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Artigos de opinião

Artigos de opinião

O impensável

O INIMAGINÁVEL acontece. Supera nossa capacidade de prever o pior. Conduz-nos até a borda do real e nos abandona ali, pasmos, incapazes de representar mentalmente o atroz. O pior pesadelo do escritor Primo Levi, em Auschwitz, era voltar para casa e não encontrar quem acreditasse no horror do que ele tinha a contar.

Acreditar no horror exige imaginá-lo de perto e arriscar alguma identificação com as vítimas, mesmo quando distantes de nós. Penso no assassinato dos cidadãos cariocas David Florêncio da Silva, Wellington Gonzaga Costa e Marcos Paulo da Silva por 11 membros do Exército encarregados de proteger os moradores do morro da Providência. Assassinados por militares, sim, pois não há diferença entre executar os rapazes e entregá-los à sanha dos traficantes do morro rival. A notícia é tão atroz que o leitor talvez tenha se inclinado a deixar o jornal e pensar em outra coisa.

Não por insensibilidade ou
indiferença, quero crer, mas pela distância social que nos separa
deles, abandonamos mentalmente os meninos mortos à dor de seus
parentes. Abandonamos os familiares que denunciaram o crime às
possíveis represálias de outros “defensores da honra da instituição”.
Desistimos de nossa indignação sob o efeito moral das bombas que
acolheram o protesto dos moradores do Providência.

Nós, público-alvo do noticiário de jornais e TV, que tanto nos
envolvemos com os assassinatos dos “nossos”, viramos a página diante da
morte sob tortura de mais três rapazes negros, moradores dos morros do
Rio de Janeiro. É claro que esperamos que a justiça seja feita. Mas
guardamos distância de um caso que jamais aconteceria com um de nós,
com nossos filhos, com os filhos dos nossos amigos.

O absurdo é uma das máscaras do mal: tentemos enfrentá-lo. Façamos o
exercício de imaginar o absurdo de um crime que parece ter acontecido
em outro universo. Como assim, demorar mais do que cinco minutos para
esclarecer a confusão entre um celular e uma arma? E por que a prisão
por desacato à autoridade? Os rapazes reclamaram, protestaram, exigiram
respeito -ou o quê? Não pode ter sido grave, já que o superior do
tenente Ghidetti liberou os acusados.

Mas o caso ainda não estava encerrado? O tenente, que não se vexa
quando o Exército tem que negociar a “paz” no morro com os traficantes,
se sentiu humilhado por ter sido desautorizado diante de três negros,
mais pés-de-chinelo que ele? Como assim, obrigá-los a voltar para o
camburão -até o morro da Mineira? Entregues nas mãos dos bandidos da
ADA em plena luz do dia, como um “presentinho” para eles se divertirem?
Era para ser “só uma surra”? Como assim?

Imaginaram o desamparo, o desespero, o terror? Não consigo ir adiante e
imaginar a longa cena de tortura que conduziu à morte dos rapazes. Mas
imagino a mãe que viu seu filho ensangüentado na delegacia e não teve
mais notícias entre sábado e segunda-feira. E que depois reconheceu o
corpo desfigurado, encontrado no lixão de Gramacho. Imagino a cena que
ela nunca mais conseguirá deixar de imaginar: as últimas horas de vida
de seu menino, o desamparo, o pânico, a dor. “Onde o filho chora e a
mãe não escuta” era como chamávamos as dependências do Doi-Codi onde
tantos morreram nas mãos de torturadores.

Ainda falta imaginar a promiscuidade entre o tenente, seus subordinados
e os assassinos do morro da Mineira: o desacato à autoridade é crime
sujeito a pena de morte e a tortura de inocentes é objeto de
cumplicidade entre traficantes e militares? Claro, os traficantes serão
mortos logo pelo trabalho sujo do Bope. Se outros cidadãos morrerem por
acidente, azar; são as vicissitudes da vida na favela.

Quando membros corruptos da PM carioca mataram a esmo 30 cidadãos em
Queimados, houve um pequeno protesto em Nova Iguaçu. Cem pessoas nas
ruas, familiares dos mortos, nada mais. Nenhum grupo pela paz foi até
lá. Nenhuma Viva Rio reuniu gente de branco a marchar em Ipanema.
Ninguém gritou “basta!” na zona sul. Não é a mesma cidade, o mesmo
país. Não nos identificamos com os absurdos que acontecem com eles.

Não haverá um freio espontâneo para a escalada da truculência da
Polícia e do tráfico, nem para o franco conluio entre ambos (e, agora,
membros do Exército) que vitima, sobretudo, cidadãos inocentes. Não
haverá solução enquanto a outra parte da sociedade, a chamada zona sul
-do Rio, de São Paulo, de Brasília e do resto do país-, não se
posicionar radicalmente contra essa espécie de política de extermínio
não oficial, mas consentida, a que assistimos incrédulos, dos negros
pobres do Rio.

Publicado originalmente em 22/06/08
Pelo Jornal Folha de São Paulo
Por
Maria Rita Kehl - Psicanalista e ensaísta, autora do livro “Sobre Ética e Psicanálise” (Cia. das Letras, 2002).

As opiniões dos artigos não traduzem, necessariamente, posiçõe do Observatório Jovem.

O ovo da serpente

O bárbaro episódio protagonizado no Rio de Janeiro pelos criminosos fardados do Exército é um sinal de que ultrapassamos o fundo do poço e nos aproximamos perigosamente das profundezas do horror totalitário.

Não vamos fingir que se trata de um episódio isolado. A
responsabilidade é do Estado e da sociedade que tem sido leniente e
tolerante com a brutalidade sistemática exercida pelos que deveriam ser
os guardiões dos direitos dos cidadãos. É preciso uma intervenção
radical, um movimento cívico que rompa com a inércia e o silêncio
cúmplice que deixa as populações das periferias pobres e das favelas à
mercê da barbárie executada pelo tráfico, pelas milícias, pela polícia
e agora pelo Exército.

Estamos vendo o crime penetrar todas as esferas do Estado. As últimas
notícias mostram que, no Rio de Janeiro, ex-governadores, ex-chefes de
polícia, deputados e autoridades públicas deram as mãos ao crime
organizado para ampliar o poder e a riqueza. As instituições vão aos
poucos sendo corrompidas e manietadas, ferindo gravemente o estado de
direito e a democracia.

Da mesma forma estamos vendo a banalização do extermínio puro e simples
de jovens pobres, em supostos confrontos com uma polícia ineficiente,
mal treinada e mal paga, que parece ter tomado gosto pela matança. Com
o aplauso entusiasmado de uma classe média acuada pelo medo, que
prefere a limpeza da cidade a qualquer preço do que enfrentar o desafio
maior de reestruturar o sistema de segurança pública e garantir
direitos iguais a todas as pessoas. Nunca é demais lembrar que as
sementes do totalitarismo e do fascismo historicamente se alimentaram
do medo e do silêncio.

O absurdo e a violência desse episódio humilham o Estado e lança uma
mancha sobre o Exército que dificilmente será apagado com pedidos de
desculpas formais, ainda que necessários e imprescindíveis.

A ausência de autoridades públicas no enterro dos jovens e as
declarações quase protocolares do governador e do presidente não
correspondem à gravidade do episódio.

A sociedade carioca também deve se perguntar a razão pela qual
tragédias como essas não provocam uma onda de indignação, um grito
coletivo de basta que coloque um ponto final na verdadeira política de
extermínio que tem sido posta em prática no Rio de Janeiro, com um
custo alto de vidas de jovens, em sua maioria negros e pobres. Por que
as únicas manifestações públicas de dor e revolta são as das próprias
comunidades violentadas? Acho que já passamos da hora de formar uma
aliança acima dos interesses particulares, partidários ou econômicos,
que coloque como prioridade absoluta uma política de segurança pública
e de desenvolvimento social que pense a juventude excluída não como
problema ou ameaça, mas como parte essencial do nosso futuro como
sociedade.

Por que não podemos reunir novamente o que temos de melhor? Ou será que
perdemos totalmente a capacidade de indignação e vamos seguir
recolhidos em nossos bunkers urbanos enquanto os cães de guerra
espalham sem limites a selvageria?

Atila Roque
Historiador e Diretor do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos)

Publicado em 23/6/2008
Pelo jornal O Globo

As opiniões dos artigos não traduzem, necessariamente, posições do Observatório Jovem. 

Chacina da Providência

A cidade do Rio de Janeiro, mais uma vez, é cenário das contradições que
marcam o Estado brasileiro. Há avanço democrático na estrutura
representativa formal, como conselhos, fóruns abertos à participação da
sociedade, bem como leis cidadãs como a que garante e promove os
direitos de crianças e adolescentes (Estatuto da Criança e do
Adolescente - ECA). Por outro lado, as polícias estaduais - militar e
civil - e, agora, o próprio Exército brasileiro, responsáveis pela
segurança de cidadãos e cidadãs, e que deveriam se pautar pelos
parâmetros legais, promovem chacinas em favelas e áreas populares.

As favelas do Rio, tantas vezes usadas como moeda de troca na política
clientelista, resistiram e conseguiram introduzir no manual das
políticas públicas o tema da urbanização. O Plano de Aceleração do
Crescimento (PAC) é a mais recente evidência de que essas localidades
estão inexoravelmente imbricadas à paisagem e à história dessa cidade.

No entanto, enquanto a população da favela se organiza para interferir
no debate em torno das obras do PAC, ali, onde se constituiu a primeira
favela dessa cidade, na Providência, uma atuação silenciosa (ao menos
assim seria até as vésperas da próxima eleição), levada a cabo por um
dos candidatos à prefeitura do Rio, promove uma maquiagem no local, com
recursos do governo federal e sob a proteção do Exército. No entanto, o
"cimento social" usado para rebocar as casas está manchado pelo sangue
de três jovens negros, moradores daquela favela.

Na manhã do sábado, 14 de junho, David Wilson Florêncio da Silva, 24,
Wellington Gonzaga Costa, 19, e Marcos Paulo da Silva, 17, foram *presos
por militares* dentro da favela e levados ao quartel do Exército. Depois
de interpelados, oficialmente foram dispensados - a partir daí "*a
notícia carece de exatidão*".

