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O ovo da serpente

O bárbaro episódio protagonizado no Rio de Janeiro pelos criminosos fardados do Exército é um sinal de que ultrapassamos o fundo do poço e nos aproximamos perigosamente das profundezas do horror totalitário.

Não vamos fingir que se trata de um episódio isolado. A
responsabilidade é do Estado e da sociedade que tem sido leniente e
tolerante com a brutalidade sistemática exercida pelos que deveriam ser
os guardiões dos direitos dos cidadãos. É preciso uma intervenção
radical, um movimento cívico que rompa com a inércia e o silêncio
cúmplice que deixa as populações das periferias pobres e das favelas à
mercê da barbárie executada pelo tráfico, pelas milícias, pela polícia
e agora pelo Exército.

Estamos vendo o crime penetrar todas as esferas do Estado. As últimas
notícias mostram que, no Rio de Janeiro, ex-governadores, ex-chefes de
polícia, deputados e autoridades públicas deram as mãos ao crime
organizado para ampliar o poder e a riqueza. As instituições vão aos
poucos sendo corrompidas e manietadas, ferindo gravemente o estado de
direito e a democracia.

Da mesma forma estamos vendo a banalização do extermínio puro e simples
de jovens pobres, em supostos confrontos com uma polícia ineficiente,
mal treinada e mal paga, que parece ter tomado gosto pela matança. Com
o aplauso entusiasmado de uma classe média acuada pelo medo, que
prefere a limpeza da cidade a qualquer preço do que enfrentar o desafio
maior de reestruturar o sistema de segurança pública e garantir
direitos iguais a todas as pessoas. Nunca é demais lembrar que as
sementes do totalitarismo e do fascismo historicamente se alimentaram
do medo e do silêncio.

O absurdo e a violência desse episódio humilham o Estado e lança uma
mancha sobre o Exército que dificilmente será apagado com pedidos de
desculpas formais, ainda que necessários e imprescindíveis.

A ausência de autoridades públicas no enterro dos jovens e as
declarações quase protocolares do governador e do presidente não
correspondem à gravidade do episódio.

A sociedade carioca também deve se perguntar a razão pela qual
tragédias como essas não provocam uma onda de indignação, um grito
coletivo de basta que coloque um ponto final na verdadeira política de
extermínio que tem sido posta em prática no Rio de Janeiro, com um
custo alto de vidas de jovens, em sua maioria negros e pobres. Por que
as únicas manifestações públicas de dor e revolta são as das próprias
comunidades violentadas? Acho que já passamos da hora de formar uma
aliança acima dos interesses particulares, partidários ou econômicos,
que coloque como prioridade absoluta uma política de segurança pública
e de desenvolvimento social que pense a juventude excluída não como
problema ou ameaça, mas como parte essencial do nosso futuro como
sociedade.

Por que não podemos reunir novamente o que temos de melhor? Ou será que
perdemos totalmente a capacidade de indignação e vamos seguir
recolhidos em nossos bunkers urbanos enquanto os cães de guerra
espalham sem limites a selvageria?

Atila Roque
Historiador e Diretor do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos)

Publicado em 23/6/2008
Pelo jornal O Globo

As opiniões dos artigos não traduzem, necessariamente, posições do Observatório Jovem.