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Violência é o que mais mata mulheres em Recife

Assassinatos por arma de fogo, facadas e espancamentos somam 11,11 por cem mil, dobro da média nacional

Por Letícia Lins

RECIFE. Os homicídios já são a principal causa de morte das mulheres em idade reprodutiva em Recife. É essa a conclusão de um estudo feito com base em dados da Secretaria de Saúde da cidade, analisados pelo médico Glaucius Cassiano Nascimento em sua tese de mestrado na Faculdade de Medicina da Universidade de Pernambuco.

Mortes por arma de fogo, facadas ou espancamentos de adolescentes e adultas somam 11,11 por cada grupo de cem mil mulheres. O pesquisador analisou 5.165 atestados de óbitos de mulheres com idades entre 10 e 49 anos abrangendo 84 meses, de 1997 a 2004. A taxa é o dobro da média nacional: no país, a estimativa é de que 5,6 mulheres são assassinadas para cada grupo de cem mil.

Até o início da década passada os assassinatos ocupavam o terceiro lugar nos obituários de mulheres da mesma faixa etária. Derrames e infartos eram as causas de morte mais comuns, situação que se inverte no fim dos anos 90, quando a violência de gênero explodiu no estado.

O estudo de Nascimento mostra que os homicídios são 8,54% da mortalidade por causas específicas das mulheres, à frente das doenças cerebrovasculares (7,55%), dos infartos (6,43%), do câncer de mama (5,07%) e de doenças virais, como a Aids (5%). De acordo com o estudo, os homicídios ocorreram por armas de fogo (81,80%), objeto cortante ou penetrante (8,39%), enforcamento, estrangulamento ou sufocação (3,85%).

Cresce também número de assassinatos de meninas

Os dados não surpreenderam o Fórum de Mulheres de Pernambuco e entidades feministas. Nas vigílias que fazem todos os meses nas ruas de Recife pelo fim da violência, elas assinalam com placas e cruzes o número de mulheres mortas a cada mês: só em janeiro foram 27. No ano passado, 319 mulheres foram assassinadas em Pernambuco, contra 274 em 2005, 263 em 2004 e 247 em 2003. A diretora do Departamento de Polícia da Mulher, Verônica Azevedo, anunciou um mutirão para investigar os 36 assassinatos das mulheres de 2007 e agilizar os inquéritos que se acumulam.

As mulheres do Fórum reclamam que a impunidade é grande mesmo com a Lei Maria da Penha, que impõe penas mais severas aos agressores. Segundo Eleonora Pereira, uma das coordenadoras do Fórum, as altas taxas de assassinatos divulgadas no fim do ano passado pela Diretoria de Polícia da Mulher escondem outro número dramático: o de meninas mortas.

Entre as 319 vítimas fatais de 2006, 32 tinham até 15 anos. Em 2007, já foram quatro as adolescentes assassinadas, e pelo menos 26 garotas desapareceram no estado. Sete entidades publicaram um cartaz com 16 fotos de crianças e adolescentes desaparecidos: nove meninas e sete meninos. Dos garotos, só um não apareceu. As meninas permanecem sumidas. As autoridades temem que elas tenham tido o mesmo destino de três garotas desaparecidas, que foram encontradas mortas.

Foi o caso de Sabrina Hellen Martins Pereira, de 13 anos, assassinada pelo garçom Anderson Bezerra da Rocha, de 24. Ele a seqüestrou e estuprou porque a menina não correspondia a seu assédio. Localizado pela comunidade, ele foi entregue à polícia. Outra história recente de sumiço foi a de Amanda Beatriz de Oliveira, de 16 anos, estuprada, espancada e morta por Geison Duarte da Silva, de 20. Geison foi denunciado à polícia pela mãe e está preso em Recife.

O governo de Pernambuco criou uma Secretaria da Mulher e diz que a investigação dos crimes é prioridade, e afirma que o combate à violência de gênero vai ser um dos eixos da política de segurança que está sendo construída para o estado.