Os jovens não chegaram em casa. Por decisão daqueles militares,
diretamente envolvidos na prisão -- um tenente, um sargento e dois
soldados --, foram levados até a favela da Mineira, a poucos metros dali
e comandada por uma facção rival àquela que controla o Morro da
Providência. No dia seguinte, os corpos dos três jovens apareceram junto
aos detritos despejados no lixão de Jardim Gramacho, no município de
Duque de Caxias.

Não se sabe qual foi a negociação entre os militares e os traficantes da
Mineira. Não se sabe o que foi dito e a título de que aqueles militares
cumpriram esse papel. Ainda não está claro qual a relação anterior entre
os militares e os traficantes. No caso em questão, os jovens não
trocaram tiros com e também não foram encontrados com eles "armamentos
pesados" e nem mesmo foi feita "a maior apreensão de drogas", argumentos
que recorrentemente têm sido acionados pela polícia do Rio para
"convencer" a sociedade carioca de que as execuções ocorridas nas
favelas foram e são* *inevitáveis.

Mas apesar de todas as evidências da inocência dos jovens, a chacina da
Providência foi incapaz de sensibilizar a classe média carioca e gerar
manifestações de forte apelo emotivo, exigindo o cumprimento da lei.

Mais uma vez nos deparamos com dois pesos e duas medidas quando o fato é
a morte violenta no Rio de Janeiro. Uns são "matáveis": homens, jovens
negros e moradores de favelas. Outros devem ser protegidos. Com certeza
a dor dilacerante desses familiares terá menos solidariedade do conjunto
da sociedade carioca e menos espaço nos horários e espaços nobres da
mídia local do que costumam ter acontecimentos igualmente trágicos
envolvendo jovens e pessoas de outras classes sociais.

Essa chacina recoloca o debate sobre o papel do Exército nas favelas
cariocas. Independente de sermos a favor ou contra, este fato obriga,
mesmo que por um tempo, que o Exército se recolha à caserna para
refletir sobre o seu papel no controle da violência urbana e,
especificamente, sobre a melhor forma de contribuir para o
restabelecimento da autoridade perdida pelo Estado brasileiro nos
territórios dominados pelo tráfico e/ou pela polícia mineira.

É com pesar que constatamos que num curto período de tempo, deixados a
sós na sua atuação em uma favela, esses militares incorporaram o que há
de mais vil na prática da chamada "banda podre" das polícias do Rio de
Janeiro: pactuação com as forças marginais que dominam as favelas e o
uso de vidas humanas como moeda de troca.

Então, o que o Exército continuará fazendo na Providência? Por que a
aliança publicamente apregoada por Lula e Sérgio Cabral em torno dos
investimentos no Rio de Janeiro não constrói um diálogo entre o Exército
e a Secretaria de Segurança Pública do Estado? E por que um projeto de
um senador, com uso de recursos públicos, conquista o direito de ter o
Exército como cão de guarda? O que prevalecerá: o Estado de direito,
democrático, igual para todos e todas ou o estado neopopulista em que se
privatiza o público e não se respeita a vida?

Por Itamar Silva, Coordenador do Ibase
Publicado em 20/6/2008
No site Ibase: www.ibase.br

As opiniões dos artigos não traduzem, necessariamente, posições do Observatório Jovem.

VIOLÊNCIA NO RIO: O deslocamento da responsabilidade e da culpa

VIOLÊNCIA NO RIO
O deslocamento da responsabilidade e da culpa

Um dos melhores artigos que já li na área de história foi escrito por Alessandro Portelli e publicado no bom livro Usos & Abusos da História Oral, organizado por Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado, cuja primeira edição saiu pela FGV em 1996. O título do trabalho é "O massacre de Civitella Vai di Chiana".

No ano de 1944, aquela região italiana estava ocupada por tropas nazistas. Em retaliação pela morte de três soldados alemães por membros da Resistência, mais de duzentos civis de três pequenos povoados, entre eles homens, mulheres e crianças, foram brutalmente assassinados.

Cinqüenta anos depois, Portelli investigou o acontecimento, entrevistou muita gente que testemunhou o fato e boa parte dos habitantes daqueles povoados que, em última análise, culpavam os membros da Resistência pelas mortes dos civis. Notou o autor o deslocamento da responsabilidade ou da culpabilidade na memória de diversos depoentes. Como se as ações dos nazistas fossem previsíveis e inexoráveis. Teriam procedido dentro do que seria "natural" que fizessem.

Máquinas de matar

Logo que comecei a acompanhar na mídia o
noticiário a respeito do assassinato dos três rapazes do morro da
Providência por um grupo de marginais do morro da Mineira, no Rio,
lembrei-me do artigo de Portelli. Não há dúvida de que as
responsabilidades indiretas pelos terríveis homicídios devem ser
repartidas, solidariamente, entre aqueles 11 militares do Exército,
principais alvos das acusações de vizinhos, parentes, polícia, governo
estadual, autoridades federais e mídia. O tenente, os sargentos e os
soldados já se encontram presos e têm sido amplamente investigados.
Permanecem sozinhos no foco geral de responsabilização pelo crime e da
expectativa geral por punição.

Nas colunas do jornalismo
político, outros responsáveis indiretos têm sido aventados. As
responsabilidades têm sido repartidas em todos os níveis decisórios e
de comando, civil e militar, sendo a motivação dita populista,
assistencialista ou política sistematicamente mencionada.

É
claro que o ato do grupo do Exército brasileiro que entregou os três
jovens detidos para "um corretivo" no morro da Mineira não pode ser
comparado com o ato dos membros da Resistência em termos de contexto,
mérito, intenções e motivações. Mas uma idéia se conecta entre ambas as
histórias.

O que exatamente faltou à mídia e à nossa sociedade
que aproximou o fato ocorrido na cidade do Rio de Janeiro do ocorrido
no pequeno povoado italiano? Alguém lembrar de acusar, investigar e
prender os autores diretos dos homicídios: os assassinos do morro da
Mineira. Tal assunto não aparece em fala alguma, em texto algum.

Tem
se tratado dos assassinos como em Civitella. Era "natural, previsível e
lógico" que o grupo criminoso da Mineira fizesse o que fez. Eles são
tratados como se estivessem tão-somente realizando o papel designado a
eles. Nada diferente poderia se esperar. Eles e os nazistas seriam como
máquinas automáticas de matar. Como se funcionassem como um impessoal e
inimputável precipício no qual se atiraram as vítimas humanas.

Quando é que a mídia e a sociedade vão cobrar também a investigação e a prisão dos assassinos?

Publicado em 24/6/2008
Pelo Observatorio da Imprensa
Por Fábio Koifman

Aas opiniões dos artigos não traduzem, necessariamente, posições do Observatório Jovem.

Eu sou neguinho

O meu amigo Caetano, que no debate público é um provocador tão genial quanto na arte, também é, sem dúvidas, um atento observador da realidade racial brasileira desde jovem, quando Dona Canô gritava “meu filho corra, venha ver na TV aquele preto de que você tanto gosta!”. Ou quando se irritou ao ver jovens de esquerda chamando Clementina de Jesus de macaca no Teatro Paramount, em 1968. Ou quando não deixou o país esquecer que o Haiti é também aqui. Mas agora, depois de tão bela história, depois de ter produzido poemas tão poderosos e belos sobre a negritude baiana, ele parece acreditar que o país acompanhou a sua cabeça e seu desejo de viver em uma democracia pós-racial

O Brasil pós-racial é uma meta que compartilho, mas ainda é uma ficção. O dramaturgo Harold Pinter já disse que, na exploração da realidade por meio da arte, “não há distinções explícitas entre o que é real e o que é irreal, tampouco entre o que é verdadeiro e o que é falso.”. Mas que diferenciar essas condições é fundamental para o exercício da cidadania. É necessário dizer para o querido Caetano que não é coerente ter feito uma obra tão magnífica e assinar um manifesto contra cotas para jovens negros pobres na universidade.
E assim, mesmo agradecido pelo que ele fez, tenho que, atendendo a sua provocação ( ver coluna de Jorge Moreno de 07/06/08), vir aqui dizer que a “realidade lá fora” continua brutal para aqueles que são “negros ou quase-negros de tão pobres”. Eles continuam com suas chances de ascensão social condicionadas à cor de suas peles em estruturas seculares que reproduzem o racismo nos bancos escolares, na nossa TV, no sistema de saúde, no mercado de trabalho, na violência policial…

Não é possível ignorar as cotas como um movimento natural e necessário, apesar das imperfeições no processo. Diante da revolta contra sua condição de grupos populacionais excluídos, negros e indíos lutam por uma reparação histórica, lutam por seus direitos. Hoje, por trás da emergência identitária destes grupos está a busca pelo reconhecimento dos direitos de partilha das riquezas materiais do país (partilha do direito à educação, à terra, à liberdade religiosa).

Vivemos, finalmente, numa sociedade em que os“excluídos” lutam autonomamente no campo da democracia pelos seus direitos. São lutas de idéias, de conquista da opinião pública e de leis. E isso é muito bom, e deve ser respeitado e incentivado. E, veja bem, eles não estão esperando o socialismo, ou a vitória do universalismo francês, ou o triunfo do mercado, para ter acesso à educação. Eles querem acelerar processos, cobrar dívidas históricas. Evitar tensões raciais é promover o reconhecimento dos seus direitos , e incentivar a sua luta política nas formas democráticas e republicanas. E tenho certeza de que o nosso querido Caetano sabe que Mangabeira Unger tá certo. Nós precisamos de uma segunda abolição. Mas como realizá-la sem nos defrontarmos com a questão racial?

E por que acreditar que revalorizar neste momento a criação colonial do mulato é um passo para a sociedade pós-racial? Onde é que o mulato é celebrado como ideal da nação? Nas artes, na telenovela, no cinema, na publicidade? O ideal do país desde os tempos da escravidão foi, e continua profundamente internalizado em todos nós, fazer do negro um mestiço e do mestiço um branco. Nossas crianças perdem a auto-estima ao aprender a sonhar em ser, mesmo que cirurgicamente, iguais à rainha dos baixinhos. Por que todas as apresentadoras dos programas infantis foram inspirados no modelo ariano? Que ideal de raça estava por trás disso?

Por que os considerados mais belos das revistas de moda, de TV e até mesmo de esportes são invariavelmente os mais germânicos? Por que somente em 2004 tivemos a Taís Araújo como protagonista de uma telenovela na rede líder de audiência? E quando voltaremos a revê-la assim? Ser mestiço, portanto, é ainda um momento de passagem da condição inferior para a raça superior. O mulato na telenovela ainda é, como regra, representação do estereótipo do bundão, do mau caráter, do bandido ou do ressentido.

É por isso que não sou mulato. Só aceito o mulato como profissão. E é assim que vivem centenas de brasileiras afro-descendentes pobres que viajam pelo mundo vendendo a beleza dos seus corpos e dos seus movimentos em shows tipo Sargentelli.

Sou brasileiro, com ascendência afro-índígena- portuguesa. Mas neste momento histórico só me interessa afirmar o que fui pressionado a negar. O país ainda precisa de um choque de negritude e de indigeneidade. Para chegar a ser pós-racial precisa antes ser multirracial. Precisamos reconhecer que nossa nação é um mosaico, onde vivem filhos de africanos, de japoneses, de libaneses e de europeus, além dos indígenas. 

Somente assim podermos, no futuro, realizar o mito que tanto prezamos, e vir a ser um exemplo de democracia racial. Neste momento sou orgulhosamente o meu avô e bisavô, eu sou neguinho. E amanhã posso vir a ser a minha avó, nambiquara ou pataxó.

Diante da herança colonial que criou um sistema hierárquico de castas raciais, eu sou neguinho. Diante dos articulistas dos jornais que dizem que não somos racistas, mas alertam que se me assumo como negro sou ameaça de guerra civil, eu sou neguinho. Diante do senador que elogia o seu par mulato por estar apurando a raça ao se casar com uma “linda gaúcha dos olhos azuis”, eu sou neguinho. Ou diante da mídia que em suas imagens insiste em reafirmar a branquitude como ideal da nação, eu sou aquele Caetano que tanto admiro, e não aquele inexplicável mulato anticotas. Sou negro preto do Curuzu. Sou beleza pura.

* Joel Zito Araujo é cineasta, autor de “Filhas do Vento” e “A Negação do Brasil”

Segredos Internos. O sucesso do maio de 1968, em uma escola técnica, em maio de 2008

De volta pra 1968 - alunos do CEFET de Química no RJQuem viu, se surpreendeu: durante uma semana, os alunos do CEFET Química (RJ) participaram em massa de atividades, as mais diversas, refletindo sobre os significados dos eventos mundiais de 1968 para sua geração. Não fomos a única instituição a comemorar a data, mas o envolvimento dos alunos no projeto surpreendeu os freqüentadores de atividades parecidas. Tantos, tão emocionados, com tanta gana – como vocês conseguiram? Era a pergunta que mais ouvíamos

Este artigo é uma tentativa de responder a todos, e a nós mesmos, na verdade. Alinhava os aspectos que consideramos fundamentais dessa experiência, ainda sem  hierarquizá-los. Vai escrito no calor da hora. Na forma de um relato, ele introduz o sentido da Semana da Cultura no âmbito da escola, apresenta os frutos de sua  última edição e conclui com as palavras daqueles que produziram-na, os alunos.

O CEFETQUÍMICA E A SEMANA DA CULTURA: UMA RELAÇÃO EM CONSTRUÇÃO

Um Centro Federal de Educação Tecnológica é, por definição, uma instituição de ensino técnico. No caso do CEFET Química, que se pretende responsável pela formação de profissionais de excelência, isso se traduz em uma concepção curricular que privilegia a articulação entre teoria e prática, entre o pensar e o fazer por si próprio. A prática cotidiana nos laboratórios facilita a viabilização desta perspectiva nas disciplinas da formação específica. Desenvolver esta abordagem nas chamadas Ciências Humanas, aí incluindo a língua e a literatura, tem sido um desafio cotidiano para os professores desta área, principalmente por serem os cursos integrados, isto é, por compreenderem tanto a formação técnica quanto aquela que popularmente é conhecida como de “ensino médio”, e que viabiliza o ingresso no curso superior.

As Semanas de Cultura são uma tentativa de responder a este desafio. Realizadas sempre no primeiro semestre letivo culminam projetos que, desenvolvidos fundamentalmente pelas disciplinas de caráter propedêutico, buscam articular conhecimento acadêmico e sociedade, teoria e prática.

Com elas abrimos espaço para a reflexão crítica sobre a ciência e o conhecimento científico com o qual lidamos cotidianamente, resgatando a dimensão da “escolha” contida em todo o conhecimento humano, inclusive no científico.

Com este fito, nos últimos três anos vimos seguindo um planejamento que levou à primeira semana intitulada Mama África, a presença africana no Brasil de hoje (2006), à segunda semana, América Latina – tão perto... tão longe (2007) e previa ainda uma última semana que buscaria fazer um Retrato do Brasil contemporâneo. Revimos o cronograma em função dos 40 anos de 1968, temática que por trazer à tona  a utopia, os projetos e a contestação de toda um geração nos pareceu capaz de intensificar a dimensão de crítica que pretendemos fomentar e nos permitiu, ao mesmo tempo, manter a interlocução com os temas trabalhados nas Semanas anteriores.

A SEMANA DA CULTURA: MAIO DE 2008, 40 ANOS DEPOIS...

Uma vez definido o tema em fevereiro de 2008, e realizada a incorporação do mesmo no planejamento de aulas e atividades dos professores – aqui falamos prioritariamente dos de história, filosofia, música, artes plásticas, sociologia, geografia e teatro – partimos para a etapa seguinte: levar a que os alunos também se apropriassem da temática.

Nas diferentes disciplinas foram apresentados textos, fotos, filmes - em uma visão panorâmica, travava-se  contato com os acontecimentos centrais, com os principais sujeitos históricos e com as linhas de força do movimento que, como lembram Antônio Negri e Giuseppe Cocco, aspirava à “transformação do desejo em ação”.

Neste momento, tal qual esperávamos, houve uma quase imediata identificação dos alunos com o tema. O 68 da resistência à ditadura, o da contracultura, o do poder negro, o da libertação feminina ou, ainda o da revolução iam sendo incorporados ao dia-a-dia dos alunos, segundo as suas preferências. Mas foi o encantamento com a constatação de um protagonismo juvenil que unificou, ao nosso ver, as distintas abordagens.

Mundo Hippie Esta atitude positiva em relação ao assunto conduziu dois tipos de ação diferenciados: no interior de cada disciplina foram elaborados projetos, cuja escolha e condução foram frutos de debates intensos e decisões coletivas. Tais projetos nortearam as aulas, pelo menos nas disciplinas nas quais os professores conseguiram o melhor encaixe entre os conteúdos que constam do programa e os temas da Semana, até maio. Concomitantemente foi montada uma comissão executiva na qual participavam voluntariamente professores e alunos, com encontros periódicos.

Esta estratégia, que consideramos bastante exitosa, resultou na mobilização dos alunos que foram agentes “produtores” de praticamente metade dos eventos, sem falar na sua participação real como interlocutores nas mesas-redondas.

Ao lado da curiosidade com o tema, não podemos deixar de considerar que para um resultado no qual resgatamos internamente o “poder jovem” – em uma tradução que enfatizou o tornar-se sujeito do aprendizado, o imaginar, o executar e o viabilizar as atividades – a tradição de autonomia no estudo dos alunos de uma instituição técnica teve peso considerável. Em uma bancada de laboratório, os alunos são responsáveis pelos resultados, precisam resolver – muitas vezes sozinhos – os problemas que eventualmente surjam e, ao final, devem produzir sistematizações de seus passos, bem como explicar, a luz do conhecimento teórico os resultados obtidos. São bastante propensos, portanto, a tomar em suas mãos o processo de conhecer, ainda mais quando desejam fazê-lo.

E assim eles o desejaram! Tomando a escola entre os dias 12 e 16 de maio de 2008, os alunos (re) inventaram formas de organização e resistência, seja através da criatividade que demonstraram no preparo das salas temáticas e na montagem de peças teatrais e esquetes, seja através do enfrentamento e intensas negociações que travaram para serem liberados das práticas e aulas e provas que infelizmente coexistiram com a Semana. E aqui, não poderíamos nos furtar de comentar que, apesar de estar já em sua oitava edição, a Semana da Cultura ainda gera controvérsias entre os docentes e direção da instituição. Tensão que espelha concepções diferentes do que venha a ser um técnico. Nós, professores da área de humanas, pensamos que ainda sobrevive na instituição uma certa resistência em fazer da Semana da Cultura uma semana em que nos horários das aulas, os alunos possam, de fato, participar ativamente, sem sanções, faltas ou perdas de trabalhos, relatórios e provas.

A estrutura da semana contava com mesas-redondas, palestras, exibição de filmes, salas temáticas, peças de teatro, festival da canção, esquetes, apresentação do coral e dança. Todos os elementos que compuseram a semana foram pensados, repensados nas reuniões que antecederam-na. 

Contamos com palestrantes emocionados, que ao final da palestra se mostraram realmente entusiasmados com a participação do público, pois os alunos, movidos pela curiosidade despertada pelos diversos assuntos tratados, assim que quebraram a barreira da timidez, encheram nossos palestrantes de perguntas das mais distintas. Queremos aqui registrar a participação dos muitos professores e convidados que tão bem construíram um rico panorama do que foi 68, e vale ressaltar que todos participaram de nossa semana única e exclusivamente por apoiarem a nossa proposta, mostrando que essa forma de produzir conhecimento, por meio do debate, da conversa, é um trabalho que se faz não só por dinheiro, mas também pelo que se acredita.

