Acervo
Vídeos
Galeria
Projetos


Segredos Internos. O sucesso do maio de 1968, em uma escola técnica, em maio de 2008

De volta pra 1968 - alunos do CEFET de Química no RJQuem viu, se surpreendeu: durante uma semana, os alunos do CEFET Química (RJ) participaram em massa de atividades, as mais diversas, refletindo sobre os significados dos eventos mundiais de 1968 para sua geração. Não fomos a única instituição a comemorar a data, mas o envolvimento dos alunos no projeto surpreendeu os freqüentadores de atividades parecidas. Tantos, tão emocionados, com tanta gana – como vocês conseguiram? Era a pergunta que mais ouvíamos

Este artigo é uma tentativa de responder a todos, e a nós mesmos, na verdade. Alinhava os aspectos que consideramos fundamentais dessa experiência, ainda sem  hierarquizá-los. Vai escrito no calor da hora. Na forma de um relato, ele introduz o sentido da Semana da Cultura no âmbito da escola, apresenta os frutos de sua  última edição e conclui com as palavras daqueles que produziram-na, os alunos.

O CEFETQUÍMICA E A SEMANA DA CULTURA: UMA RELAÇÃO EM CONSTRUÇÃO

Um Centro Federal de Educação Tecnológica é, por definição, uma instituição de ensino técnico. No caso do CEFET Química, que se pretende responsável pela formação de profissionais de excelência, isso se traduz em uma concepção curricular que privilegia a articulação entre teoria e prática, entre o pensar e o fazer por si próprio. A prática cotidiana nos laboratórios facilita a viabilização desta perspectiva nas disciplinas da formação específica. Desenvolver esta abordagem nas chamadas Ciências Humanas, aí incluindo a língua e a literatura, tem sido um desafio cotidiano para os professores desta área, principalmente por serem os cursos integrados, isto é, por compreenderem tanto a formação técnica quanto aquela que popularmente é conhecida como de “ensino médio”, e que viabiliza o ingresso no curso superior.

As Semanas de Cultura são uma tentativa de responder a este desafio. Realizadas sempre no primeiro semestre letivo culminam projetos que, desenvolvidos fundamentalmente pelas disciplinas de caráter propedêutico, buscam articular conhecimento acadêmico e sociedade, teoria e prática.

Com elas abrimos espaço para a reflexão crítica sobre a ciência e o conhecimento científico com o qual lidamos cotidianamente, resgatando a dimensão da “escolha” contida em todo o conhecimento humano, inclusive no científico.

Com este fito, nos últimos três anos vimos seguindo um planejamento que levou à primeira semana intitulada Mama África, a presença africana no Brasil de hoje (2006), à segunda semana, América Latina – tão perto... tão longe (2007) e previa ainda uma última semana que buscaria fazer um Retrato do Brasil contemporâneo. Revimos o cronograma em função dos 40 anos de 1968, temática que por trazer à tona  a utopia, os projetos e a contestação de toda um geração nos pareceu capaz de intensificar a dimensão de crítica que pretendemos fomentar e nos permitiu, ao mesmo tempo, manter a interlocução com os temas trabalhados nas Semanas anteriores.

A SEMANA DA CULTURA: MAIO DE 2008, 40 ANOS DEPOIS...

Uma vez definido o tema em fevereiro de 2008, e realizada a incorporação do mesmo no planejamento de aulas e atividades dos professores – aqui falamos prioritariamente dos de história, filosofia, música, artes plásticas, sociologia, geografia e teatro – partimos para a etapa seguinte: levar a que os alunos também se apropriassem da temática.

Nas diferentes disciplinas foram apresentados textos, fotos, filmes - em uma visão panorâmica, travava-se  contato com os acontecimentos centrais, com os principais sujeitos históricos e com as linhas de força do movimento que, como lembram Antônio Negri e Giuseppe Cocco, aspirava à “transformação do desejo em ação”.

Neste momento, tal qual esperávamos, houve uma quase imediata identificação dos alunos com o tema. O 68 da resistência à ditadura, o da contracultura, o do poder negro, o da libertação feminina ou, ainda o da revolução iam sendo incorporados ao dia-a-dia dos alunos, segundo as suas preferências. Mas foi o encantamento com a constatação de um protagonismo juvenil que unificou, ao nosso ver, as distintas abordagens.

Mundo Hippie Esta atitude positiva em relação ao assunto conduziu dois tipos de ação diferenciados: no interior de cada disciplina foram elaborados projetos, cuja escolha e condução foram frutos de debates intensos e decisões coletivas. Tais projetos nortearam as aulas, pelo menos nas disciplinas nas quais os professores conseguiram o melhor encaixe entre os conteúdos que constam do programa e os temas da Semana, até maio. Concomitantemente foi montada uma comissão executiva na qual participavam voluntariamente professores e alunos, com encontros periódicos.

Esta estratégia, que consideramos bastante exitosa, resultou na mobilização dos alunos que foram agentes “produtores” de praticamente metade dos eventos, sem falar na sua participação real como interlocutores nas mesas-redondas.

