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Maioridade Penal

Um dos maiores especialistas brasileiros em educação da juventude, Paulo Carrano não tem dúvida em questionar a maioridade penal, tema destacado pela grande imprensa nas últimas semanas e que já está na pauta do Congresso

Afasta de mim este cale-se - Destaque - Abril de 2007

Para Carrano, que coordena o programa Observatório Jovem do Rio de Janeiro, a grande questão é pensar a atual estrutura social brasileira de desigualdades e procurar meios de se alterar a causa real da violência, ao invés de buscar soluções paliativas. Em entrevista à equipe do Afasta de Mim Este Cale-se, no quinto andar do Bloco D da Universidade Federal Fluminense, onde funciona o programa, o educador analisou também o papel da mídia na cobertura da criminalidade e defendeu a aplicação efetiva do Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Sócio-Educativo) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

O país inteiro ficou mobilizado, em fevereiro, com a morte do menino João Hélio Fernandes, de seis anos. O assassinato brutal cometido no Rio de Janeiro por cinco assaltantes, um deles menor de idade, virou destaque nos grandes meios de comunicação e suscitou reações inflamadas por parte da população. Casos semelhantes, em que jovens praticam atos de violência, ocorreram em 2006, como os assassinatos do guitarrista carioca da banda Detonautas, na Zona Norte do Rio de Janeiro, e da socialite Ana Cristina Joahannper, no Leblon. Diante de tais fatos, o rebaixamento da idade penal é apontado por grande parte da sociedade como uma das possíveis soluções para a diminuição da violência.

Entretanto, para o professor da Faculdade de Educação da UFF e também coordenador do programa Observatório Jovem do Rio de Janeiro, Paulo Carrano, a redução da idade penal é uma saída simples frente a uma situação muito mais complexa, com raízes na estrutura de oferta desigual de oportunidades a jovens e adolescentes. “O tema da maioridade é a ponta de um iceberg. As pessoas estão clamando por uma ação imediata, enquanto na verdade a violência é um fenômeno que tem causas mais profundas. A maioridade penal é aparentemente uma coisa que poderia resolver”.

ECA e Sinase

Instituído como Lei Federal no 8.609 em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA ) constitui-se de 267 artigos e promove à criança (até doze anos) e ao adolescente (até dezoito) a condição de sujeitos de direitos em fase de desenvolvimento. Em relação aos jovens infratores, o capítulo IV prevê a aplicação de medidas sócio-educativas, com o objetivo de proporcionar condições dignas de reintegração à sociedade.

Em comemoração aos 16 anos de publicação do ECA, foi criado o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) para o enfrentamento de situações de violência em que se envolvem adolescentes, tanto como praticantes de infrações quanto como vítimas de violação de direitos no cumprimento de medidas sócio-educativas. O Sinase reafirma a diretriz do ECA sobre a natureza pedagógica de sua aplicação, priorizando as medidas de meio aberto, como prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida, em detrimento da pena de prisão, que deve ser aplicada apenas em caráter de excepcionalidade e brevidade.

Para Carrano, uma das tentativas para corrigir a situação de criminalidade está na efetiva aplicação do ECA e do Sinase, apesar de certos preconceitos em relação ao Estatuto. Segundo ele, faz parte do imaginário popular que o ECA é flexível demais, não pune, e que três anos é pouco para determinado tipo de crime. “Essa é uma desinformação. o ECA é rigoroso, mas o Estado brasileiro nunca investiu na sua real aplicação. Três anos de privação de liberdade não é pouco tempo para quem está em processo formativo. Essa é outra dimensão do ECA que não pode ser descuidada. São medidas para sujeitos em formação”.

O professor esclarece que a realidade sócio-educativa brasileira é falha. As condições das unidades de internação são subumanas, e esses espaços acabam não cumprindo seu papel fundamental de ressocialização. “É o Estado cometendo violência. A grande contradição é essa: o infrator é punido pela violência por meio de uma nova violência, e os espaços que deveriam servir de socialização acabam servindo de espaços de opressão, com falta de higiene, insalubridade e atendimento com violência física e simbólica”.

Cobertura Midiática

As práticas de punição de jovens criminosos é um assunto que vem ocupando espaço de destaque nos grandes meios de comunicação. Muitas das vezes são privilegiados depoimentos dos familiares envolvidos, enquanto opiniões de especialistas são deixadas de lado. Para o professor, a maioria das propostas que sugere a redução da maioridade penal, inserida num sentimento de comoção nacional, tem objetivo de “tirar da vista da sociedade o incômodo social, sem saber que manter em condições subumanas de privação da liberdade não resolve a questão da violência. Pelo contrário, contribui para que o ciclo do crime se perpetue, pois produz violência concentrada naqueles espaços e que será manifestada futuramente”.

Um mapeamento da situação do atendimento dos adolescentes em cumprimento de medidas sócio-educativas realizado em 2002 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) demonstrou que 71% das unidades de internação de jovens infratores são irregulares. Os principais problemas são a falta de projeto pedagógico, a construção de instituições ainda concebidas nos padrões do antigo Sistema Febem, a superlotação, o uso de maus tratos, tortura e falta de capacitação dos recursos humanos. Segundo o documento, existem casos extremos de violência em diversas unidades, culminando em rebeliões e mortes de adolescentes. Acesse o documento divulgado pelo IPEA

Também uma inspeção nacional realizada em 2006 pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em parceria com o Conselho Federal de Psicologia (CFP) detectou, em todo o país, inadequação das unidades de privação de liberdade de adolescentes em relação aos parâmetros do ECA. A maioria delas serve como contenção e encarceramento para adolescentes, constituindo-se como “mini-presídios”, pois os adolescentes já estariam, na realidade, sendo processados (condenados), cumprindo medidas de privação de liberdade (penas) em atendimentos sócio-educativos (prisões). No Rio de Janeiro, por exemplo, a equipe vistoriou o Instituto Padre Severino (Degase), localizado na Ilha do Governador. Constatou condições absolutamente inadequadas das “celas” e superlotação, com todos os efeitos que este fato acarreta. Os adolescentes apontaram o sofrimento cotidiano, constituindo esses locais como instituições punitivas e não educativas e de ressocialização. Leia a análise das unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei.