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Uma data para ser celebrada?

Os desníveis sociais continuam a rimar com cor e raça

 - Já se passaram 120 anos desde que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea. Até cerca de 20 anos atrás, este era um momento cívico de segunda grandeza, mas que mobilizava colégios e outros eventos proclamando a redenção dos escravos. No período presente, debaixo das fortes críticas do movimento negro, o dia passou a ser encarado como uma farsa. Assim, na falta de entusiastas, a efeméride caiu quase que no esquecimento. Mas gostando-se ou não do dia, o fato é que sua realidade histórica existe. E como tal precisa passar pelo olhar crítico dos que o vivem no tempo presente.

O Brasil, tendo sido o maior importador das Américas de africanos
seqüestrados em seu continente ancestral (estima-se que tenha chegado a
40% do total), foi o último país do Ocidente a pôr fim ao regime
escravista. Terra de transições lentas e graduais, foram necessários
exatos 66 anos, desde a Independência, para que não existissem mais
escravos em nossas terras. Apenas à guisa de exemplo: em 1888, Karl
Marx, célebre por sua crítica ao capitalismo já consolidado na Europa,
jazia no cemitério londrino de Highgate havia cinco anos. Pouco importa
que desde a década de 70 do século 19 a maior parte dos pretos e pardos
não fosse mais escrava. O fato é que importantes centros econômicos do
País naqueles idos, como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais,
concentravam um amplo contingente de escravizados, geradores de
riquezas para a antiga elite senhorial.

Sob a forte pressão da
Inglaterra e num contexto de franca expansão dos movimentos
abolicionistas, em especial as rebeliões que começaram a se espalhar
pelas senzalas de todo o País no período posterior a 1880, as elites
locais foram obrigadas a aceitar o inevitável que era o fim do sistema
escravista. Até os anos 1920, as teorias forjadas pelas elites
intelectuais brancas entendiam que nossa crônica incapacidade ao
progresso seria causado pelo fato de sermos originários de africanos,
indígenas e portugueses, raças fracas e incapazes para grandes missões
históricas. Já a partir da década de 1930, a compreensão dos
modernistas de nossa realidade social passou justamente a valorizar
essas três matrizes étnicas, bem como a figura do mestiço. Assim, o
Brasil seria um país que estaria livre da chaga do racismo. E como tal
poderia almejar ocupar um local muito especial ao lado das nações mais
prósperas do mundo desde sua condição de uma Europa Tropical, usando o
termo caro a Gilberto Freyre. O desenvolvimento econômico traria
consigo a igualação nas condições de vida de negros e brancos, pensavam
os otimistas de então.

Ambas as compreensões acabam padecendo de
problemas específicos. Na primeira vertente, o racismo mais ou menos
explícito das antigas elites servia como um elegante modo de se dizer
que os escravizados e sua prole, supostamente inferiores, não teriam
acesso a direitos sociais, à terra e aos empregos. Na segunda matriz,
acabou se operando com um tipo de otimismo que, se por um lado, foi uma
útil ferramenta ideológica ao projeto desenvolvimentista, por outro
também atuou como um meio de congelamento de assimetrias herdadas do
passado.

Ora, uma coisa é se dizer que o povo brasileiro seja
majoritariamente mestiço, fato verdadeiro. Outra é dizer que esses
mestiços sejam rigorosamente iguais em termos físicos, como se os
caracteres herdados (cores de pele, tipos de cabelo, formas de partes
do rosto) não fossem usados como mecanismos de classificação social dos
indivíduos, posto serem mais ou menos valorizados socialmente. Isso
ocorre porque vigoram na sociedade ideologias, racistas, que dão
significados simbólicos específicos às diferentes formas humanas,
hierarquizando-as. Assim, as pessoas de traços europeus acabam
percebendo possibilidades que são sistematicamente negadas pela
sociedade, e mesmo pelo Estado, aos de traços africanos. A ideologia da
democracia racial, portanto, superestima um dos aspectos da dinâmica
social, ocultando a força dos mecanismos de discriminação e seus
efeitos negativos para as pessoas identificadas socialmente enquanto
negras.

Até 1995, os pretos e pardos formavam 45% da nossa
população. Em 2006 esse porcentual atingiu 49,5%, sendo razoável supor,
dado o comportamento da série histórica, que venha a aumentar ainda
mais nos próximos anos, tornando maioria. Essas alterações revelam que,
concomitantemente a movimentos demográficos específicos, pode estar
ocorrendo alterações no modo de entendimento de como os brasileiros se
vêem, no sentido de uma maior assunção de suas origens não-européias,
fato até então inédito.

Por outro lado, apesar da queda das
assimetrias de cor ou raça observadas em um período recente em alguns
indicadores sociais, nos dias atuais a remuneração média dos negros é
praticamente metade da dos brancos. Entre as mulheres negras ocupadas,
75% trabalham como empregadas domésticas ou em outras formas de
ocupação sem nenhuma garantia legal. Entre 2000 e 2005, foram
assassinadas por hora no Brasil 3,33 pessoas de cor preta e parda. A
taxa de analfabetismo dos negros segue sendo mais do que o dobro da dos
brancos. Somente 6 em cada 100 jovens negros entre 18 e 24 anos de
idade freqüentam instituições de ensino superior. No Congresso Nacional
os afro-descendentes não formam sequer 10% dos parlamentares.

Na
verdade seria inútil a tentativa de responder se a data é para ser
comemorada ou não. Os desníveis sociais existentes em nosso país se
combinam com a própria composição de cor ou raça do País no seu
conjunto, fato facilmente constatável nas ruas e demais espaços sociais
e tão bem retratados pelos indicadores demográficos disponíveis. O 13
de Maio, assim, seguirá como uma data, decerto importante enquanto
marco histórico. Contudo, a tarefa da realização da justiça social para
os descendentes dos antigos escravos segue sendo uma agenda - e uma
utopia a ser realizada pelo povo brasileiro.

* Marcelo Paixão é professor do Instituto de Economia da UFRJ

Publicado em 18/05/08
Pelo jornal O Estado de São Paulo, por Marcelo Paixão