Acervo
Vídeos
Galeria
Projetos


Jovens em comunidades tradicionais

Roda de Jongo no Quilombo do Campinho da Independência - Parati-RJO nome “comunidades tradicionais”  remete a antiguidade. Porém, a tradição se dá na transmissão de conhecimentos e práticas de certa cultura às novas gerações. O tradicional não deve ser confundido com o ultrapassado, na verdade, o tradicional é muitas vezes mais jovem do que se imagina

As pesquisadoras Hebe Mattos e Martha Abreu, concederam entrevista ao Observatório Jovem para comentar a marcante aparição dos jovens na pesquisa “Jongos, Calangos e Folias: Memória e Música Negra em comunidades rurais do Rio de Janeiro”  desenvolvida por ambas.

Folia de ReisEssa pesquisa começou com o Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi), projeto desenvolvido desde 1994. O Labhoi lançou o projeto Memórias do Cativeiro que fala sobre a memória dos habitantes da região cafeeira do Vale do Paraíba. Quando as primeiras experiências foram feitas e o livro “Memórias do Cativeiro” foi editado, o jongo apareceu de forma muito incisiva. Foi então construído o primeiro filme, baseado na edição do livro.

Nas comunidades cuja memória do jongo foi evidenciada, apareceram também, com muita força, calangos, fados e folias. A idéia de fazer o “Jongos Calangos e Folias” era juntar a memória social dessas comunidades com a história das práticas musicais e artísticas dessa comunidade. Falar quem faz o jongo, como ele é reproduzido e reinventado constantemente nesse grupo.

Martha Abreu nos explicou a diferença entre os três ritmos: “Calango é da família do samba e do forró, bem misturado. Com o mesmo tipo de canto do jongo - cifrado e em roda - a folia é de origem completamente africana: segue uma marchinha religiosa e tem hora que a marchinha pára, quando eles vão se deslocar, então entra um ritmo bem mais forte, que lembra bastante o samba e chega até a “namorar” o funk. Impossível saber quem influenciou quem. A garotada pára a folia, vai pro funk e volta para a folia.”

Não se pode pensar no jovem do meio rural como um tipo único. Assim como nos centros, o “jovem rural” apresenta-se como sujeito plural, como dito pelo pesquisador do Observatório Jovem, Paulo Carrano: “As narrativas sobre o ficar e o sair da comunidade são plurais e evidenciam a multiplicidade de expectativas, pontos de vista e lugares sociais de jovens de um quilombo, por exemplo.”

Ao falar da pluralidade do jovem de comunidades tradicionais, o Observatório Jovem indagou Hebe e Martha sobre a visão dos jovens sobre as relações que estes estabelecem entre as culturas populares juvenis e a tradição. Como os jovens integram ambas as culturas em suas vidas? Para as professoras, a relação deles é de muito envolvimento com a cultura tradicional, mas isso não impede que toquem musicas como o funk em suas festas.

Segundo Martha e Hebe, muitos dos que atuam como palhaços da Folia de Reis são jovens e nos seus versos de palhaço há uma interpenetração do funk e do rap. Para elas, estas são linguagens que podem se comunicar sem qualquer problema. Explicaram que a música afro no atlântico está em muitos dos ritmos da música popular. Está no jongo como também está no blues, que por muitos é visto como importado dos EUA. Assim, vários ritmos mantêm seus traços comuns.

Ao ser questionada sobre o uso das comunidades tradicionais pelo turismo cultural, Hebe ressalta que “Sempre há ganhos e perdas em mudanças, sempre tem uma negociação. A idéia de pureza (cultural) vende. Não é de agora, mas acho que as comunidades vão negociar bem isso. Você acaba estabelecendo e representando uma pureza que não existe mais. Em cima de um patrimônio que está ali. Acho que eles são sujeitos disso, não são objetos, não são dominados. Onde tem coletivo tem política, eles têm uma unidade. Entre a fazenda, a comunidade e o quilombo, há um processo complexo. O conflito existe mas existe o espírito de corpo.”