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Ameaçadas sem defesa

‘Sentia o sangue quente escorrendo pelo rosto e um frio de medo de morrer por dentro’

RECIFE. “Ele só faltou me matar. Tentou me estrangular, eu sentia o sangue quente escorrendo pelo rosto e um frio de medo de morrer por dentro. Sofri calada para não acordar o meu filho, porque se ele acordasse meu ex-companheiro o mataria.”

Francinete Conceição Sobrinho, de 44 anos, conta que passou a apanhar depois que ela disse que não o queria mais.

— Vi a morte. Ele disse que ia me matar, mas que primeiro ia me deformar. Vivi com um monstro em figura de gente.

Ela ficou com o rosto inchado e hematomas nos olhos e teve um dente quebrado, que na última terça-feira levou ao IML, onde fez exame de corpo de delito. Pela Lei Maria da Penha, a própria polícia deveria tê-la encaminhado ao IML. O agressor, Rubenigle Rivaldo da Silva, de 26, está solto. O delegado Isaac Ribeiro disse que recebe 15 queixas por dia. Apesar da Lei Maria da Penha, o delegado disse por que não pediu a prisão do acusado:

— O crime é de pequena monta para a nossa lei, porque não se vislumbra tentativa de homicídio, mas lesão corporal.

Nesse caso, para Francinete, deve haver um equívoco:

— A lei está muito errada. O criminoso fica solto e eu, marcada para morrer a qualquer momento.

Enquanto isso, a família de Ketty Santos, técnica em enfermagem, cumpre o mesmo ritual todo fim de mês, na vigília pelo fim da violência contra a mulher. A mãe, Osana Santos, não se conforma com o assassinato da filha no portão de casa. Ketty criava o filho de um relacionamento já encerrado. O ex-sogro, Adalberto Pereira de Lima, não admitia que o neto fosse criado pela ex-nora. Um dia Adalberto sacou uma arma e disparou contra Ketty, que morreu na hora, na frente do filho. O assassino foi preso, mas seu desejo foi consumado: o pai ganhou a guarda do menino e ainda recebe a pensão do filho, deixada pela vítima.

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No hospital universitário, vítimas de maus-tratos e coação psicológica

‘Quando chegam no consultório, elas já estão em situação extrema’

RECIFE. Outro tipo de violência mata devagar as mulheres pernambucanas: maus-tratos, coação física e psicológica, ameaças. Nas quatro delegacias da mulher da Região Metropolitana foram registradas 7.959 queixas no ano passado. O problema passa muitas vezes longe da polícia e chega aos ambulatórios psiquiátricos dos hospitais públicos. O professor do departamento de Neuropsiquiatria da Universidade Federal de Pernambuco João Ricardo Mendes de Oliveira diz que a violência doméstica responde por 30% do total de casos atendidos no departamento de psiquiatria do Hospital das Clínicas.

— Recebemos mulheres em torno dos 40 anos. O tratamento é paliativo. O problema é mais grave e não se resolve só com psicoterapia e remédio, porque extrapola os limites do consultório. Essas mulheres precisam de assistência jurídica, apoio moral. Quando chegam no consultório, elas já estão em situação extrema, sofreram por mais de dez anos. Têm com depressão, ansiedade, sintomas de pânico.

Álcool, presente no sangue da maioria dos agressores

Ele atribui ao álcool uma das principais causas da violência doméstica e sugere campanhas preventivas para reduzir o consumo. Levantamento do Departamento de Polícia da Mulher indica que o maior movimento nas delegacias de mulheres ocorre nos fins de semana, quando o álcool é mais consumido. Cerca de 63,51% dos maridos agressores espancam as companheiras entre o sábado e a segunda-feira. E 37% dos assassinos estavam alcoolizados no momento do crime.

X., de 52 anos, mesmo separada, não conseguiu se livrar do pesadelo que lhe impôs o ex-companheiro, com o qual conviveu por dez anos. Ele a espancava tanto que provocou três abortos com socos na sua barriga. Ela também teve uma perna e um braço quebrados, e o pescoço já precisou ser imobilizado devido às surras. E teve um tumor no baixo ventre atribuído pelos médicos às pancadas. Operou-se para tirar um mioma, mas foi surpreendida em casa no pós operatório pelo ex-marido. Ele a estuprou, obrigou-a a fazer sexo anal, e a espancou.

