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João Teixeira Lopes fala sobre seu livro "Tristes Escolas" em entrevista

PARA LEMBRAR QUE É PRECISO REINVENTAR A ESCOLA E FAZER DELA UM BALUARTE DA REPÚBLICA

João Teixeira Lopes. Sociólogo. Professor e autor de um estudo sobre as práticas culturais dos estudantes nos espaços extracurriculares das escolas secundárias do Porto-concelho. Os resultados do estudo deram um livro ("Tristes Escolas", Edições Afrontamento) e serviram de "leitmotiv" para esta entrevista, onde se tenta perceber quais os problemas identificados pelo investigador no seu trabalho de campo. De alguns deles aqui se dá conta, deixando subentendidas algumas soluções.
Tratando-se de jovens estudantes, dificilmente se poderia ir além da abordagem de dois grandes temas: Juventude e Escola. Recusando rótulos geracionais e não culpando as escolas de todos os males, João Teixeira Lopes não deixa, contudo, de apontar calcanhares-de-Aquiles. E, em tempo de balanço proporcionado pelas férias escolares, lança o desafio: é urgente reinventar a Escola, dar-lhe um novo encanto e fazê-la mais atraente. Façam o favor de ler.

 

Porquê o título do seu livro? As nossas escolas são mesmo tristes?

-Os alunos consideram a escola como um ponto de passagem. E enquanto ponto de passagem, a escola é para ser vivida, de preferência, fora do edifício, nas pastelarias e cafés mais próximos, na convivialidade. Nunca no domínio da aprendizagem. Ou seja, a escola é uma obrigação por que tem de se passar porque é necessário um diploma, cada vez mais requisitado no mercado de trabalho. É, portanto, um uso instrumental da escola. O uso expressivo, o gozo que os estudantes poderiam ter em viver um tempo de aprendizagem, o seu carácter lúdico, a meu ver, não existe. Daí, "Tristes Escolas".

 

Porque a escola não é um espaço "dos" alunos?

-Não é um espaço que eles sentem como seu. Aliás, as próprias concepções de espaço são muito claras e, geralmente, não gostam dos edifícios escolares. Ou porque são muito velhos, ou porque, no caso dos mais recentes, são feitos segundo uma linha de escola-padrão que dá resposta fácil aos empreiteiros, mas não respeita as lógicas de utilização do espaço pelos alunos. Muitas delas não têm sala de convívio, os equipamentos são extremamente débeis ou não são utilizados. E, de facto, eles dizem que não gostam da escola, porque os espaços são exíguos; que quando há uma exposição ninguém repara, porque está tudo amontoado e as pessoas se empurram umas às outras; que, às vezes, pretendem utilizar determinados jogos e eles não existem. Enfim, o espaço em si, o edifício e os equipamentos, são vividos como algo estranho. E nesse aspecto, há um sentimento de alienação - o espaço não lhes pertence e eles não investem naquele espaço; chegam a dizer que o espaço os deprime.

 

Esse pormenor é referido no seu livro?

-Sim, sim, tenho entrevistas em que me dizem isso. Mas há um outro aspecto, que assenta nalguma mistificação e que é a questão da convivialidade estudantil. Certos estudos, baseados em inquéritos feitos anteriormente, demonstram que um dos aspectos mais valorizados pelos estudantes é a convivialidade, e muita gente diz que, ao menos por aí, a Escola se salva. Ou seja, mesmo que os alunos encarem a componente lectiva como um mal necessário por que têm de passar, haveria o lado da socialização, o contacto intercultural, as relações com pessoas de diferentes proveniências e classes sociais, etc. Mas eu não penso que isso assim seja.

 

Então porquê?

