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As arestas da (des)igualdade

Dificuldade do País nesse campo expõe um racismo peculiar, entre a ignorância e o cinismo

- Ações afirmativas são medidas voltadas para atender grupos, nas singularidades e necessidades historicamente construídas de cada um, de forma a garantir bases efetivas para a democracia, pelo reconhecimento do valor insubstituível da contribuição de cada grupo à composição política da sociedade. Pressupõe-se que o mero enunciado do princípio da igualdade não a garanta, e se a garantia da igualdade é o que está em jogo, então é necessário pensar a eqüidade, trazendo medidas de encaminhamento efetivo em direção à igualdade material, como proposto, por exemplo, por John Rawls, não bastando reiterar uma suposta igualdade absoluta, que evidentemente inexiste.

A categorização por grupos é questão metodológica, que facilita a
adoção de políticas públicas voltadas para a eqüidade, e não questão
ontológica; não se trata de categorizar pessoas, mas grupos de
problemas e de violações de direitos, para que possam ser adequadamente
tratados e superados, em prol dos princípios que regem a Constituição
Federal.

Há raízes comuns a problemas semelhantes, vividos de
forma distinta em países diversos, afetando a ordem mundial, e
respostas conjuntas que a comunidade internacional tem encaminhado. O
pressuposto é que a humanidade partilhe a responsabilidade pelo destino
de todos, em prol do reconhecimento do valor intrínseco de cada ser
humano e de sua dignidade inalienável, sem o que estariam corroídas as
bases da democracia e da paz mundial. Por isso cabe indignar-se frente
a toda violação do direito a esse pleno reconhecimento, como cabe a
exigência de medidas efetivas que coíbam essa violação. Há também uma
relação intergeracional, em que aos bens herdados equivalem
responsabilidades transmitidas, como a lógica que informa, por exemplo,
as reparações do povo alemão às vítimas do Holocausto; ora, as pessoas
negras hoje excluídas, são descendentes dos escravizados de ontem, que
construíram a riqueza de tantos.

O esforço internacional de
vigilância mútua, pelas agências multilaterais, é para garantir a todos
o direito de habitar o mundo com a mesma dignidade. Por isso constrange
saber que a visita periódica de relatores internacionais da ONU ao
Brasil tem apontado a dificuldade de nosso país efetivamente avançar,
expondo ao mundo o racismo que desenvolvemos, entre a ignorância e o
cinismo.

Já no final do século 19, W. E. B. DuBois, de Harvard,
propunha reflexão sobre o processo transatlântico que envolveu o
tráfico escravagista, com um oceano a unir a implantação de um racismo
vigoroso, seja em manifestações institucionais, como por exemplo as
havidas nos Estados Unidos e África do Sul, via segregação racial e
apartheid, seja por meio de uma mentalidade matizada, impronunciada,
mas unificada na negação da plena humanidade de negros e negras.

Barrington
Moore-Jr investigou de onde provém o sentimento de injustiça e a
capacidade de não se acomodar, de rebelar-se contra o que provoca
indignação moral, como o sofrimento, abuso e maus-tratos, mesmo com a
trágica capacidade humana para suportar esses assédios. São processos
psicoculturais e históricos, articulados à constatação de que, se o
contrato social prega a igualdade, então quem está submetido à
desigualdade tem o direito moral de cobrar, daqueles que detêm a
hegemonia e a dominância, medidas de reparação do que seria sua
ineficiência no cumprimento do contrato; considera-se, aí, que a
desigualdade pelo descumprimento contratual ocorresse de forma
não-intencional, havendo, por isso, o interesse de efetivamente reparar
a desigualdade.

Mas o processo é mais complexo. Moore-Jr trata
de um "contrato social implícito", levando à indevida expectativa de um
"dever moral", de os que sofrem opressão obedecer aos que os oprimem,
sendo, portanto, "direito moral" dos que os oprimem contar de forma
indiscutível com essa obediência. Já Charles Mills denuncia um
"contrato racial" reiterado de forma tácita em sociedades que viveram a
escravidão mercantil dos africanos. Parte do contrato racial apela a
argumentos universalistas para negar o reconhecimento de direitos aos
que têm sido excluídos pelo racismo, invisibilizando sua presença com o
manto da homogeneização, que nega a igualdade de todos; de fato a
igualdade deverá reconhecer cada um em sua singularidade, para compor
de forma efetiva a pluralidade humana, base da democracia.

Todos
que, em razão das condições sociais, estão incluídos no campo
hegemônico, dominante, podem contestar sua inclusão involuntária na
dinâmica da opressão, e reafirmar-se como não-signatários desse
contrato racial, implícito, que vem se praticando historicamente e nega
a humanidade plena a tantos. Porque é impossível sufocar o sentimento
de injustiça e a indignação que o racismo, como prática cotidiana em
nosso país, gera em todos que sejam efetivamente democratas. Como
aceitar a desrespeitosa invocação a Martin Luther King, para negar
aquilo pelo que o reverendo negro lutou até o sacrifício da morte? Seu
último discurso mostra a certeza que tinha do que se armava contra ele.
De que igualdade, mesmo, falamos?

Porque desafia interesses
estabelecidos, a efetiva busca da igualdade racial é uma atividade que
convive com o risco. Daí a necessária presença do Estado e de agências
internacionais: como proteção àqueles que enfrentam essa batalha pelo
bem de todos. Porque toda a retórica em torno de raças e racismo não
poderá esconder os fatos que demonstram que a exclusão no Brasil tem
cor. Se fôssemos tratar de outros aspectos da exclusão no Brasil,
poderíamos trazer exemplos ligados a minorias religiosas, étnicas,
regionais e nacionais. Por exemplo, no caso Ellwanger, julgado pelo STF
em 2004 como primeiro caso de condenação por racismo, parecer (amicus
curiae) apresentado por Celso Lafer demonstrou a prática racista em
caso de revisionismo e pregação pública sistemática de anti-semitismo,
argumentando o uso do termo "raça" em sua dimensão histórico-cultural,
e lembrando que, embora não exista base biológica para as teorias
racistas, o fenômeno social permanece; invocou, ainda, o direito à
memória, devido às vítimas do Holocausto.

Finalmente, as
dificuldades que alegam para definir os participantes das cotas. Ronald
Dworkin, analisando caso da Suprema Corte dos Estados Unidos, diz que a
dificuldade para realizar uma tarefa não pode ser desculpa para a
preguiça de enfrentá-la. Que a transformação social não se faz por
métodos simples ou fáceis, em particular com relação a algo tão
entranhado na realidade, como o racismo e suas mazelas, não se tratando
de encontrar "o" caminho nas primeiras tentativas. Há um processo de
busca, que pode e deve ser enfrentado, em nome do bem maior, que são
oportunidades, a pessoas excluídas, de efetiva formação para a
participação democrática que a ninguém pode ser negada, sob risco à
existência da própria democracia.

Roseli Fischmann é doutora e
livre docente pela USP, professora da Pós-Graduação em Educação da USP.
Foi visiting Scholar da Harvard University. Presidente do Júri
Internacional do Prêmio UNESCO de Educação para Paz, Paris (1999-2002).
Expert UNESCO para a Coalizão de Cidades contra o Racismo, a
Discriminação e a Xenofobia

Publicado em 18/05/08
Pelo jornal O Estado de S.Paulo, por Roseli Fischmann