Dentre os palestrantes tivemos na palestra Significados de 68, a professora Lená Medeiros (UERJ). Na palestra sobre o Movimento Estudantil, o professor Jean Marc Van der Weid (ex-presidente da UNE). No debate sobre Contracultura, contamos com a professora Adriana Facina (UFF) e o dramaturgo e diretor de teatro Amir Haddad (Grupo Tá na Rua), que emocionou a todos com seu trabalho artístico e com seu testemunho de luta. A professora Cecília Coimbra (da diretoria do GrupoTortura Nunca Mais/RJ e da UFF) discutiu com os alunos o documentário Memória para uso diário. Já o debate Juventude, Sexo, Drogras e Rock´n Roll, que teve a participação da professora Elisa Guaraná (UFRRJ) e do professor Paulo Carrano (UFF), possibilitou uma análise sem romantismo da juventude de 68, deixando claro na mente de nossos alunos que a juventude de hoje não é tão perdida nem tão alienada como pensam os próprios jovens. Na mesa Como nossos pais, a professora de história da casa Márcia Guerra (CEFETEQ) e Dora da Costa (Faculdade de Educação da UFF), relataram as suas próprias experiências de vida em 68 e transportaram os alunos para um outro tempo.

Um motivo de orgulho, que também merece menção nesse relato, foram as Salas temáticas, que embora tenham sido pensadas e fomentadas como atividade de determinadas disciplinas das áreas “humanas”, contou com temas que eram pertinentes a diversas disciplinas. Os debates ocorridos nas salas temáticas, que contaram com palestrantes externas como: Luciene Lacerda (IESC/UFRJ), Daniele Duarte (Crioula) e Julia Zanetti (Observatório Jovem/UFF), conseguiram atingir um grande êxito no campo da interdisciplinaridade e revelaram as reais vocações de um projeto pedagógico como a Semana da Cultura, que visa a formação ampla que dialoga com as áreas exatas e não exatas, bem como a possibilidade de articulação entre os diferentes campos do conhecimento no interior da escola. O sucesso é ainda mais visível face ao tratamento muitas vezes “linear” do nosso programa de formação técnica.

Aborto em debateVale ressaltar, que as salas temáticas foram construídas fundamentalmente pelos alunos. Os alunos “autores” das salas conseguiram aliar a tradição de construção de projetos-científicos (apresentados na Semana da Química - que acontece na escola no segundo semestre) com a vontade e a necessidade de debater, a partir dos parâmetros próprios, assuntos pertinentes à temática de 68. Assim, as salas temáticas foram batizadas pelos alunos. A sala temática “Sexualidade em debate”, propôs temáticas que se originam, de fato, nos movimentos de 68, mas cuja atualidade foi central para que os alunos se colocassem tão aptos à sua discussão. Temas como a homossexualidade, o movimento feminista, o aborto, entre outros, abordaram questões históricas, científicas, morais, que ultrapassam as dimensões das disciplinas e envolvem conhecimentos adquiridos na biologia, história e ética, por exemplo. Tivemos também a sala temática que discutia as implicações éticas do uso do LSD nos anos 60 e especificamente no ano de 68. Nesta sala, os alunos do curso técnico de biotecnologia puderam dialogar com os conteúdos de química, biologia, filosofia, história e ética. Tivemos também salas mais lúdicas como o “O Mundo Hippie”, que apresentava um olhar teatral sobre este movimento e a sala “Debatedouro” que contou com divertido esquete das “personalidades” de 68, tais como o general, o jovem, o músico, o alienado, a feminista, o movimento negro, todos “competindo” por seu papel histórico.    

O lado lúdico dos alunos foi por sinal o ponto forte na Semana da Cultura. A disposição dos nossos alunos aliou-se desta vez a criatividade artística como importante instrumento de conhecimento, muitas vezes renegado ao segundo plano. Devemos aqui ratificar a relevância do teatro e do coral, como modos legítimos e potentes de conhecimento, como partes do processo ativo e produtivo de conhecimento.

Tanto as salas temáticas, as encenações e as apresentações de trabalhos provaram ainda que, no âmbito da produção ativa de conhecimento por parte dos alunos e professores, concretizou-se uma apropriação legítima e fecunda da tecnologia atual. O site de relacionamentos mais utilizado por eles foi usado para divulgação e para o estabelcimento de contatos entre os participantes. Os alunos usaram seus muitos aparelhinhos eletrônicos para gravar o filmar o que ouviam e viam, levando-nos a pensar que muito embora sejam considerados rivais do chamado conhecimento clássico tradicional, essa tecnologia absolutamente incorporada ao comportamento juvenil foi uma parceira importante no processo de construção da semana. Desejamos, por isso mesmo, enfatizar que a escola pôde contar com recursos didáticos eletrônicos, e deveria poder contar com muitos outros, pois acreditamos que a disponibilidade desta tecnologia e infra-estrutura é decisiva também na construção dos conhecimentos dito “humanos", e erroneamente considerados como teóricos.

COM A VOZ, NOSSOS ATORES PREDILETOS!

Estes segredos estariam incompletos, inauditos até, (e nós, decerto, seríamos incoerentes) se não houvesse o espaço para a “voz” dos alunos. Sujeitos fundamentais no processo de construção e continuidade da Semana da Cultura, os alunos do CEFET Química escreveram, durante toda a semana em um imenso mural, frases, recados, palavras de ordem, letras de canções, versos, gracejos, reclamações, esboços, reações...

Rememorando os muros franceses que em maio de 1968 serviram de exposição do sentimento de uma geração, abaixo transcrevemos algumas dessas manifestações, palavras que materializam o espírito que contagiou a todos nós, e que esperamos, esteja sempre presente em nossa Semana da Cultura.

“Semana da cultura para eliminar a alienação e evitar a formação de profissionais robotizados. A favor de um mundo melhor, seguindo exemplos do passado.”

“Química não é tudo. Cultura sim! Queremos cultura, precisamos dela. Respiramos liberdade, igualdade e fraternidade.”

“Tentar mudar o mundo é a nossa bandeira, mas não é para já, é luta para a vida inteira!”

“Toda e qualquer produção deve ser incentivada, tanto a científica quanto a cultural. Tradição faz parte, mas a mudança é fundamental.”

“Da mesma forma que a química é uma cultura também temos direito à cultura geral!”

“Formação de técnicos aculturados?”

“Nossas dúvidas são traídas e nos fazem perder o bem que poderíamos conquistar se não fosse o medo de tentar. Sheakspeare”

“Química é um futuro que nós escolhemos estudar e aprender. Cultura é obrigação de cada um saber e incentivar. Quem ainda não conseguiu enxergar isso, deveria (mais do qualquer outra pessoa) participar da Semana da Cultura! Pela liberação de todas as aulas e práticas nas próximas semanas.”

“O verdadeiro poder de fogo do homem é a sua fala, seu livre arbítrio e não a capacidade de destruir o mundo com armas.”

“Pela formação de cidadãos e não se servos.”

“O foco não é apenas em química, mas na abertura de portas para o conhecimento. A semana da cultura deve continuar e melhorar cada vez mais.”

“O pensamento e as idéias não se resumem a laboratório Erlenmeyer, becker e bicos de Bunsen. Somos jovens em formação e não apenas profissional. De nada vale um bom técnico que não sabe o que acontece ou o que aconteceu.”

“A Semana da Cultura tem que confirmar porque isso aqui não pode ser uma fábrica de apertadores de parafuso. Os macacos podem ser nossos parentes, mas não somos eles. As idéias estão acima da química. Viva a cultura!”

As arestas da (des)igualdade

Dificuldade do País nesse campo expõe um racismo peculiar, entre a ignorância e o cinismo

- Ações afirmativas são medidas voltadas para atender grupos, nas singularidades e necessidades historicamente construídas de cada um, de forma a garantir bases efetivas para a democracia, pelo reconhecimento do valor insubstituível da contribuição de cada grupo à composição política da sociedade. Pressupõe-se que o mero enunciado do princípio da igualdade não a garanta, e se a garantia da igualdade é o que está em jogo, então é necessário pensar a eqüidade, trazendo medidas de encaminhamento efetivo em direção à igualdade material, como proposto, por exemplo, por John Rawls, não bastando reiterar uma suposta igualdade absoluta, que evidentemente inexiste.

A categorização por grupos é questão metodológica, que facilita a
adoção de políticas públicas voltadas para a eqüidade, e não questão
ontológica; não se trata de categorizar pessoas, mas grupos de
problemas e de violações de direitos, para que possam ser adequadamente
tratados e superados, em prol dos princípios que regem a Constituição
Federal.

Há raízes comuns a problemas semelhantes, vividos de
forma distinta em países diversos, afetando a ordem mundial, e
respostas conjuntas que a comunidade internacional tem encaminhado. O
pressuposto é que a humanidade partilhe a responsabilidade pelo destino
de todos, em prol do reconhecimento do valor intrínseco de cada ser
humano e de sua dignidade inalienável, sem o que estariam corroídas as
bases da democracia e da paz mundial. Por isso cabe indignar-se frente
a toda violação do direito a esse pleno reconhecimento, como cabe a
exigência de medidas efetivas que coíbam essa violação. Há também uma
relação intergeracional, em que aos bens herdados equivalem
responsabilidades transmitidas, como a lógica que informa, por exemplo,
as reparações do povo alemão às vítimas do Holocausto; ora, as pessoas
negras hoje excluídas, são descendentes dos escravizados de ontem, que
construíram a riqueza de tantos.

O esforço internacional de
vigilância mútua, pelas agências multilaterais, é para garantir a todos
o direito de habitar o mundo com a mesma dignidade. Por isso constrange
saber que a visita periódica de relatores internacionais da ONU ao
Brasil tem apontado a dificuldade de nosso país efetivamente avançar,
expondo ao mundo o racismo que desenvolvemos, entre a ignorância e o
cinismo.