Ao lado da curiosidade com o tema, não podemos deixar de considerar que para um resultado no qual resgatamos internamente o “poder jovem” – em uma tradução que enfatizou o tornar-se sujeito do aprendizado, o imaginar, o executar e o viabilizar as atividades – a tradição de autonomia no estudo dos alunos de uma instituição técnica teve peso considerável. Em uma bancada de laboratório, os alunos são responsáveis pelos resultados, precisam resolver – muitas vezes sozinhos – os problemas que eventualmente surjam e, ao final, devem produzir sistematizações de seus passos, bem como explicar, a luz do conhecimento teórico os resultados obtidos. São bastante propensos, portanto, a tomar em suas mãos o processo de conhecer, ainda mais quando desejam fazê-lo.

E assim eles o desejaram! Tomando a escola entre os dias 12 e 16 de maio de 2008, os alunos (re) inventaram formas de organização e resistência, seja através da criatividade que demonstraram no preparo das salas temáticas e na montagem de peças teatrais e esquetes, seja através do enfrentamento e intensas negociações que travaram para serem liberados das práticas e aulas e provas que infelizmente coexistiram com a Semana. E aqui, não poderíamos nos furtar de comentar que, apesar de estar já em sua oitava edição, a Semana da Cultura ainda gera controvérsias entre os docentes e direção da instituição. Tensão que espelha concepções diferentes do que venha a ser um técnico. Nós, professores da área de humanas, pensamos que ainda sobrevive na instituição uma certa resistência em fazer da Semana da Cultura uma semana em que nos horários das aulas, os alunos possam, de fato, participar ativamente, sem sanções, faltas ou perdas de trabalhos, relatórios e provas.

A estrutura da semana contava com mesas-redondas, palestras, exibição de filmes, salas temáticas, peças de teatro, festival da canção, esquetes, apresentação do coral e dança. Todos os elementos que compuseram a semana foram pensados, repensados nas reuniões que antecederam-na. 

Contamos com palestrantes emocionados, que ao final da palestra se mostraram realmente entusiasmados com a participação do público, pois os alunos, movidos pela curiosidade despertada pelos diversos assuntos tratados, assim que quebraram a barreira da timidez, encheram nossos palestrantes de perguntas das mais distintas. Queremos aqui registrar a participação dos muitos professores e convidados que tão bem construíram um rico panorama do que foi 68, e vale ressaltar que todos participaram de nossa semana única e exclusivamente por apoiarem a nossa proposta, mostrando que essa forma de produzir conhecimento, por meio do debate, da conversa, é um trabalho que se faz não só por dinheiro, mas também pelo que se acredita.

Dentre os palestrantes tivemos na palestra Significados de 68, a professora Lená Medeiros (UERJ). Na palestra sobre o Movimento Estudantil, o professor Jean Marc Van der Weid (ex-presidente da UNE). No debate sobre Contracultura, contamos com a professora Adriana Facina (UFF) e o dramaturgo e diretor de teatro Amir Haddad (Grupo Tá na Rua), que emocionou a todos com seu trabalho artístico e com seu testemunho de luta. A professora Cecília Coimbra (da diretoria do GrupoTortura Nunca Mais/RJ e da UFF) discutiu com os alunos o documentário Memória para uso diário. Já o debate Juventude, Sexo, Drogras e Rock´n Roll, que teve a participação da professora Elisa Guaraná (UFRRJ) e do professor Paulo Carrano (UFF), possibilitou uma análise sem romantismo da juventude de 68, deixando claro na mente de nossos alunos que a juventude de hoje não é tão perdida nem tão alienada como pensam os próprios jovens. Na mesa Como nossos pais, a professora de história da casa Márcia Guerra (CEFETEQ) e Dora da Costa (Faculdade de Educação da UFF), relataram as suas próprias experiências de vida em 68 e transportaram os alunos para um outro tempo.

Um motivo de orgulho, que também merece menção nesse relato, foram as Salas temáticas, que embora tenham sido pensadas e fomentadas como atividade de determinadas disciplinas das áreas “humanas”, contou com temas que eram pertinentes a diversas disciplinas. Os debates ocorridos nas salas temáticas, que contaram com palestrantes externas como: Luciene Lacerda (IESC/UFRJ), Daniele Duarte (Crioula) e Julia Zanetti (Observatório Jovem/UFF), conseguiram atingir um grande êxito no campo da interdisciplinaridade e revelaram as reais vocações de um projeto pedagógico como a Semana da Cultura, que visa a formação ampla que dialoga com as áreas exatas e não exatas, bem como a possibilidade de articulação entre os diferentes campos do conhecimento no interior da escola. O sucesso é ainda mais visível face ao tratamento muitas vezes “linear” do nosso programa de formação técnica.