-Porque há uma organização extraordinariamente rígida da convivialidade escolar em grupos, que são extremamente cruéis uns com os outros e que se baseiam em formas muito próprias de utilização de um espaço dentro da própria escola. Há divisões territoriais no espaço escolar que são bem nítidas: grupos que se apropriam das escadarias, da sala de convívio ou do polivalente, e entre eles existem fronteiras muito rígidas, de tipo simbólico, que assentam na maneira de vestir, na linguagem utilizada, nos temas de conversa. Desta forma, existe uma espécie de racismo grupal dentro da escola, e quem não se integra num grupo se calhar não é ninguém. Enquanto que há uns tempos atrás o indicador de sucesso, ou da integração do aluno na cultura escolar, seria a nota, hoje o aluno integrado é o que possui um grupo de suporte.

 

Dizia que esses grupos são extremamente cruéis...

-E assim é, há sanções muito claras para quem infringe as regras do jogo, para quem não se pauta pelas condutas adequadas. Um aspecto que me marcou bastante prende-se com a questão dos afectos e dos namoros. Para além de haver muito pouca comunicação entre grupos diferentes, e depois de chegar à conclusão de que esses grupos tinham uma origem social muito semelhante, eu reparei que é absolutamente impensável acontecer um encontro amoroso entre alguém de grupos diferentes, entre alguém que ocupe, por exemplo, a escadaria - é a fachada da escola, o lugar onde se é visto e se vê - e alguém do grupo que está no polivalente e que é um grupo minoritário, mais envergonhado, que pertence a classes sociais mais desfavorecidas. Lembro-me particularmente de uma escola, onde coloquei a questão se conheciam casos de namoro entre pessoas de grupos diferentes. Nem pensar! Isso não é plausível, desde logo porque sofreriam sanções ao nível do seu próprio grupo.

 

E que tipo de sanções são essas?

-De tipo simbólico, também: deixar de conversar com essa pessoa, deixar de lhe reconhecer a idoneidade para pertencer ao grupo... Mas podem ir até à exclusão do grupo. Aliás, há fronteiras muito marcadas até ao nível dos graffiti - numa das escolas estava escrito, a partir de uma certa espaço, "aqui para a betolândia". E assim era, ali acabava a zona dos ditos betinhos, aqueles rapazes e raparigas com aspecto normalizado, que têm um certo cuidado na aparência, que geralmente provêm de famílias favorecidas. Na verdade, esses não passavam daquele ponto. É uma espécie de entendimento tácito que existe ao nível da convivialidade estudantil e que me leva a pensar que ela não é assim tão enriquecedora. Até porque os próprios estudantes dizem que os melhores amigos estão fora da escola.

 

Na sua perspectiva, então, esses grupos funcionam dentro da escola como estratégia de sobrevivência à própria Escola?

-Exactamente. Mas, curiosamente, não existe uma atitude consciente de propor, por exemplo, alternativas ao sistema pedagógico dominante, à organização dos espaços ou à forma como as actividades extra-curriculares são organizadas. O que existe é uma consciência do tipo "não gosto disto e ponto final, não curto". Digamos que é uma resistência difusa, que não assenta em práticas de reivindicação organizadas, que não resulta num movimento associativo forte - nada disso, eles não gostam nada da escola, mas não lhe opõem qualquer alternativa. Por outro lado, esta sobrevivência através dos grupos também é uma forma de gerir o tédio, porque uma das coisas que mais fazem, como eles próprios dizem, é não fazer nada. E o que é não fazer nada? É falar da programação televisiva da noite anterior, do fim-de-semana passado, de algum caso conhecido. Há, de facto, como eu lhe chamo, um tédio deslizante que se insinua um pouco por toda a parte e que também faz das escolas uns locais tristes.

 

Há pouco falava em idoneidade de pertença ao grupo. Que códigos são usados para integrar um grupo?

-Por exemplo, a marca da roupa. Quem usa roupas de uma determinada marca, e isto verifica-se sobretudo nos grupos das camadas mais favorecidas, é reconhecido pelos iguais sem que tenha de haver um reconhecimento explícito. A marca tem aqui um sentido conotativo. Por um lado é a marca da roupa; por outro, é marca de uma pertença social, e isso basta como passaporte de entrada. E de facto o que existe é uma série de passaportes que permitem, ou não, a entrada em determinados grupos.