Palhaço da Folia de ReisApesar de serem pivôs nessa hibridação cultural, não se pode dizer que os jovens estão deixando de lado a parte espiritual da folia. Ao comentarem os “personagens” de sua pesquisa, as professoras contaram que “Existem, entre os jovens da folia, palhaços relativamente jovens, com um discurso muito tradicional.  Teve um que fez uma promessa porque o palhaço é um demônio e você tem que segurá-lo para não acontecer alguma coisa ruim. O Boquinha (palhaço de 19 anos) diz que ele é poeta, ele faz seus raps ou discursos de palhaço e que ele é o rei da palavra. Ele se vê como artista. A devoção ali é da mãe dele, ele tem outra relação (com a folia).”

Foi levantada pelo Observatorio Jovem a idéia da individualidade ser tida por diversos autores como uma das fortes marcas da atualidade. Nesse contexto, a cultura das comunidades tradicionais parece estar na contramão, uma vez que é baseada na coletividade. Apesar disso, a visibilidade que é dada hoje para tais comunidades é bem maior que no passado. Segundo Martha e Hebe, isso se dá por razões diversas, como a atenção que uma cultura coletiva chama, existência de novos meios de comunicação e uma real possibilidade de luta e por visibilidade.

A pesquisadora Martha Abreu comentou: “Talvez eles estivessem enfraquecidos até os anos 70; eles não tinham visibilidade. Ou realmente a gente só não estava vendo. Mas nos anos 70 tinha apenas uma aparição pontual. Não sei se não era bem visto pelos jovens, alguns senhores disseram que, quando jovens, tinham vergonha de dizer que dançavam jongo, por este sofrer fortes preconceitos.”

Para Hebe Mattos “É interessante que as pessoas tendam a pensar na globalização como individualizante. As duas coisas fazem parte do mundo globalizado: tem o lado do individuo e o calango tem o espaço do individuo. Mas ele tem que gerar identidades comunitárias como forma de se afirmar.”

A pesquisadora continua: “Eu acho que eles talvez ganhem mais valor. Mais do que desencaixe, está havendo uma pluralidade de sujeitos, que nem sempre é bom ou ruim, há uma imprevisibilidade. Há também os indivíduos coletivos. As famílias já existiam, eles estão conseguindo manter isso. Elas estão se transformando em agentes políticos hoje. Antes elas eram muito mais uma rede de apoio. As pessoas saiam e tinham lá sua rede de apoio. Agora há uma associação de quilombos. As pessoas estão entrando em uma propriedade coletiva.”

apresentação da dança do jongoAo comentar sobre a maior aparição das culturas tradicionais nesse momento histórico, Martha e Hebe comentam que chegaram a pensar em dar um recorte temporal ao filme para abordar isso que alguns chamam de renascimento da cultura tradicional. Para elas, a folia e o jongo têm, hoje, um novo significado, eles têm o significado de dar uma identidade aos grupos que participam dos mesmos, perante a sociedade.

Para elas, a questão de individualismo não pode ser generalizada, pois todos os ritmos pesquisados por elas têm um sentido comunitário muito forte (o calango um pouco menos). Então, se os jovens vão para aquele canto, aquilo é importante para eles, as crianças vão atualizando a cultura. Se eles se individualizarem demais, acaba o grupo e acaba a tradição. O jongo e a folia não vivem sem o grupo.

Sobre o filme “Jongos Calangos e Folias” Martha Abreu e Hebe Mattos revelam: “O segredo que a gente conta é como eles mantiveram esse sentido de grupo. Às vezes até com migrações. Algumas pessoas acham  que eles sempre estiveram lá, paradinhos, intocados, mas (ao longo da história dessas comunidades) um veio para cá trabalhar, outro recita até hoje as estações do trem. Mas mesmo assim eles mantiveram essa cultura viva. O sentido grupal muito forte.”

Saiba mais sobre o assunto:

 Ser joven y ser indígena. La identidad juvenil en nucleamientostobas de la ciudad de La Plata

 Trajetórias de uma jovem quilombola: entre vivências e projetos

A juventude do Quilombo São José - entre tradições e modernidades

 Os limites e as contradições do empreendedorismo gerados no cotidiano dos jovens rurais do Vale do Rio Pardo/RS

 

*Fotos do site www.historia.uff.br/jongos