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Juventude e Homossexualidade

Qual a relação entre opção sexual e construção de identidade? Segundo a coordenadora do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM) do Instituto de Medicina Social  da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Maria Luiza Heilborn, essa relação é muito mais flexível do que se costuma imaginar

Em entrevista ao Observatório Jovem, Malu Heilborn desconstrói o imaginário social sobre o tema da  homossexualidade. Ela é antropóloga e autora do livro Dois é par: gênero e identidade sexual em contexto igualitário (Rio de Janeiro, Garamond, 2004).

Observatório Jovem (OJ) - No artigo “Ser ou estar homossexual: dilema de construção da identidade sexual”, você mostra como a característica 'homossexualidade' às vezes, por escolha da pessoa, não define a própria identidade. Como se dá essa escolha?

Maria Luiza Heilborn (MH) - Nessa questão é importante chamar a atenção para o seguinte: existe o plano das práticas sexuais, o plano da identidade sexual propriamente dita e o modo como vai se articular a identidade sexual com a identidade social e também o plano da atração erótica por pessoas do mesmo sexo. Quando se faz pesquisa sobre homossexualidade é preciso distinguir esses três níveis que são muito diferentes. Uma pessoa pode ter fantasias com pessoas do mesmo sexo e jamais experimentá-las, mas pode achar que no final das contas ela é homossexual porque deseja alguém do mesmo sexo mesmo sem ter praticado. Então, não é a prática que define, nem tão pouco a identidade ou a atração. É o modo de articulação entre esses fatores e a maneira como os sujeitos colocam a sexualidade nas suas vidas. Porque o lugar da sexualidade não é central para todas as pessoas da mesma maneira. Às vezes, as pessoas podem construir sua identidade sexual de maneira a ser o ponto central da apresentação de si no mundo, outras podem secundarizar a identidade sexual, ou seja, elas são homossexuais, mas valorizam mais, na sua estratégia de elaboração de sua imagem pública, serem outras coisas, por exemplo, serem profissionais, serem de esquerda ou não, serem pessoas mais discretas ou mais extravagantes. Uma outra coisa que é fundamental é que a trajetória de vida incluindo a trajetória sexual é extremamente variada. São muito raros os casos de exclusividade de homossexualidade. Eu já fiz uma pesquisa quantitativa sobre isso, as pessoas em geral se iniciam com o outro sexo e depois é que elas vão experimentar, se desejarem, relações sexuais com pessoas do mesmo sexo. Isso não é irreversível. Pode-se experimentar ou deixar de experimentar. As identidades nesse sentido não são só flexíveis, são também situacionais. Os contextos fazem com que determinados aspectos da  identidade sejam mais fortes ou menos fortes.

OJ - Isso também se aplica à juventude?

MH - Sim. Eu estou falando de uma teoria geral sobre identidade social e homossexualidade. O que acaba acontecendo? Nesse artigo citado por você eu falo sobre duas moças. Elas são duas médicas, assumiram, fizeram um casamento, uma formalização da união delas através de um ritual de inversão, porque elas se vestiram de preto, ficaram de frente para o público... Elas estão celebrando o fato de estarem juntas, mas estão também fazendo uma bricolagem com a cerimônia de casamento para um conjunto de amigos para os quais a identidade de estarem juntas naquele momento e estarem apaixonadas uma pela outra e vivendo a conjugalidade lésbica é fundamental. Isso não quer dizer que elas vão necessariamente assumir a identidade lésbica para o resto da vida delas. Elas podem mudar de preferência, e outra coisa, elas podem administrar o segredo, porque como é uma identidade tendencialmente estigmatizada, dependendo do contexto social, elas podem, por exemplo, esconder das suas famílias, não revelar no trabalho, não revelar para os vizinhos que elas são um casal. Existem milhões de estratégias de administrar a identidade, sobretudo quando há uma hierarquia social entre a heterossexualidade e a homossexualidade, porque aí tem a questão do estigma nessa hierarquia. Há muitas maneiras de se gerenciar a vida sexual, se assume ou não assume que a identidade sexual é importante para a constituição da sua identidade social, que se compõe de família, parentesco, trabalho, religião, profissão, uma série de outras coisas. Para determinadas pessoas, de fato a identidade sexual aparece como elemento central na constituição de si, em geral os militantes. São os militantes que dizem: “tem que sair do armário”.
 
OJ - Essa escolha de deixar outras características se sobreporem à característica sexual na formação da identidade entra, então, em choque com a proposta do movimento homossexual?

MH - Entra em choque com a militância que acha que, na verdade, essas pessoas são covardes e estão em cima do muro tentando não enfrentar o preconceito. Em geral, hoje em dia, certos setores militantes tendem a denominar isso como auto-homofobia, como se a pessoa tivesse internalizado a homofobia.

OJ - E isso não acontece?