 

E que outro tipo de passaportes pode identificar?

-Há casos curiosíssimos, como por exemplo falar à Porto. É uma forma de contra-dominação que muitos grupos em situação minoritária utilizam, porque falar à Porto é a forma de imporem de maneira visível a sua identidade. Uma identidade que radica num certo imaginário da cidade, numa certa ascendência das classes populares tidas como genuínas - o genuíno tripeiro, em oposição aos estrangeirados que habitam as escolas.
Mas é capaz ser tudo diferente numa outra escola. Por exemplo, numa escola onde dominam os cursos de pendor técnico-profissional posso reparar que a gestão do espaço é feita por alunos que não pertencem a camadas favorecidas. E então sou capaz de verificar que os comportamentos tidos como adequados se modificaram completamente, que os alunos não se importam, como os outros, de jogar em tronco nu, de chegar suados às aulas, de emitir grande parte da sua conversa em calão, de se permitirem contactos mais ousados entre rapazes e raparigas.
Portanto, tudo muda quando muda a composição social da escola. Numas e noutras, só não muda a falta de convívio e de fluidez entre grupos sociais diferentes. E isto preocupa-me bastante.

Essa dominância grupal é assim tão bem visível nas escolas secundárias do Porto?

-Perfeitamente. Mesmo que não seja uma dominância numérica, quantitativa, pelo menos existe uma dominância simbólica. Por exemplo, os alunos que se apropriam dos locais privilegiados da escola - se se quiser, dos principais locais de apresentação pública, onde se é avaliado pelas tais posturas, linguagens e comportamentos tidos, ou não, como adequados - constituem o grupo mais visível e que mais afirma a sua identidade. Normalmente, à custa de outros grupos, que se remetem para espaços mais recônditos e que, de certa forma, têm menos auto-estima, não são capazes de impor a sua visão do mundo como os outros, têm uma certa vergonha cultural. Isto acontece, mas pode inverter-se de escola para escola, dependendo muito do seu campo de recrutamento e da sua composição social.
Mas isto é tudo para dizer que mesmo a escola animada pelo convívio juvenil é uma ideia um pouco mistificada, porque essa convivialidade se baseia em rígidas fronteiras, rígidos mecanismos de estigmatização e processos de sanções pesadas para quem não se comporta adequadamente. E os próprios grupos acabam por funcionar como instrumentos de controlo social, para que todos possuam os comportamentos tidos como adequados.

 

Quer dizer, até pelo funcionamento dos grupos de alunos a Escola exerce a sua função reprodutora de desigualdades...

-Exactamente. Ou seja, se hoje se diz que a Escola já não é uma agência de reprodução no sentido clássico do termo, porque houve um processo de democratização escolar - e porque a legislação, que no nosso país vai sempre à frente das práticas, assim o afirma -, ela acaba por ser reprodutora no seu aspecto informal, mantendo separados aqueles que à partida já o estavam...

 

.... E, no limite, até alarga o fosso que os separa...

-Exactamente, até pode alargar o fosso, porque o agente de fiscalização já não é o professor, mas os próprios colegas. E como esta reprodução acaba por fazer-se ao nível mais informal possível, mais difícil se torna de contrariar. Porque, apesar de tudo, se realiza no aspecto supostamente mais espontâneo da vivência escolar. É o menos estruturado, pensar-se-ia, mas não é bem assim...
E este é um aspecto que não tem sido muito focado. Muitas vezes as vezes pessoas preocupam-se com as políticas escolares (o que é fundamental), com as decisões ao nível macro (que também são importantíssimas), com os modelos pedagógicos, mas não vão ao ponto de analisar o quotidiano dos estudantes e dos professores, a maneira como eles se cruzam e como fazem a Escola. Muitas vezes, este desconhecimento do quotidiano é responsável por políticas erradas, porque fazem-se as políticas à distância, por decreto, sem ter em conta a realidade a que se destinam. É, a meu ver, um grave erro dos processos de decisão a nível educativo.