Já no final do século 19, W. E. B. DuBois, de Harvard,
propunha reflexão sobre o processo transatlântico que envolveu o
tráfico escravagista, com um oceano a unir a implantação de um racismo
vigoroso, seja em manifestações institucionais, como por exemplo as
havidas nos Estados Unidos e África do Sul, via segregação racial e
apartheid, seja por meio de uma mentalidade matizada, impronunciada,
mas unificada na negação da plena humanidade de negros e negras.

Barrington
Moore-Jr investigou de onde provém o sentimento de injustiça e a
capacidade de não se acomodar, de rebelar-se contra o que provoca
indignação moral, como o sofrimento, abuso e maus-tratos, mesmo com a
trágica capacidade humana para suportar esses assédios. São processos
psicoculturais e históricos, articulados à constatação de que, se o
contrato social prega a igualdade, então quem está submetido à
desigualdade tem o direito moral de cobrar, daqueles que detêm a
hegemonia e a dominância, medidas de reparação do que seria sua
ineficiência no cumprimento do contrato; considera-se, aí, que a
desigualdade pelo descumprimento contratual ocorresse de forma
não-intencional, havendo, por isso, o interesse de efetivamente reparar
a desigualdade.

Mas o processo é mais complexo. Moore-Jr trata
de um "contrato social implícito", levando à indevida expectativa de um
"dever moral", de os que sofrem opressão obedecer aos que os oprimem,
sendo, portanto, "direito moral" dos que os oprimem contar de forma
indiscutível com essa obediência. Já Charles Mills denuncia um
"contrato racial" reiterado de forma tácita em sociedades que viveram a
escravidão mercantil dos africanos. Parte do contrato racial apela a
argumentos universalistas para negar o reconhecimento de direitos aos
que têm sido excluídos pelo racismo, invisibilizando sua presença com o
manto da homogeneização, que nega a igualdade de todos; de fato a
igualdade deverá reconhecer cada um em sua singularidade, para compor
de forma efetiva a pluralidade humana, base da democracia.

Todos
que, em razão das condições sociais, estão incluídos no campo
hegemônico, dominante, podem contestar sua inclusão involuntária na
dinâmica da opressão, e reafirmar-se como não-signatários desse
contrato racial, implícito, que vem se praticando historicamente e nega
a humanidade plena a tantos. Porque é impossível sufocar o sentimento
de injustiça e a indignação que o racismo, como prática cotidiana em
nosso país, gera em todos que sejam efetivamente democratas. Como
aceitar a desrespeitosa invocação a Martin Luther King, para negar
aquilo pelo que o reverendo negro lutou até o sacrifício da morte? Seu
último discurso mostra a certeza que tinha do que se armava contra ele.
De que igualdade, mesmo, falamos?

Porque desafia interesses
estabelecidos, a efetiva busca da igualdade racial é uma atividade que
convive com o risco. Daí a necessária presença do Estado e de agências
internacionais: como proteção àqueles que enfrentam essa batalha pelo
bem de todos. Porque toda a retórica em torno de raças e racismo não
poderá esconder os fatos que demonstram que a exclusão no Brasil tem
cor. Se fôssemos tratar de outros aspectos da exclusão no Brasil,
poderíamos trazer exemplos ligados a minorias religiosas, étnicas,
regionais e nacionais. Por exemplo, no caso Ellwanger, julgado pelo STF
em 2004 como primeiro caso de condenação por racismo, parecer (amicus
curiae) apresentado por Celso Lafer demonstrou a prática racista em
caso de revisionismo e pregação pública sistemática de anti-semitismo,
argumentando o uso do termo "raça" em sua dimensão histórico-cultural,
e lembrando que, embora não exista base biológica para as teorias
racistas, o fenômeno social permanece; invocou, ainda, o direito à
memória, devido às vítimas do Holocausto.

Finalmente, as
dificuldades que alegam para definir os participantes das cotas. Ronald
Dworkin, analisando caso da Suprema Corte dos Estados Unidos, diz que a
dificuldade para realizar uma tarefa não pode ser desculpa para a
preguiça de enfrentá-la. Que a transformação social não se faz por
métodos simples ou fáceis, em particular com relação a algo tão
entranhado na realidade, como o racismo e suas mazelas, não se tratando
de encontrar "o" caminho nas primeiras tentativas. Há um processo de
busca, que pode e deve ser enfrentado, em nome do bem maior, que são
oportunidades, a pessoas excluídas, de efetiva formação para a
participação democrática que a ninguém pode ser negada, sob risco à
existência da própria democracia.

Roseli Fischmann é doutora e
livre docente pela USP, professora da Pós-Graduação em Educação da USP.
Foi visiting Scholar da Harvard University. Presidente do Júri
Internacional do Prêmio UNESCO de Educação para Paz, Paris (1999-2002).
Expert UNESCO para a Coalizão de Cidades contra o Racismo, a
Discriminação e a Xenofobia

Publicado em 18/05/08
Pelo jornal O Estado de S.Paulo, por Roseli Fischmann

Uma data para ser celebrada?

Os desníveis sociais continuam a rimar com cor e raça

 - Já se passaram 120 anos desde que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea. Até cerca de 20 anos atrás, este era um momento cívico de segunda grandeza, mas que mobilizava colégios e outros eventos proclamando a redenção dos escravos. No período presente, debaixo das fortes críticas do movimento negro, o dia passou a ser encarado como uma farsa. Assim, na falta de entusiastas, a efeméride caiu quase que no esquecimento. Mas gostando-se ou não do dia, o fato é que sua realidade histórica existe. E como tal precisa passar pelo olhar crítico dos que o vivem no tempo presente.

O Brasil, tendo sido o maior importador das Américas de africanos
seqüestrados em seu continente ancestral (estima-se que tenha chegado a
40% do total), foi o último país do Ocidente a pôr fim ao regime
escravista. Terra de transições lentas e graduais, foram necessários
exatos 66 anos, desde a Independência, para que não existissem mais
escravos em nossas terras. Apenas à guisa de exemplo: em 1888, Karl
Marx, célebre por sua crítica ao capitalismo já consolidado na Europa,
jazia no cemitério londrino de Highgate havia cinco anos. Pouco importa
que desde a década de 70 do século 19 a maior parte dos pretos e pardos
não fosse mais escrava. O fato é que importantes centros econômicos do
País naqueles idos, como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais,
concentravam um amplo contingente de escravizados, geradores de
riquezas para a antiga elite senhorial.

Sob a forte pressão da
Inglaterra e num contexto de franca expansão dos movimentos
abolicionistas, em especial as rebeliões que começaram a se espalhar
pelas senzalas de todo o País no período posterior a 1880, as elites
locais foram obrigadas a aceitar o inevitável que era o fim do sistema
escravista. Até os anos 1920, as teorias forjadas pelas elites
intelectuais brancas entendiam que nossa crônica incapacidade ao
progresso seria causado pelo fato de sermos originários de africanos,
indígenas e portugueses, raças fracas e incapazes para grandes missões
históricas. Já a partir da década de 1930, a compreensão dos
modernistas de nossa realidade social passou justamente a valorizar
essas três matrizes étnicas, bem como a figura do mestiço. Assim, o
Brasil seria um país que estaria livre da chaga do racismo. E como tal
poderia almejar ocupar um local muito especial ao lado das nações mais
prósperas do mundo desde sua condição de uma Europa Tropical, usando o
termo caro a Gilberto Freyre. O desenvolvimento econômico traria
consigo a igualação nas condições de vida de negros e brancos, pensavam
os otimistas de então.

Ambas as compreensões acabam padecendo de
problemas específicos. Na primeira vertente, o racismo mais ou menos
explícito das antigas elites servia como um elegante modo de se dizer
que os escravizados e sua prole, supostamente inferiores, não teriam
acesso a direitos sociais, à terra e aos empregos. Na segunda matriz,
acabou se operando com um tipo de otimismo que, se por um lado, foi uma
útil ferramenta ideológica ao projeto desenvolvimentista, por outro
também atuou como um meio de congelamento de assimetrias herdadas do
passado.

Ora, uma coisa é se dizer que o povo brasileiro seja
majoritariamente mestiço, fato verdadeiro. Outra é dizer que esses
mestiços sejam rigorosamente iguais em termos físicos, como se os
caracteres herdados (cores de pele, tipos de cabelo, formas de partes
do rosto) não fossem usados como mecanismos de classificação social dos
indivíduos, posto serem mais ou menos valorizados socialmente. Isso
ocorre porque vigoram na sociedade ideologias, racistas, que dão
significados simbólicos específicos às diferentes formas humanas,
hierarquizando-as. Assim, as pessoas de traços europeus acabam
percebendo possibilidades que são sistematicamente negadas pela
sociedade, e mesmo pelo Estado, aos de traços africanos. A ideologia da
democracia racial, portanto, superestima um dos aspectos da dinâmica
social, ocultando a força dos mecanismos de discriminação e seus
efeitos negativos para as pessoas identificadas socialmente enquanto
negras.

Até 1995, os pretos e pardos formavam 45% da nossa
população. Em 2006 esse porcentual atingiu 49,5%, sendo razoável supor,
dado o comportamento da série histórica, que venha a aumentar ainda
mais nos próximos anos, tornando maioria. Essas alterações revelam que,
concomitantemente a movimentos demográficos específicos, pode estar
ocorrendo alterações no modo de entendimento de como os brasileiros se
vêem, no sentido de uma maior assunção de suas origens não-européias,
fato até então inédito.

Por outro lado, apesar da queda das
assimetrias de cor ou raça observadas em um período recente em alguns
indicadores sociais, nos dias atuais a remuneração média dos negros é
praticamente metade da dos brancos. Entre as mulheres negras ocupadas,
75% trabalham como empregadas domésticas ou em outras formas de
ocupação sem nenhuma garantia legal. Entre 2000 e 2005, foram
assassinadas por hora no Brasil 3,33 pessoas de cor preta e parda. A
taxa de analfabetismo dos negros segue sendo mais do que o dobro da dos
brancos. Somente 6 em cada 100 jovens negros entre 18 e 24 anos de
idade freqüentam instituições de ensino superior. No Congresso Nacional
os afro-descendentes não formam sequer 10% dos parlamentares.

