver dois ou quatro filmes. Vamos dizer que tenham sido atingidas 150 mil pessoas, quer dizer, o recorde do Festival do Rio foi de 150 mil pessoas em uma cidade que tem cinco milhões e 600 mil habitantes. Essas 150 mil pessoas são de um estrato sócio-econômico muito próximo, muito provavelmente aqui do eixo centro-zona sul, muito provavelmente de universitários, de pessoas que tem família com uma formação cultural diferenciada.  Outro dia vi uma coluna do Artur Xexéu que nos dá outro dado interessante para pensarmos o cinema. Ele falou que em 1986 uma entrada de cinema custava o mesmo preço de uma passagem de ônibus, eu ia muito ao cinema nessa época e me lembro que não era caro ir ao cinema... Hoje em dia... Imagine um jovem que tenha que pagar passagem, comida... Como é que uma família, mesmo que seja pequena, pai, mãe e dois filhos, vai poder ir ao cinema no domingo? Imagina o custo que daria isso para uma família! Fica mais barato alugar um DVD... Só que não tem comparação entre essas duas práticas de lazer, não tem comparação estética e não tem comparação com o ato de sair de casa para ir ao cinema, encontrar as pessoas, ir para rua...

Como fica essa questão da sociabilidade dos jovens com essa situação que você está apresentando?

Lógico que os jovens e todos nós continuamos resistindo, apesar das dificuldades encontramos possibilidades de continuar nos encontrando. Agora, não me parece que seja possível negar que houve e continua havendo uma redução perigosa das possibilidades de sociabilidades infantil e juvenil. Notadamente é possível ver isso nas crianças aqui do centro e zona sul, aqui não existe mais o conceito de rua para brincar, esse conceito se perdeu muito, talvez na periferia isso exista ainda mais fortemente, embora o próprio crescimento da violência esteja reduzindo isso. Pode ser que a realidade do interior seja diferenciada. Mas enfim, ainda que não possamos ter uma visão de que tudo se destruiu, me parece que mudou muito a dinâmica de construção de laços de sociabilidades entre os jovens no seu momento de lazer. Foram construídas alternativas, por exemplo, internet. Isso para os jovens que tem acesso, que também são minoria. O que eu estou tentando ponderar é que mudou a forma dos jovens se organizarem, talvez isso expresse uma debilidade e fragilidade das organizações juvenis políticas tradicionais.

A pesquisa Perfil da Juventude Brasileira mostra que 85% de jovens não participam de nenhum tipo de grupo e os grupos que apareceram do qual os jovens participam são religiosos, de música e dança, grupos políticos foi inexpressivo...

Exatamente, e percebemos na universidade como o movimento estudantil e a UNE estão fracos... O jovem não se organiza mais dessa forma, ele não se organiza na associação de bairro. Ele está se organizando a partir de uma outra lógica, quando se organiza. Me parece que não é possível comemorar esse dado. A redução desses laços de sociabilidades certamente traz problemas sérios para os laços de solidariedade e certamente traz problemas para que possamos pensar novas formas de reivindicação política surgida de grupos. É bem verdade que surgem outros movimentos que também encaminham essas reivindicações políticas, mas me parece possível afirmar que majoritariamente a juventude não está envolvida com atividades dessa natureza. Certamente a nova organização nos momentos de lazer é causa e conseqüência disso, ela expressa essa nova forma de organização juvenil e também a reforça.

A mesma pesquisa revela dados sobre o lazer fazendo uma diferenciação de gênero. Os dados mostram, por exemplo, a diferença na participação das jovens e dos jovens nos esportes – as mulheres participam menos. Entretanto, ao responderem sobre atividades que faziam no tempo livre, 66% dos jovens marcaram, entre outras, a opção ajudar em casa, ao passo que a mesma resposta foi dada por 94% das jovens. Pode-se falar em uma divisão sexual do lazer?

Certamente. Esses dados demonstram que esse discurso de que houve um avanço da presença das mulheres não pode ser encarado de forma tão otimista como é encarado por alguns. É óbvio e é motivo de comemoração que existe muito mais respeito e a presença das mulheres é muito maior em todos os ambientes sociais. Mas existem dados gravíssimos que mostram que existe muito a ser conquistado. Por exemplo, há ainda um grau enorme de violência contra mulher, há um número muito pequeno de mulheres em instâncias de poder. E aí nesse caso, percebemos que por mais que tenha mudado muito, as tarefas domésticas ainda são majoritariamente compreendidas como femininas. O próprio Dumazedier já na década de 60 falava do que ele chama de dupla jornada feminina, trabalham em casa e na rua. Eu diria que podemos hoje falar em tripla jornada feminina, as mulheres trabalham, estudam e cuidam da casa, os homens dão uma força. E acham que isso é mostrar que são diferentes porque estão dando uma força em casa. Ainda existem diferenças na possibilidade de acesso e ainda existem territórios que são majoritariamente entendidos como de um sexo ou de outro, como o esporte é majoritariamente entendido como masculino, de outro lado, a dança e a arte são majoritariamente entendidos como femininos, um menino que viesse a dizer que dança, que faz ballet poderia ser motivo de atitudes jocosas. Então, há muitas conquistas e o momento de lazer também é reflexo dessa necessidade de conquistas que estão em outros tempos sociais.

Como você acha que devem ser políticas públicas de lazer para os jovens?

Acho que a primeira coisa é que as políticas públicas de lazer não deveriam ser privilégios de uma secretária, isso é muito difícil em nossa organização política, mas deveriam ser de vários órgãos, inter-setoriais. Quem é responsável por políticas públicas de lazer? Não é só a secretaria de esporte e lazer nem só a secretária de cultura, aliás, as secretarias de cultura parecem sempre secretarias de arte e não de cultura porque entendem que seu papel é cuidar da arte, e mais, não da arte para o público, da arte como forma profissional. Deveria haver uma política pública inter-setorial de lazer que articulasse educação, cultura... É melhor chamar de arte porque aí fica mais tranqüilo, turismo, esporte... E mesmo secretaria de obras. Construir um parque público tem peculiaridades, temos exemplos disso no Rio de Janeiro. Havia uma pracinha feinha onde os idosos tinham construído um lugar para jogar cartas, aí veio um arquiteto e faz no lugar uma praça linda, com uma escada enorme. Mas aí com a escada os deficientes físicos e os idosos já tem dificuldades, tiraram a árvore sob a qual eles jogavam, a outra mesinha de cartas era feia, mas funcionava, a quadra ficou espetacular, mas as crianças não alcançam as tabelas, não dá para jogar futebol. Então, o arquiteto que constrói o equipamento de lazer também tem que ter sensibilidade para o que ele vai construir. O primeiro indicador é esse. Uma política pública de lazer para a juventude tinha que ter em vista que seu papel fundamental é de mediação e formação cultural. Lamentavelmente, grande parte dos investimentos em cultura, em lazer e em esportes nesse país são pela atividade fim e não pela atividade meio, são para a exibição de produtos, mas não adianta exibir produtos se as pessoas não estiverem sensibilizadas para isso. Vou dar um exemplo, a prefeitura do Rio de Janeiro se orgulhava de fazer algum tempo atrás o Panorama de Dança do Rio de Janeiro e cobrava uma quantia irrisória para as pessoas entrarem no espetáculo. Mas se as pessoas não têm um processo de educação para a dança, implementado cotidianamente, a prefeitura só está tornando mais barato o ingresso para quem já vai. Como eu disse que deve ser uma política de mediação, tem então que ouvir o jovem, não pode ser uma política pública traçada de cima para baixo. Mais do que ouvir os jovens e ouvir numa de “ah, vamos fazer o que o jovem quer”, mas em uma atitude de mediador, de negociação, mais do que isso é envolver os jovens ativamente na construção dessa política pública, permitir que ele se sinta protagonista. O grande lance é que as atividades de lazer começam antes que elas aconteçam, então, por exemplo, quando você vai ao cinema a sua atividade de lazer já começa quando você seleciona o filme, lê as críticas e interage criticamente com elas, o lazer passa por ir ao cinema em si e continua depois quando você conversa sobre o filme. Então, esse anterior à atividade em si, já é uma tomada de posição perante o que vai assistir, tem sim o caráter político. O que eu quero dizer é o seguinte, encarar o jovem como protagonista dessa proposta política significa dizer que já nesse momento anterior à atividade em si, estamos contribuindo para a formação política desse jovem, que vai se ver como parte ativa do processo. E não como um público que vai esperar alguém que lhe ofereça algo como uma benesse.

Para terminarmos, você pode falar um pouco sobre o conceito de animação cultural?

A animação cultural é uma discussão teórica ainda não muito desenvolvida no Brasil, mas muito forte em alguns países europeus, notadamente Espanha, França e Portugal, notadamente no contexto pós 2ª guerra mundial com a necessidade de reorganização da sociedade européia. Não existe um conceito único sobre animação cultural, tem uma autora espanhola que levantou cerca de 58 conceitos diferentes. O que o nosso grupo de pesquisa procura fazer é tentar trabalhar o conceito de animação cultural que não seja reflexo da animação cultural européia, quer dizer, que dialogue com um importante referencial teórico construído na Europa, mas que esteja adequado às necessidades peculiares da América Latina e do Brasil. Para nós a animação cultural é uma intervenção pedagógica, trata-se de um educador que vai promover essa intervenção, é uma atitude educacional sempre, uma intervenção pedagógica pautada na idéia radical de mediação. O animador cultural é um mediador. Idéia radical de mediação porque não significa que ele deva assumir, por exemplo, o papel clássico do educador artístico. Ele é mediador, ele não está interessado em dizer o que é melhor e o que é pior, ele está interessado em desobstruir os canais de acesso. Ele está interessado em sensibilizar as pessoas para que elas possam ter acesso à diferentes linguagens, diferentes alternativas de lazer, diferentes formas de pensar a realidade. Mediação cultural, acreditando que a cultura ocupa hoje um papel central dessa ordem social, acreditando que essa ação no campo da cultura pode contribuir para a construção de uma nova ordem social mais justa e fundamentalmente implementada a partir da idéia de fortalecimento de organizações comunitárias. Assim, a animação cultural não é só uma mediação cultural, ela é uma mediação cultural que espera contribuir para organizações comunitárias que possam se constituir enquanto fóruns de política, não da política clássica, mas de uma política adequada aos novos tempos, fóruns de política que possam se constituir enquanto órgãos de reivindicação e construção democrática. Se fossemos simplificar a visão do nosso grupo de animação cultural ela estaria no mesmo termo entre educação social e educação artística, educação artística no sentido amplo, educação estética. Para nós, o esforço primordial do animador é de educação estética porque é esteticamente que a sociedade do espetáculo e do consumo e este sistema exercem seus poderes mais nefastos. É uma educação estética problematizadora que vai colocar em cheque esse modelo único, muito aproximado, ou muito próximo da homogeneidade que é exibido nos meios de comunicação. Com isso eu também não estou dizendo que as pessoas engulam essa homogeneidade sempre, pelo contrário, nem os meios de comunicação são homogêneos e nem as pessoas. Para nós os indivíduos são sempre ativos perante o que é emitido, trata-se somente de contribuir para fortalecer esse grau de atividade dando a conhecer outros tipos de linguagem, de alternativa, de acesso e de conhecimento.