 

Voltando um pouco atrás. A turma deixou de funcionar como unidade de grupo?

-Não necessariamente, mas a própria turma está muitas vezes fragmentada. A divisão de que falávamos transmite-se à turma, onde há micro-grupos. E por isso ela não funciona necessariamente como unidade. Só muito raramente, em situações-limite, como no caso de um professor particularmente detestado - aí, a turma pode adoptar uma atitude comum, espontânea ou mais ou menos preparada, de recusa ou revolta perante esse professor. Mas, habitualmente, a turma não funciona como elemento agregador.
Já agora, se me permite, outro aspecto que achei muito curioso e que vai contra outro mito da Escola democrática, supostamente atenuadora das assimetrias e desigualdades, é a relação entre os sexos. Apesar de no inquérito todos me responderem que o seu grupo é misto, reparei que os rapazes convivem com rapazes e as raparigas com raparigas. Mais: existe, inclusivamente, alguma agressividade entre ambos; agressividade que poderá estar muito relacionada com o facto de a concorrência ser cada vez mais feroz e de - o que não é negligenciável - as raparigas serem melhores alunas do que os rapazes. Actualmente, as raparigas não só são mais como são melhores.

 

Como explica essa supremacia?

-Porque elas estão mais adaptadas à cultura escolar. Os rapazes revelam mais comportamentos de agressividade anti-escolar, de indisciplina, de recusa da escola. As raparigas, pelo contrário, preocupam-se mais com os aspectos da adaptação. Isto tem mais a ver com a socialização primária, no seio da família - desde cedo se ensina aos rapazes a entrar numa cultura de tipo competitivo, concorrencial, e às raparigas a permanecerem mais no foro do privado, do doméstico; da serenidade, se quisermos. E isto reflecte-se na escola.

 

A interpretação da realidade escolar que estudou e escreveu centra-se no espaço extra-curricular. Mas em nenhum momento do seu trabalho de campo se confrontou com problemas relacionados, por exemplo, com os currículos ou com as práticas dos professores?

-Curiosamente, não há da parte dos estudantes uma atitude pensada em relação aos modelos pedagógicos instituídos. Não há, sequer, um ódio contra os professores, como muitas vezes se pensa. Mas também não há adoração, como outros discursos pretendem impor. Neste momento, o professor é uma figura quase indiferentes. Por isso eu digo que o professor perdeu grande parte do protagonismo que tinha, desde logo porque deixou de ser a instituição de certificação, de controlo - continua a ser, obviamente, a instituição que dá os diplomas, mas como há uma desvalorização dos diplomas perante um futuro profissional tido como instável, esse aspecto acaba por não ser muito valorizado. Portanto, o professor - e quem diz o professor diz a relação professor-aluno, ou os métodos pedagógicos - não é muito questionado pelos estudantes.
Consegui, no entanto, notar uma certa relutância face aos métodos demasiado expositivos. E penso que, neste aspecto, estamos a assistir a um certo retrocesso, ao retomar de uma atitude um pouco conservadora; parece-me que, depois de se ter assistido a uma fase de grande experimentalismo, de reformas e contra-reformas, em que parecia que para modificar a Escola era necessário voltar ao ponto zero, existe agora uma atitude mais situacionista do ponto de vista pedagógico.

 

No ano passado esteve ligado ao programa "Os Dias da Escola". Que balanço faz da experiência?