Na
verdade seria inútil a tentativa de responder se a data é para ser
comemorada ou não. Os desníveis sociais existentes em nosso país se
combinam com a própria composição de cor ou raça do País no seu
conjunto, fato facilmente constatável nas ruas e demais espaços sociais
e tão bem retratados pelos indicadores demográficos disponíveis. O 13
de Maio, assim, seguirá como uma data, decerto importante enquanto
marco histórico. Contudo, a tarefa da realização da justiça social para
os descendentes dos antigos escravos segue sendo uma agenda - e uma
utopia a ser realizada pelo povo brasileiro.

* Marcelo Paixão é professor do Instituto de Economia da UFRJ

Publicado em 18/05/08
Pelo jornal O Estado de São Paulo, por Marcelo Paixão

Juventude e políticas sociais

Juventude e políticas sociais

    O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicou recentemente um texto para discussão intitulado "Juventude e Políticas Sociais no Brasil", em que desvenda uma série de aspectos do relacionamento entre a população juvenil e o conjunto da sociedade brasileira.

    Há atualmente 51 milhões de jovens, com idade entre 15 anos e 29 anos, que enfrentam múltiplos riscos e problemas em seu cotidiano. Há uma elevada incidência de mortes por homicídios e acidentes de trânsito. Os homicídios correspondem a 38% das mortes juvenis, ao passo que 27% das vítimas fatais de acidentes são jovens.

    Apenas 48% das pessoas entre 15 anos e 17 anos cursam o ensino médio e somente 13% daquelas entre 18 anos e 24 anos estão no ensino superior - revelando o significativo descompasso existente entre a idade e a escolarização dos jovens.

    Ademais, chega a 18% a porcentagem de indivíduos entre 15 anos e 17 anos que estão fora da escola, percentual que atinge 66% entre aqueles que tem de 18 anos a 24 anos - acrescente-se que a principal causa de abandono da escola entre os homens é o trabalho e, entre as mulheres, a gravidez.
   
    O desemprego é um problema cada vez mais grave para os jovens entre 15 anos e 29 anos, que já respondem por 46% do total de indivíduos nesta situação no país - a propósito, a razão desemprego juvenil/adulto aumentou para 3,5 nos últimos anos. A qualidade da ocupação é outro problema sério - 50% dos ocupados entre 18 anos e 24 anos são assalariados sem carteira, porcentagem que se mantém em 30% entre os que têm de 25 anos a 29 anos de idade.

    Por fim, a insuficiência de rendimentos é um risco para boa parcela da juventude - 31% dos indivíduos entre 15 anos e 29 anos podem ser considerados pobres, pois têm renda domiciliar per capita inferior a meio salário mínimo. O risco da pobreza é mais agudo para as mulheres e, também, para os negros - nada menos que 70% dos jovens pobres são negros.

    Esse cenário enfrentado pela juventude desperta preocupações na sociedade civil e também no Estado brasileiro. Desde - pelo menos - o final dos anos 1990, há uma extensa rede de organizações da sociedade civil que têm, entre seus focos de atuação, a temática juvenil.

  

Importância da articulação de políticas para jovens é medida pela atual
diversidade de conceitos de "juventude" entre os programas estatais

    A mobilização social e política alavancada por esses organismos tem
favorecido uma mudança de registro na discussão da condição juvenil.

    Mais do que uma etapa crítica na trajetória de vida dos indivíduos
e, paralelamente, mais do que uma fase preparatória para a vida adulta,
a condição juvenil possui "valor" por si mesma. Ademais, exige uma
série de políticas públicas gerais, e também específicas, que se
mostrem aptas a minimizar os riscos e os problemas já citados, bem como
maximizar as oportunidades de inserção econômica, social, política e
cultural dos jovens.

    Nos anos recentes, essas políticas ganharam importância destacada
no corpo estatal, até porque os compromissos assumidos pelo Brasil em
âmbito internacional o exigiam - compromissos assumidos, por exemplo,
por ocasião da discussão do Programa Mundial de Ação para a Juventude
(1995) e do Plano de Ação de Braga (1998), sob coordenação da ONU.

    No sentido de possibilitar a estruturação de uma Política Nacional
de Juventude no país, o governo federal criou em 2005 a Secretaria
Nacional de Juventude (SNJ), que atuaria com o apoio do Conselho
Nacional de Juventude (Conjuve) na implementação do Programa Nacional
de Inclusão de Jovens (Projovem).

    Este programa, originalmente direcionado para a população juvenil
entre 18 anos e 24 anos que estava fora da escola e do mercado de
trabalho, passou recentemente por um processo de ampliação, alcançando,
então, outros grupos juvenis - como aquele constituído por pessoas
entre 18 anos e 29 anos, que não concluíram o ensino fundamental, não
estão no mercado laboral e estão em domicílios considerados pobres. O
Projovem passou também por um processo de integração com programas
coordenados por outras instituições, com o intuito de oferecer uma
maior proteção contra os riscos, bem como um maior leque de
oportunidades de desenvolvimento para os jovens.

    Acerca disso, há relativo consenso entre os participantes do debate
de que a condição juvenil demanda a articulação de políticas gerais com
políticas específicas, além da integração de políticas coordenadas por
diversas instituições, de distintos setores do Estado brasileiro.
Aliás, um indicador da importância de se promover a articulação de
políticas para a juventude pode ser medida pela atual multiplicidade de
conceitos de "juventude" entre os programas estatais. A
operacionalizaçã o de cada um desses programas conta com diferentes
faixas etárias, cada qual focando em uma parcela da população juvenil.

    Além disso, há diferentes noções informando os conceitos de
"juventude" - alguns programas partem de noções mais atuais e
emancipadoras, que identificam e tratam os jovens como sujeitos de
direitos; já outros programas partem de noções mais tradicionais, em
que predominam perspectivas tutoriais e subordinadoras de tratamento.
Em seu relacionamento cotidiano com o Estado, os jovens defrontam-se
com essa multiplicidade de conceitos de "juventude", o que não é
saudável e só reforça a necessidade de maior integração das políticas.

    Enfim, os milhões de jovens enfrentam riscos e problemas que só
serão superados com a mobilização social e política das organizações da
sociedade civil, bem como com a estruturação de políticas públicas
gerais e específicas, de diversas origens e naturezas, que devem se
articular e integrar para a abertura de oportunidades de inserção dos
jovens na sociedade brasileira.

    Em 15/05/2008
    Por Marcio Pochmann
    *com Jorge Abrahão de Castro, diretor da Diretoria de Estudos Sociais do IPEA.

    Marcio Pochmann , presidente do IPEA (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada) e professor licenciado do Instituto de Economia da
Unicamp.

    Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea) e professor licenciado do Instituto de Economia e
pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da
Universidade Estadual de Campinas. Escreve mensalmente às
quintas-feiras.

 

Democracia e participação: reflexões a partir da 1ª Conferência de Políticas Públicas de Juventude

Os pesquisadores Patrícia Lânes e Maurício Santoro discutem em artigo a recente cena brasileira da participação juvenil e o processo de realização da 1a Conferência Nacional de Juventude
A democracia tem como princípios a liberdade, a diversidade, a
solidariedade, a igualdade e a participação. O sociólogo Hebert de
Souza, o Betinho, escreveu que é preciso a união desses ideais para que
a democracia exista. Também afirmou que ela é obra inesgotável, ainda
em processo de aperfeiçoamento em todo o mundo. Portanto, refletir
sobre os espaços e processos democráticos no Brasil de hoje é lembrar
de que eles estão sendo criados por toda sociedade e por cada um de
nós. Nas palavras de Betinho: “A democracia é o futuro que se constrói
hoje através da ação e da participação de todos e de cada um. (...) A
democracia não é um atalho, mas um caminho”.

A formação de conselhos e a realização de conferências que reúnem representantes da sociedade civil e do governo  para debater os rumos das políticas públicas é uma das inovações da redemocratização do Brasil. Desde a década de 1980, consolidaram-se iniciativas participativas como essas em setores como proteção à criança e ao adolescente, saúde e direitos humanos, que já realizaram dezenas de conferências. Outros campos, como políticas de promoção da igualdade racial e de defesa dos direitos das mulheres, têm experiência bem mais recente com tais medidas. A 1ª Conferência Nacional  de Políticas Públicas de Juventude é o um dos mais novos frutos do processo.

Levantamento coordenado pelo Ibase no projeto Monitoramento Ativo da Participação Social avaliou os principais avanços e obstáculos dos conselhos e das conferências. Entre os pontos positivos, destacam-se a construção de diálogos entre o poder público e a sociedade, mais transparência na formulação de políticas públicas e circulação aprofundada das informações relevantes. Entre os problemas: o esvaziamento de muitos desses espaços; a baixa influência institucional – que ocasionalmente os faz dependentes de personalidades carismáticas que possam liderar os esforços de articulação;  as dificuldades de organizações e movimentos sociais participarem nos vários espaços de debate, devido à escassez de recursos financeiros e humanos; as possibilidades de manipulação oficial dos processos participativos, utilizando-os para tentar legitimar decisões tomadas de antemão.

Nos últimos dias de abril aconteceu em Brasília a 1ª Conferência Nacional de Políticas Públicas de Juventude, da qual participaram aproximadamente 2 mil pessoas, entre  delegados(as) e convidados(as). O processo chegou a mobilizar, de acordo com a Secretaria Nacional de Juventude, mais de 400 mil pessoas, entre jovens, técnicos, educadores(as), gestores públicos etc. Foram realizadas conferências estaduais, municipais, pré-conferências e conferências livres sobre variadas temáticas, envolvendo  os mais diferentes segmentos de movimentos e organizações juvenis.

A Conferência é um marco no debate sobre políticas públicas de juventude no país, apesar de não ser o ponto zero do assunto. Desde meados da década de 1990, seja através de organizações não governamentais e movimentos sociais, seja em administrações públicas municipais, o debate vem ganhando força gradativamente.