Enquanto relatava o seu drama, X. chorou cinco vezes. Tem gastrite, dor permanente no ventre, nos órgãos sexuais, depressão, ansiedade e sintomas de pânico. O marido já foi denunciado por estupro à polícia, mas continua solto e a persegue, inclusive nas consultas no Hospital das Clínicas da UFPE. Uma vez o ex-marido, que é biomédico, a agrediu no seu próprio trabalho, um hospital público. Ela foi chamar o plantão policial do hospital, mas os colegas dele não deixaram.

— Disseram que se eu o denunciasse, ele seria preso. Hoje tenho medo de morrer.

O agressor está solto. Ele é faixa-preta de judô e dizia que sabia onde agredi-la. Ela descobriu que, sempre que a espancava, ele saía para fazer sexo com homens, embora também tivesse amantes do sexo feminino.

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‘Pelo menos as delegadas estão cumprindo a lei’

A cearense Maria da Penha, que inspirou legislação contra violência, lutou para ver o marido atrás das grades

A lei Maria da Penha não pôs fim à luta da cearense que lhe deu nome. Aos 61 anos, Penha lutou para ver o ex-marido, condenado a dez anos e seis meses de prisão, ser preso quando faltavam seis meses para prescrever a pena. Penha ficou paraplégica por causa dos tiros disparados por seu marido.

Por Isabela Martin

Qual sua sensação ao ver promulgada a lei?

MARIA DA PENHA: Ninguém pode mais falar que é vítima da violência por falta de equipamentos legais. Às vezes a mulher precisa de tratamento para melhorar a auto-estima. Pelo menos as delegadas estão cumprindo a lei. Na última segunda-feira, nove mulheres deixaram de sofrer porque nove homens foram presos em flagrante.

A violência contra a mulher não cessa. Há outros fatores?

MARIA DA PENHA: Há a história de a pessoa ter sempre convivido em ambiente de violência e achar natural. O homem sempre acha que é dono da mulher. Contribuía o fato de ninguém ser preso por bater em mulher, e agora está sendo preso. O homem está percebendo que a lei veio para punir o agressor.

O que dificulta o rompimento da mulher com o agressor?

MARIA DA PENHA: Quando os filhos não são vítimas de violência, e ela vê seus filhos bem amparados, não quer romper o vínculo. Quando os filhos são agredidos, é mais fácil sair. Ela quer que ele mude e acredita nele. A pessoa dá uma chance achando que ele vai se recuperar.

O que foi mais difícil para a senhora?

MARIA DA PENHA: Foi o medo de não sobreviver porque meu estado era muito grave, e deixar meus filhos com ele. Isso foi o que mais me maltratou. 
 
‘Falta criar a vara especial para julgar os casos’

Em 1994, a senhora escreveu o livro "Sobrevivi, posso contar". O que faltou dizer?

MARIA DA PENHA: Vou contar agora na segunda edição.

O que mais lhe deu força?

MARIA DA PENHA: Saber que a Justiça não funcionava. Eu estava com muita dificuldade de sobrevivência. Minha família ajudava. Cada um pagava o colégio. Fui submetida a cirurgias. Em 1996, finalmente ele foi julgado pela segunda vez. Em 1997, contactamos a OEA (Organização dos Estados Americanos). Em 2001, o Brasil foi condenado, os movimentos e a pressão fizeram com que ele fosse preso.

Agora que a lei foi criada, qual a sua luta?

MARIA DA PENHA: A luta maior não é para divulgar a lei, e sim implementá-la, o que ainda não aconteceu. As coisas estão sendo cobradas. Falta realmente criar a vara especial para julgar os casos de violência contra a mulher, que hoje estão sendo julgados nas varas criminais, e também a capacitação dos operadores da lei.

Publicado no Jornal O Globo em 11 de fevereiro de 2007