-Penso que os resultados foram excepcionais, permitindo aquilo que a Escola não possibilita, ou seja, um encontro de alunos de diferentes proveniências, de diferentes origens sociais, com diferentes mapas culturais, com diferentes estilos - o estilo conta muito, em termos de culturas juvenis - e com diferentes formas privilegiadas de expressão: pintura, escultura, música, dança, teatro, escrita, etc. E isso faz-me ter alguma esperança, porque estes jovens, que tão criativamente apresentaram trabalhos no Pavilhão Rosa Mota, são os mesmos que frequentam as escolas. O que quer dizer que o potencial está lá. Aliás, o programa voltou a ter muito sucesso este ano. Já não se fez um mega-programa para as diferentes áreas, porque mais uma vez havia pouco dinheiro - estas são as áreas onde os políticos cortam mais rapidamente, porque não dão votos, e é importante que isto fique registado -, mas conseguiu-se distribuir encenadores por todas as escolas (15 ou 19), que estão agora a apresentar as suas peças de teatro, ao que parece com grande êxito.

 

No entanto, parece que a participação das escolas, nomeadamente dos professores, não foi a melhor. Porque é que os professores não participam? Tem a ver com o tal situacionismo?

-Na maior parte dos casos, é porque estão cansados. Eu contactei com alguns e uma das coisas que me diziam é que as escolas do Porto estão envelhecidas. Como são escolas muito apetecíveis pela localização, o corpo docente é constituído por professores relativamente envelhecidos, que estão com um pé na reforma e que já perderam a vontade de experimentar situações pedagógicas novas. Paralelamente, os poucos professores jovens que existem são estagiários, que criam dinâmicas efémeras e condenadas a desaparecer quando se vão embora.
Mas também é visível um certo desencanto em algumas pessoas que mais tentaram, em tempos idos, incrementar este tipo de actividades, e que agora se sentem pura e simplesmente desiludidas. Acham que já nada vale a pena e deixam-se cair numa atitude de desencanto militante - pessoas que eram, precisamente, as mais activas, que pretendiam trazer a inovação para o dia-a-dia da escola, que davam as aulas mais interessantes, prolongando-as noutros espaços e noutros tempos, que tentavam arranjar actividades extra-curriculares aliciantes, acabaram por ser vítimas do seu excesso de protagonismo. Cansaram-se porque não obtiveram os resultados pretendidos. E também aqui há aqui sinais de um mal-estar difuso, mas que também não se traduz em actos concretos de mudança.

 

Essa dificuldade não estará, também, relacionada com um excessivo horário curricular dos alunos? Ainda haverá tempo para outras actividades?

-Isso acontece, de facto. Mas, curiosamente, verifiquei que os alunos de classes cultural e economicamente mais desfavorecidas são os que gostavam que a escola tivesse um papel mais activo do ponto de vista da dinamização cultural. E isto percebe-se, porque são alunos que, na sua socialização familiar, não obtiveram códigos necessários à decifração de muitas actividades culturais que acontecem à sua volta, que gostavam de conhecer e que não têm essa oportunidade.

 

Considera, então, que a Escola não responde eficazmente enquanto agente de dinamização cultural?

-É claro que a Escola responde muito mal. Repare que para esses alunos a Escola é, talvez, a última oportunidade - porque muitos deles não vão ter, com certeza, uma experiência escolar muito grande - para receberem os códigos que lhes permitiriam aceder em pé de igualdade às formas de manifestação cultural das sociedades modernas. Quero dizer, para que eles possam ir espontaneamente, sem nenhuma vergonha cultural, a um teatro ou a um museu. Neste aspecto, a Escola seria o último bastião, mas falha completamente.
Eu chego a dizer que a Escola se demitiu de grande parte das suas responsabilidades. É uma Escola inoperacional, que vomita diplomas e nada mais, que não compreende as complexas mudanças que à sua volta vão acontecendo. E quando digo a Escola, não estou a dizer os professores, estou a dizer a Escola-instituição mesmo, com tudo o que isso carrega de abstracto. Às vezes é mau falar em termos abstractos - porque o abstracto é nada, não é ninguém -, mas o facto é que a Escola nem sequer compreende os alunos que tem. Não os conhece.

 

Esse é o problema do ovo e da galinha. Se a Escola é reflexo da sociedade que temos, também é certo que a sociedade se constrói na Escola. Quem pode atirar a primeira pedra? Quem pode dar a volta à situação?