Em março de 2004, o governo federal instalou o Grupo Interministerial de Juventude, formado por representantes de 19 ministérios e secretarias especiais, com o objetivo de identificar os principais desafios da juventude brasileira e pensar uma Política Nacional Integrada de Juventude. Em junho do mesmo ano, a Câmara dos Deputados, através da Comissão Especial Destinada a Acompanhar e a Estudar Propostas de Políticas Públicas para a Juventude, realizou processo de consulta pública, com audiências públicas e seminários estaduais,  culminando com encontro nacional que deu origem a um Plano de Juventude (PL 4530/04), que hoje tramita na Câmara.

Em 2003, o Instituto Cidadania e a Fundação Perseu Abramo organizaram  debates regionais como parte de seu “Projeto Juventude”, produzindo dois livros a partir dos dados da pesquisa realizada nessa iniciativa e também  publicação reunindo propostas para políticas públicas de juventude. (BRENNER, LÂNES, CARRANO, 2005) Em termos de análise acadêmica, já pode se dizer que há um acúmulo razoável sobre o tema se considerado além no Instituto Cidadania, surveys e pesquisas qualitativas realizadas por entidades como Unesco, Ibase/ Pólis, e universidades públicas como USP, UFF, UFMG.

Ainda assim, a Conferência Nacional de Políticas Públicas de Juventude  continua sendo uma conquista para o debate. Foi realizada a partir de órgão federal criado para trabalhar o  tema (Secretaria Nacional de Juventude) e de instância de interlocução entre poder público e sociedade civil (Conselho Nacional de Juventude, Conjuve), ambos formados em 2005. Na Conferência foram aprovadas 69 resoluções para as políticas públicas de juventude (PPJs), dentre elas 22 prioridades que deverão ser acompanhadas/monitoradas de forma mais sistemática pelo Conselho e pela sociedade civil organizada como um todo.

Se a Conferência tem grande peso político e de mobilização é necessário refletir sobre seus avanços e também sobre seus limites. E, ainda, sobre desafios para os mecanismos de participação que estão longe de serem exclusivos do campo de debate sobre juventude ou deste evento em especial.

A Conferência como processo

O processo de mobilização que precedeu a Conferência Nacional de PPJ reuniu mais de 400 mil pessoas. De acordo com o governo federal, foram realizadas etapas estaduais em 27 unidades da federação, reunindo mais de 24 mil pessoas e elegendo 1210 delegados(as) para a etapa nacional. Nos municípios, foram 308 conferências.

Segundo a Secretaria Nacional de Juventude, “(...) o processo de realização das etapas municipais foi muito importante para ampliar a rede institucional relacionada à juventude nesta esfera da Federação. Antes do início do processo havia registro de menos de 100 órgãos municipais de juventude, hoje já são cerca de 250.”

Além das etapas municipais e estaduais, foram realizadas, ainda, 401 conferências livres, envolvendo 70 mil pessoas e cerca de 350 organizações. Os principais promotores desse tipo de modalidade de conferência foram os movimentos sociais e ONGs, seguidos dos mandatos parlamentares e programas de governo.

Tal mobilização envolvendo o debate sobre PPJ desconstrói, uma vez mais, as generalizações que enxergam a juventude como um todo monolítico e alienado, incapaz de se ocupar com processos de crítica e transformação da sociedade. Há cerca de 50 milhões de jovens no Brasil – uma geração que nasceu e cresceu sob a retomada da democracia. Pesquisas coordenadas pelo Ibase e pelo Instituto Pólis em 2005 e 2007 mostram interesse da juventude em participar da política (entre oito mil entrevistados, 85% declararam ser necessário maior diálogo entre cidadãos e governos), ainda que tal vontade seja dificultada pela falta de informação, pelo transporte deficiente e pelo tempo escasso de quem precisa conciliar trabalho e estudo. Os(As) jovens se sentem distantes das instituições formais que discutem a política, e críticos(as) diante de quem os representa, embora depositem no Estado grandes expectativas para as soluções de seus problemas.

Neste contexto, a Conferência pode ser entendida, sobretudo, como um espaço onde demandas e bandeiras puderam se fazer ecoar. Não se trata de uma visão romântica onde todos(as) têm igual espaço para se colocar. O processo é também um espaço de luta política onde movimentos e organizações juvenis que já são visíveis e têm maior legitimidade social buscam reafirmar seu lugar (se colocando algumas vezes como “porta-vozes” da juventude), ao mesmo tempo em que expressões mais recentes da organização batalham por maior espaço para as suas pautas. No caso da Conferência Nacional, tampouco trata-se de um espaço exclusivamente juvenil, uma vez que do campo das PPJs também participam atores do mundo adulto, como lideranças de movimentos dos quais os(as) jovens participam; técnicos(as) de ONGs e projetos sociais; gestores(as) de políticas públicas.

Nesse cenário, como apontou a antropóloga e ex-presidente do Conjuve, Regina Reyes Novaes, há muitas alianças possíveis que são combinadas de acordo com a questão em pauta e com o contexto político. Em sua análise sobre o conselho aponta que “(...) nas discussões e deliberações entre conselheiros e conselheiras da sociedade civil e dos diferentes ministérios e órgãos revelam-se outras alianças e contraposições baseadas em diferenças geracionais, de concepções, de causas, de visões sobre prioridades, meios e fins”.

Isso também se expressou no processo da Conferência. Para além das alianças entre setores da sociedade civil organizada, houve acordos entre setores do poder público e entre as duas esferas. As Conferências municipais e estaduais expressaram a correlação de forças local, tornando público, através de conflitos, negociações e acordos, o debate e as disputas em torno das PPJs. Em diversos estados, por exemplo, houve manifestações públicas de grupos e movimentos contra a forma de organização do evento, sua condução ou concepção, o que rendeu uma série de cartas e manifestos (escritos ou audio-visuais) que foram posteriormente divulgados através da Internet.

Metodologias: avanços e desafios

Um aspecto fundamental para a realização de qualquer conferência é a metodologia utilizada, ou seja, a maneira através da qual os debates conceituais e as disputas políticas irão acontecer na prática. A organização da Conferência Nacional trilhou caminhos interessantes nesse sentido. Por um lado, a partir da concepção de sua estrutura, abriu a possibilidade para que este processo acontecesse para além das institucionalidades. Se as conferências municipais e estaduais precisavam de um órgão do Estado daquele âmbito para acontecerem e elegerem representantes para a etapa seguinte, as pré-conferências e conferências livres mostraram-se bastante profícuas ao abrirem a possibilidade de setores da sociedade civil e do poder público ampliarem o diálogo junto a jovens, tanto na perspectiva de “prepará-los(as)” para participar das etapas “institucionalizadas”, quanto no de dar eco para pautas que, de outro modo, acabariam invisíveis dentro de  dinâmica mais ampla.

As conferências livres foram a grande surpresa do processo ao reunir cerca de 70 mil pessoas em torno de temas como o voto aos 16 anos, mídia, tempo livre, cultura e lazer, meio ambiente, as questões raciais, de gênero e GLBTT, entre muitas outras, além de ter contado com a participação, por exemplo, da juventude universitária e de jovens de comunidades tradicionais. Esta modalidade tornou possível, ainda, a participação de segmentos da juventude que, de outra forma, estariam alijados do processo, caso, por exemplo, de jovens que cumpriam medidas sócio-educativas, encontrando-se privados(as) de liberdade.

A dinâmica do encontro nacional, realizado entre os dias 27 e 30 de abril, em Brasília, pode ser resumida da seguinte maneira: Dia 1 - solenidade de abertura com autoridades governamentais, seguida de “mesa de contextualização” sobre PPJs. Dia 2: grupos de trabalho e realização de oficinas autogestionadas. Dia 3: momento interativo e plenárias para aprovar resoluções e prioridades. Dia 4: plenária final para debater moções de apoio e repúdio.

No que diz respeito à realização da Conferência Nacional de PPJs, os Grupos de Trabalho (Gts) temáticos ajudaram a organizar o debate em torno das políticas públicas. Seu amplo espectro ia desde de questões tradicionais do movimento de juventude como educação, trabalho e cultura; passando pelas identidades específicas, como juventude negra, mulheres jovens, juventude GLBTT, jovens com deficiência e jovens do campo; e indo até o debate sobre política e participação e a institucionalização das políticas públicas de juventude.

Durante a Conferência Nacional, pensando no número de cerca de 2 mil participantes, muitos dos 23 GTs estiveram esvaziados, com 30/40 participantes. Deve-se avaliar a variação da adesão segundo temas e interesse, mas pode-se ponderar que em um evento tão grande, mesmo sendo o debate sobre as PPJs o foco principal, nem todos(as) os presentes efetivamente tomam parte da discussão de forma permanente. Neste sentido, a conferência também pode ser lida como oportunidade para que grupos, redes e fóruns de juventudes criem seus espaços de discussão e de expressão, independente da dinâmica formal em curso ou da programação oficial do evento.

No entanto, ainda sobre os Grupos do Trabalho, é preciso ponderar sobre o que eles nos revelam sobre a composição dos temas/ demandas que traduzem o debate sobre PPJ hoje no país. De acordo com a socióloga Helena Abramo, no relatório brasileiro da pesquisa “Juventude e Integração Sul-Americana: caracterização de situações-tipo e organizações juvenis” (Ibase/ Pólis, 2006), “(...) no plano político, ainda é incipiente o debate sobre o que é comum à juventude e, portanto, quais seriam as pautas comuns aos jovens brasileiros” (p. 13) , ao mesmo tempo em que a usual utilização do termo “juventude” no plural busca chamar a atenção para as diferenças e desigualdades existentes.

No que diz respeito às identidades específicas juvenis (negros(as); mulheres; cidade/campo; deficientes; GLBTT etc) continua evidente a tensão presente entre dar visibilidade e espaço para que essas juventudes, que assim se auto-reconhecem, expressem questões e demandas específicas e integrar estes mesmos sujeitos aos debates que, por terem caráter mais universal (como educação, trabalho, saúde, cultura etc), necessitam do olhar específico para não perder o vínculo com o que é vivido no cotidiano.