MH - O que se apresenta é que, como vários outros aspectos da vida, não apenas na questão da sexualidade, pode-se gerir usando o segredo. Eu não estou desqualificando a militância, eu a considero muito legítima. Eu só estou dizendo que é uma das estratégias possíveis de lidar com o tema da orientação sexual e que ela não deve ser prescritiva, dizer o que é o certo e achar que as outras pessoas que lidam de outra maneira estão erradas. É claro que para o movimento homossexual quanto mais pessoas se assumirem publicamente como homossexuais é melhor para a questão da visibilidade, mas isso pode ser uma camisa de força. Também tem um certo elemento de normativizar o ideal de ser homossexual. Então, nesse sentido, acaba sendo tão careta quanto a prescrição da heterossexualidade. Eu acho que aos sujeitos deve ser dada a possibilidade de articularem as suas identidades pessoais, que também são sociais, com um pouco mais de flexibilidade. Já sofremos os constrangimentos de gênero, social, racial...  A sexualidade não é o elemento único e exclusivo de nossas vidas. Isso é uma articulação complexa e, que, portanto, se assumir ou não se assumir, em que níveis se assume, em que contexto se assume é muito variável e depende muito das circunstâncias. Uma coisa importante que os movimentos homossexuais trazem claro é a necessidade do apoio aos momentos iniciais dos adolescentes e jovens, particularmente, quando eles começam a identificar eventualmente que tem atração sexual por pessoas do mesmo sexo. Evidentemente se esse jovem estiver em um ambiente de maior tolerância e respeito pela diversidade sexual, incluindo-se a família, facilita enormemente a possibilidade dele viver sem angústia e sem grandes traumas o reconhecimento do seu interesse por pessoas do mesmo sexo.

OJ - Como é a participação dos jovens homossexuais nesses movimentos?

MH - Poucos fazem parte. O movimento é uma parcela muito pequena da sociedade. Alguns grupos hoje em dia, através de subculturas juvenis, mais do que da sexualidade, movimentos de música, por exemplo, tem no estilo de vida, que vai muito além da sexualidade, a demonstração de que são homossexuais. Mas não é que eles estejam no movimento homossexual. Eles explicitam publicamente suas preferências sexuais. Mas isso se combina fundamentalmente com uma questão de estilo de vida. E há milhões de estilos de vida, tanto heterossexuais, quanto homossexuais, e, em geral, do ponto de vista da homossexualidade tende a se imaginar que a heterossexualidade é uma coisa única e os heterossexuais tendem a imaginar que a homossexualidade não tem essa variedade toda. O que eu tentava mostrar nesse artigo é exatamente como é possível gerir a apresentação da identidade sexual se a pessoa a tem. Existem trajetórias biográficas muito variadas de pessoas que mudam, uma hora estão namorando pessoas do mesmo sexo, outra hora do outro sexo. Não tem um caminho perfeito, linear. A pessoa pode ter experimentado e ter desistido, a pessoa pode ter tido uma vida heterossexual - isso é muito comum entre mulheres - e depois de um casamento terminado se descobrir interessada por mulheres. Há também jovens homens que tendem a ter experiências sexuais com homens e mulheres, isso é muito presente na literatura internacional, e depois fazem a escolha por uma vida só gay.  É uma multiplicidade de trajetórias biográficas associadas à sexualidade que é difícil falar de uma homossexualidade porque, inclusive, além da questão do interesse, vontade, atração e desejo de ter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo, ainda tem os elementos que combinam gênero e orientação sexual. Gênero tem a ver com aquilo que em um determinado ambiente social é reconhecido como sendo masculino/ feminino. O fato de uma pessoa ter desejo por outra não quer dizer que ela rompa com as prescrições de gênero atribuídas ao sexo biológico. Pode ser um homem homossexual masculino, pode ser um homem homossexual efeminado, como se chamava antigamente, pode ser andrógino,  elaborando a ambigüidade como uma estratégia de dizer “eu não sou uma coisa nem outra”. A mesma coisa se passa com as mulheres e entre as mulheres ainda há milhões de maneiras de elaborarem a sua lesbianidade. Podem ser mais ou menos masculinizadas ou aquelas que se chamavam algum tempo atrás de lipstick lesbian, ou seja, lésbicas de batom, que é aquela que usa todos os apetrechos que são convencionados como femininos em uma sociedade,  mas gostam de namorar com mulheres e não tem uma distinção de gênero no casal . Há casais que, marcadamente,  tem uma diferenciação de gênero e outros que buscam não ter essa diferenciação.

OJ - Há, então, uma quebra de um estereótipo de homossexualidade, por exemplo, de que as lésbicas são masculinizadas?

MH - Exatamente. Mas veja só, esse exemplo que você citou, essas mulheres masculinizadas também existem, não só existem como também é legítimo existirem, é um modo de estar no mundo onde há uma preferência por usar determinadas vestimentas, cortes de cabelo, postura corporal, forma de falar, de gesticular, tudo isso. É claro que uma mulher lésbica masculinizada tenderá a ser mais estigmatizada do que uma mulher lésbica feminina porque aí tem o duplo "desvio" da orientação sexual e da performance de gênero. A lésbica feminina passa melhor em determinados contextos porque elas não têm as duas transgressões. É claro que isso vai depender também do ambiente social no qual as pessoas estão porque a rede de relações na qual se está pode aceitar melhor a homossexualidade ou no tipo de trabalho que se tem, pois revelar-se lésbica ou gay pode ser um elemento que perturbe a carreira. Em determinados ambientes é assim, em outros não. Em alguns é até positivo,  no meio artístico isso não tem problema nenhum.

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