-Muito por causa das teses neoliberais que, infelizmente, vão dominando, penso que estamos a viver um momento em que as desigualdades tendem a complexificar-se e aprofundar-se, designadamente ao nível do mercado de trabalho. A Escola deveria ser um instrumento cívico por excelência de atenuação, ou mesmo de antecipação, de determinados conflitos que se vão gerar, tentando, ao mesmo tempo, fornecer os instrumentos necessários para que alguns não ficassem tão desprovidos; deveria ser capaz de cumprir as suas funções, consagradas constitucionalmente, de nivelamento social, no sentido de dar a todos. Neste aspecto, penso que até deveria haver uma discriminação positiva, ou seja, preferência àqueles que não conseguiram adquirir antes os instrumentos e os códigos que permitem navegar numa sociedade tão complexa, onde o domínio da informação e da cultura conta imenso.

 

Cabe nessa perspectiva a questão dos currículos alternativos?

-Eu penso que sim, mas assusta-me a possível reacção a mais uma experimentação pedagógica, porque, a meu ver, o que tem acontecido é que a um passo em frente se têm seguido dois atrás. E, como disse há pouco, as inovações pedagógicas - algumas delas muito bem intencionadas -, por serem mal aplicadas, conduzem a uma atitude de retrocesso muito grande, principalmente a uma difusão de forte conservadorismo entre os agentes educativos, quanto mais não seja pela omissão e pelo silêncio.

 

Do ponto de vista do sociólogo, como é que uma Escola que pretende ser para todos acaba, afinal, por ser discriminadora e segregadora?

-No processo de expansão do nosso sistema educativo houve um grande problema, que foi a sua rapidez, particularmente sentida desde a década de 60 - apesar de progressos assinaláveis, em termos quantitativos, de taxa de escolarização, deixa muito a desejar em termos qualitativos.
E o que é que isto tem a ver com política educativa? Tem a ver, precisamente, com métodos pedagógicos consolidados, não com este vaivém de novas experiências; com um estatuto definido dos professores, que os dignifique; com a ausência de conhecimento dos quotidianos escolares por parte dos decisores políticos; com a confusão que muitas vezes se faz entre um ensino para todos e um ensino estandardizado, que são coisas totalmente diferentes.
Um dos factores que, na minha opinião, poderá tentar parar este ciclo vicioso é a formação de professores. Outro poderá ser a aproximação entre famílias e Escola, porque muitas vezes, apesar da Escola conseguir incutir novos estímulos, novas predisposições e competências, quando a escolarização termina acontecem regressões fortíssimas.

 

Como assim?

-A Escola pode incutir alguma mudança nos mapas culturais dos alunos, mas eles regressam à família e a família não mudou. Pode-se conseguir modificar alguns hábitos culturais, mas se a experiência escolar for relativamente curta, com o regresso à realidade anterior, os hábitos antigos mantêm-se, as distâncias mantêm-se e as desigualdades voltam ao mesmo nível.
Mas, também aqui, a culpa não é só da Escola. Por exemplo, o nosso mercado de trabalho continua a basear-se na utilização intensiva de mão-de-obra barata e pouco qualificada, não estimula a formação dos educandos e apresenta mecanismos de gestão ultrapassados, rígidos, autoritários, hierarquizados - então está-se a ensinar para a democracia e para a igualdade, quando no mercado de trabalho tudo funciona ao contrário?
Isto provoca choques fortíssimos e desencanto, porque a Escola ainda é capaz de fornecer uma espécie de balão de oxigénio, alguma ilusão de democraticidade, que depois se vai esvaziar pelo contacto com a vida activa. Daí a necessidade de tudo caminhar em paralelo, de não olharmos a Escola como salvadora da sociedade.
Ou seja, directa ou indirectamente, continua a ser o mercado de trabalho a ditar as regras, nomeadamente pela pressão sobre as famílias?
Exactamente. Não tenhamos dúvidas que o discurso muito neoliberal da adaptação da Escola ao mercado de trabalho é um discurso unidireccional, que só vê um plano - a total submissão da Escola aos ditames da organização do trabalho. E isto não pode ser assim, a Escola deve proporcionar inovação no mercado de trabalho. Ou seja, tem de haver comunicação nos dois sentidos: sim senhor, adaptar as necessidades da formação ao mercado de trabalho existente; mas as realidades empresariais devem incorporar que as competências transmitidas pela Escola para valorizar o educando devem ser reconhecidas no mercado de trabalho.