Aborto em debateVale ressaltar, que as salas temáticas foram construídas fundamentalmente pelos alunos. Os alunos “autores” das salas conseguiram aliar a tradição de construção de projetos-científicos (apresentados na Semana da Química - que acontece na escola no segundo semestre) com a vontade e a necessidade de debater, a partir dos parâmetros próprios, assuntos pertinentes à temática de 68. Assim, as salas temáticas foram batizadas pelos alunos. A sala temática “Sexualidade em debate”, propôs temáticas que se originam, de fato, nos movimentos de 68, mas cuja atualidade foi central para que os alunos se colocassem tão aptos à sua discussão. Temas como a homossexualidade, o movimento feminista, o aborto, entre outros, abordaram questões históricas, científicas, morais, que ultrapassam as dimensões das disciplinas e envolvem conhecimentos adquiridos na biologia, história e ética, por exemplo. Tivemos também a sala temática que discutia as implicações éticas do uso do LSD nos anos 60 e especificamente no ano de 68. Nesta sala, os alunos do curso técnico de biotecnologia puderam dialogar com os conteúdos de química, biologia, filosofia, história e ética. Tivemos também salas mais lúdicas como o “O Mundo Hippie”, que apresentava um olhar teatral sobre este movimento e a sala “Debatedouro” que contou com divertido esquete das “personalidades” de 68, tais como o general, o jovem, o músico, o alienado, a feminista, o movimento negro, todos “competindo” por seu papel histórico.    

O lado lúdico dos alunos foi por sinal o ponto forte na Semana da Cultura. A disposição dos nossos alunos aliou-se desta vez a criatividade artística como importante instrumento de conhecimento, muitas vezes renegado ao segundo plano. Devemos aqui ratificar a relevância do teatro e do coral, como modos legítimos e potentes de conhecimento, como partes do processo ativo e produtivo de conhecimento.

Tanto as salas temáticas, as encenações e as apresentações de trabalhos provaram ainda que, no âmbito da produção ativa de conhecimento por parte dos alunos e professores, concretizou-se uma apropriação legítima e fecunda da tecnologia atual. O site de relacionamentos mais utilizado por eles foi usado para divulgação e para o estabelcimento de contatos entre os participantes. Os alunos usaram seus muitos aparelhinhos eletrônicos para gravar o filmar o que ouviam e viam, levando-nos a pensar que muito embora sejam considerados rivais do chamado conhecimento clássico tradicional, essa tecnologia absolutamente incorporada ao comportamento juvenil foi uma parceira importante no processo de construção da semana. Desejamos, por isso mesmo, enfatizar que a escola pôde contar com recursos didáticos eletrônicos, e deveria poder contar com muitos outros, pois acreditamos que a disponibilidade desta tecnologia e infra-estrutura é decisiva também na construção dos conhecimentos dito “humanos", e erroneamente considerados como teóricos.

COM A VOZ, NOSSOS ATORES PREDILETOS!

Estes segredos estariam incompletos, inauditos até, (e nós, decerto, seríamos incoerentes) se não houvesse o espaço para a “voz” dos alunos. Sujeitos fundamentais no processo de construção e continuidade da Semana da Cultura, os alunos do CEFET Química escreveram, durante toda a semana em um imenso mural, frases, recados, palavras de ordem, letras de canções, versos, gracejos, reclamações, esboços, reações...

Rememorando os muros franceses que em maio de 1968 serviram de exposição do sentimento de uma geração, abaixo transcrevemos algumas dessas manifestações, palavras que materializam o espírito que contagiou a todos nós, e que esperamos, esteja sempre presente em nossa Semana da Cultura.

“Semana da cultura para eliminar a alienação e evitar a formação de profissionais robotizados. A favor de um mundo melhor, seguindo exemplos do passado.”

“Química não é tudo. Cultura sim! Queremos cultura, precisamos dela. Respiramos liberdade, igualdade e fraternidade.”

“Tentar mudar o mundo é a nossa bandeira, mas não é para já, é luta para a vida inteira!”

“Toda e qualquer produção deve ser incentivada, tanto a científica quanto a cultural. Tradição faz parte, mas a mudança é fundamental.”

“Da mesma forma que a química é uma cultura também temos direito à cultura geral!”

“Formação de técnicos aculturados?”

“Nossas dúvidas são traídas e nos fazem perder o bem que poderíamos conquistar se não fosse o medo de tentar. Sheakspeare”

“Química é um futuro que nós escolhemos estudar e aprender. Cultura é obrigação de cada um saber e incentivar. Quem ainda não conseguiu enxergar isso, deveria (mais do qualquer outra pessoa) participar da Semana da Cultura! Pela liberação de todas as aulas e práticas nas próximas semanas.”

“O verdadeiro poder de fogo do homem é a sua fala, seu livre arbítrio e não a capacidade de destruir o mundo com armas.”

“Pela formação de cidadãos e não se servos.”

“O foco não é apenas em química, mas na abertura de portas para o conhecimento. A semana da cultura deve continuar e melhorar cada vez mais.”

“O pensamento e as idéias não se resumem a laboratório Erlenmeyer, becker e bicos de Bunsen. Somos jovens em formação e não apenas profissional. De nada vale um bom técnico que não sabe o que acontece ou o que aconteceu.”

“A Semana da Cultura tem que confirmar porque isso aqui não pode ser uma fábrica de apertadores de parafuso. Os macacos podem ser nossos parentes, mas não somos eles. As idéias estão acima da química. Viva a cultura!”