Esta questão também se colocou de forma contundente na primeira gestão do Conselho Nacional de Juventude, e nos faz refletir sobre perdas e ganhos ao tratar o específico de forma setorizada ou de se buscar incluí-lo em debates mais amplos, que muitas vezes tornam invisível a questão. Na verdade, talvez não se trate de algo a ser “resolvido” mas é importante que seja permanentemente problematizado já que se trata de componente da maneira como se organizam hoje as pautas de movimentos e organizações de juventude, ou que trabalham com jovens, no país.

Se houve avanços significativos em termos do método criado para a realização da Conferência, é preciso também apontar alguns de seus limites. A falta de espaços para aprovação em plenária do Regimento Interno, que era ratificado apenas pelos(as) participantes das comissões organizadoras; a opção pelo debate em plenária apenas dos últimos desafios/ propostas mais votados; e o fato de os(as) conselheiros(as) de juventude serem, a priori, delegados(as) natos(as) são aspectos metodológicos sobre os quais houve polêmica.

Nesse mesmo sentido, é preciso avançar na concepção do “momento interativo”, espaço na conferência onde os(as) delegados(as) recebiam adesivos que deveriam ser colocados nas propostas (definidas pelos GTs) de sua preferência. De acordo com o método, cada delegado(a) podia colar, no máximo, três adesivos em uma mesma proposta. A dinâmica se mostrou pouco adequada, pois a fiscalização praticamente inexistiu, abrindo a possibilidade de que uma mesma pessoa colasse, por exemplo, todos os seus  adesivos em uma mesma proposta. Neste momento, era possível que pessoas dos Grupos do Trabalho ficassem próximas às suas propostas/ desafios, pedindo “votos” e fazendo “propaganda” daquelas que julgavam mais importantes.

É importante investir na criação de métodos que tornem momentos da conferência menos burocráticos e enfadonhos, sobretudo se pensamos que boa parte dos(as) jovens presentes não tinha experiência em espaços de participação como os do evento. No entanto, é essencial que os métodos escolhidos sejam capazes de garantir a idoneidade do processo. Este aspecto precisa ser avaliado com muito cuidado para que se avance nas próximas conferências.

Dentre os ganhos deste evento, está também a realização de pesquisa sobre o perfil de seus(suas) participantes, coordenada pelas sociólogas Miriam Abramovay e Mary Castro, que contou com aplicação de questionário junto a 1827 participantes e a realização de 30 Grupos Focais, envolvendo cerca de 30 representantes de redes, fóruns, partidos, movimentos e grupos identitários. O levantamento pode ajudar a mapear o universo do debate das PPJs e a se conhecer melhor a realidade desta conferência. Talvez, assim, seja possível criar condições de participação ainda mais adequadas ao perfil de seus(suas) participantes.

Neste sentido, a preocupação com a mobilização de jovens que trabalham com mídia e comunicação em diferentes grupos e redes, para fazer a cobertura jornalística do evento, coordenada pela revista Viração, se mostrou coerente com o princípio de participação, visibilidade de expressão de uma importante parcela de juventude .

Outro ganho significativo foi a ampla cooperação internacional desenvolvida pelo Brasil na área de PPJs, em particular com a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e com a Organização Ibero-Americana de Juventude (OIJ). A presença de delegações desses países propiciou rica troca de experiências, que confirmaram o quanto o Brasil tem a aprender e ensinar no convívio com esses Estados. Por exemplo, acompanhar iniciativas como aquelas adotadas pela CPLP, nos quais leis exigem que o conselho de juventude seja ouvido pelo parlamento quando estiver em discussão projeto de legislação que afete a população jovem.

Os debates no âmbito da OIJ estiveram focados na proposta brasileira de aderir à Convenção Ibero-Americana dos Direitos da Juventude. Embora o tratado seja bem avaliado pela sociedade civil, há dúvidas se sua ratificação neste momento seria benéfica. Muitos acreditam que o melhor caminho seria aprovar primeiro o marco legal doméstico (Estatuto da Juventude, Plano Nacional de Juventude) e só depois assumir compromissos internacionais que reforçassem as leis internas.

Nesse sentido, é fundamental a continuidade e o aprofundamento do diálogo com o Congresso Nacional. Representantes da conferência foram recebidos(as) em audiência pelo presidente da Câmara dos Deputados e lhe fizeram duas solicitações: 1) a de que se empenhasse pela aprovação da proposta de emenda constitucional 138/03, que introduz o termo “jovem” na Constituição (a exemplo do que já ocorre com idosos, crianças e adolescentes); 2) a de que a  Câmara ratifique a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada recentemente pela ONU.

Propostas e prioridades

Ao final da Conferência foram eleitas 69 resoluções e, dentre elas, 22 prioridades. As 18 mais votadas no momento interativo foram apenas apresentadas durante a plenária final. As que passaram por votação em plenária foram as 19ª, 20ª, 21ª e 22ª. Sobre as prioritárias, importante pontuar terem sido aprovadas três relativas à cultura; duas à segurança; duas sobre juventude do campo  e duas ao “fortalecimento institucional” das PPJs.

Foram aprovadas também duas propostas vindas da área de educação: uma relativa à “educação básica – elevação da escolaridade” e uma relativa à “educação superior”. Trabalho, meio ambiente, esporte, política e participação; jovens mulheres; povos e comunidades tradicionais; Cidadania GLBT e jovens com deficiência tiveram uma proposta aprovada como prioridade cada . É importante ressaltar que em diversos casos, como o das jovens mulheres, a prioridade eleita expressava bandeiras históricas do movimento (neste caso, a legalização do aborto faz parte da proposta eleita como 11ª prioridade).

Destaque especial deve ser dado ao fato da proposta do GT “Jovens negros e negras” ter sido a mais votada da conferência, com 634 votos. Nela foram referendadas as resoluções do 1º Encontro Nacional de Juventude Negra (ENJUNE), realizado em julho de 2007, na Bahia, pedindo-se seu reconhecimento e transformação em PPJ.

Importante que seja feito esforço de análise para compreender o conteúdo de cada uma das resoluções e prioridades tiradas em sua relação com o contexto das PPJs. Outra importante análise será sobre a composição do mosaico formado a partir das propostas elaboradas na Conferência. Por ora, é possível reafirmar apenas que a pluralidade das propostas mais votadas reflete, por um lado, as relações de força entre distintos movimentos, partidos políticos, entidades, organizações sociais e diferentes setores do governo, e as possibilidades e limites do processo em que se deu tal escolha. Pode-se falar, também, de um considerável avanço de composição que, mais uma vez, revela a pluralidade presente neste campo.

A Conferência é, portanto, importante avanço na consolidação da nossa recente democracia. Pode ajudar a tornar concretos valores como a participação e a diversidade. Ajuda, ainda, a criar canais para que essa participação se dê na prática. Apostar em mecanismos da chamada democracia participativa, como as conferências, significa também “(...) uma forma de adensamento da relação Estado-sociedade civil, que vem colaborar com o processo de alargamento da democracia nas sociedades contemporâneas”. (Moroni, 2005) É preciso continuar a investir na ampliação desses espaços e em mais transparência neles.

Permanecem desafios, para governo e sociedade civil, de dar sentido e conseqüência à experiência participativa de milhares de jovens que, de alguma forma, se envolveram na conferência. De acordo com a cientista política Ana Cláudia Teixeira, “A impressão é que as experiências participativas no Brasil, mundialmente reconhecidas, 'correm por fora', ficando na periferia do sistema, afetando pontualmente uma ou outra política setorial, a depender da vontade política dos governos e/ou do poder de pressão da sociedade organizada”. (Le Monde Diplomatique Brasil, 2008)

No caso das PPJs, após a realização da conferência e da ampla mobilização social em seu processo, é tempo de reconhecer quais mecanismos podem ajudar a monitorar a efetivação das resoluções e ampliar a capacidade de sua influência nas pautas governamentais em todos os níveis. Para isso, será necessário a ampliação dos espaços de articulação da sociedade civil mobilizada a partir desta temática (como fóruns, redes, articulações etc), mas também a maior apropriação de espaços de interlocução entre poder público e sociedade, como o Conselho Nacional de Juventude. Este, em particular, ganha relevância no monitoramento das PPJs existentes, e também na transformação das resoluções da Conferência em realidade. E isso só será possível com pressão social permanente e negociação constante entre muitos interesses e perspectivas que conformam o campo das PPJs no Brasil.

*Patrícia Lânes- Socióloga, pesquisadora do Ibase e do Observatório Jovem do RJ/ UFF.
*Maurício Santoro- Cientista politico, pesquisador do Ibase e Conselheiro Nacional de Juventude.

Sites
http://www.juventude.gov.br/conferencia                       

http://www.revistaviracao.com.br/juventude/ 

Bibliografia

ABRAMO, Helena. “Relatório nacional – Brasil – Juventude e Integração Sul-Americana: caracterização de situações-tipo e organizações juvenis”. Ibase/ Pólis, novembro de 2007.

BRENNER, Ana Karina; LÂNES, Patrícia; CARRANO, Paulo César R. “A arena das políticas públicas de juventude no Brasil: processos sociais e propostas políticas”. In: JOVENes – Revista de Estudios sobre Juventud. Centro de Investigación y Estudios sobre Juventud e Instituto Mexicano de la Juventude. Ano 9, Número 22, janeiro-junho 2005.

MORONI, José Antônio. “Participamos, e daí?” Texto para debate. Observatório da Cidadania, novembro de 2005.

NOVAES, Regina. “Políticas de Juventude no Brasil: continuidades e rupturas”. Juventude e Contemporaneidade. Coleção Educação para Todos, MEC e UNESCO, 2004

SOUZA, Herbert de. “Democracia e Cidadania”. In: RODRIGUES, Carla (org.). Democracia: cinco princípios e um fim. Coleção Polêmica, Ed. Moderna, 2ª Ed., São Paulo, 1996.

TEIXEIRA, Ana Cláudia. “Até onde vai a participação cidadã?”. Le Monde Diplomatique  Brasil. Ano 2, Número 7, Fevereiro de 2008.

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