 

Para terminar, peço-lhe que defina o que é ser jovem hoje, até porque já percebi que não aceita o rótulo da "geração rasca".

-É muito difícil fazer essa definição. Eu não acredito nos rótulos geracionais - geração rasca, geração rasa, como lhe chamou o Eduardo Prado Coelho, geração à rasca -, porque tomam a parte pelo todo. Mesmo um fenómeno altamente explosivo como o Maio de 68, aconteceu limitado a uma franja juvenil muito específica. Eu não acredito na existência de uma geração; penso, isso sim, que existem processos altamente diferenciados de procura de autonomia e identidade, diferenciados consoante a origem social, o sexo, etc.
Este é um aspecto. Outro é que ser jovem é uma espécie de estatuto híbrido. Hoje, o jovem é e não é - muitas vezes abandona a escola e tenta arranjar um emprego; está seis meses nesse emprego e é despedido; vai para um curso de formação profissional e chega à conclusão que o melhor é sair e acabar as cadeiras que lhe faltavam; talvez tente um novo emprego; em suma, faz um percurso ziguezagueante.
Ou seja, assistimos aos estatutos mais híbridos, mais eclécticos que alguma vez possamos imaginar. Só muito tardiamente o jovem consegue entrar na idade adulta; entretanto, vai experimentando, através do ensaio, do erro e da rectificação, uma série de estádios intermédios que o vão socializando para a ideia de que os seus sonhos não vão ser concretizados.

 

E assim vai prolongando o período de dependência da família. Esta situação não poderá criar uma outra ordem de conflitos?

-Curiosamente, os jovens dão-se todos muito bem com a família que têm. Pelo menos é o que se conclui dos inquéritos: a família é considerada fonte de estabilidade económica e afectiva e uma instituição de comunicação, de realização pessoal. Ou seja, há uma intensíssima valorização da família, mas se calhar não podia ser de outra maneira - se eles estão tão dependentes da família, do ponto de vista estratégico é muito melhor darem-se bem com ela do que mal, não é? Por outro lado, também penso que as famílias estão a mudar e que há uma aceitação muito maior dos modos de vida ditos juvenis. A própria família já encara com outros olhos os novos padrões comportamentais, sexuais, etc.
Mas é muito difícil definir o que é um jovem. Do ponto de vista estritamente psico-social, é aquele que procura identidade e autonomia e que ainda não as obteve, mas é muito difícil saber, nos nossos dias, quando é que esse processo acaba. Antes, era muito fácil, porque havia dois tipos de jovens: os que prolongavam os estudos e faziam a universidade e os que deixavam a escola e iam trabalhar; hoje isso não acontece, os jovens andam sempre no limbo, na fronteira de uma série de estatutos. Por isso é que me irritam as metáforas geracionais.

 

Afinal de contas: a Escola mudou alguma coisa; a família também mudou; os jovens foram-se adaptando a uma e outra. Só não mudaram o mundo do trabalho e o processo de decisão política...

-Sim, sim, sim. Os processos de decisão política continuam muito distantes. Nós não temos o discurso que, por exemplo, existe em França, onde a Escola é tida como baluarte da República. Nós nunca valorizamos muito a nossa escola, enquanto em França, quem mexer com a Escola republicana e laica está a mexer com os alicerces da própria Nação.

 

Fonte: http://www.apagina.pt/