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Grito da periferia - Entrevista com o pesquisador Juarez Dayrell

Jovens da periferia de BH aderiram ao hip hop. Baseado no funk e no rap, o movimento ainda é ignorado por parte da sociedade, sustenta o sociólogo Juarez Dayrell, professor da Faculdade de Educação da UFMG que prepara o lançamento do livro O rap e o funk na socialização da juventude

Observatório Jovem   21.01.2005

Estado de Minas -  Desde os anos 80, quando o rap e o movimento hip hop eclodiram nas vilas brasileiras, transitar pelas periferias implica ter acesso não apenas aos colapsos provocados pela desigualdade social, mas a uma conseqüência direta da crise: a efervescência cultural, que a classe média insiste em não qualificar como arte. A despeito dos critérios definidos por intelectuais alheios à realidade das favelas, no Brasil e no mundo, a cultura nos morros se multiplica, na forma de música, poesia, artes plásticas e dança, com estética particular, conteúdos ideológicos manifestos de diferentes maneiras e níveis de consciência também distintos. E assume um papel preponderante na formação de crianças, jovens e adolescentes, que encontram no fazer artístico o alimento para as lacunas deixadas por estado, família e escolas.

Esse nexo entre o rap e a educação, o sociólogo Juarez Dayrell descobriu quando se propôs a investigar o perfil dos jovens que freqüentam as escolas nas periferias da Região Metropolitana de Belo Horizonte. “Fiquei assustado com a maneira como as escolas desconhecem seus alunos. Quando comecei as pesquisas preliminares, fui me dando conta da existência de uma efervescência cultural enorme no entorno deles”, comenta. O resultado da investigação e as constatações do sociólogo deram forma à sua tese de doutorado, que a editora da Universidade Federal de Minas Gerais tem previsão de lançar até março, com o título O rap e o funk na socialização da juventude.

Professor da Faculdade de Educação da UFMG, Juarez Dayrell se debruçou em uma pesquisa etnográfica feita em 1996 nas escolas noturnas, e percebeu que não havia quem soubesse quem são os alunos, como vivem, a qual cultura pertencem, qual visão de mundo está traçada em suas personalidades. Enquanto se relacionava com os jovens, o pesquisador teve a oportunidade de observar os processos de criação e a maneira como eles eram desconsiderados pela sociedade.

Partindo da classificação de faixa etária clássica para a juventude, segundo os padrões da academia, o professor ouviu jovens entre 15 e 24 anos. Ao formatar sua pesquisa de doutorado, rastreou os ambientes fora da escola, para conhecer os espaços de agregação, encontro e socialização. A princípio trabalhando com o rap, o funk e o pagode, optou por segmentar ainda mais a pesquisa, restringindo as avaliações com relação aos dois primeiros, por acreditar que eles têm relação mais estreita com a juventude. “Na hora de escrever, depois da pesquisa empírica, percebi que o pagode tem a ver com várias faixas etárias. O rap e o funk geram uma identidade juvenil muito forte”, diz. 
 
Voz da periferia

Ao contrário de outras tentativas de recuperação histórica do surgimento do rap e do movimento hip hop no País, que partem da descrição de trajetórias e comunidades, o trabalho de Juarez Dayrell não tem como fio condutor um caso específico. Ele conta que seu objetivo, desde o início da pesquisa, é dar voz ao jovem da periferia, apontar quem é esse sujeito e a dimensão que ele vem formando e constituindo no corpo social. “O rap entra como um motivador, um articulador importante. Não pretendo mostrar a história do gênero, mas do jovem que o faz”, explica o professor.

Dayrell conta que o primeiro levantamento foi feito com 148 grupos musicais, durante seis meses, sob os critérios da idade dos integrantes, tempo que atuam juntos, e a partir do conceito de classe social. A eles foi aplicado questionário, por telefone, até a seleção final de 18 (seis de cada modalidade – rap, funk e pagode). “A partir daí, colei nos que ficaram”, comenta o pesquisador usando gíria típica da periferia. Para os jovens, colar quer dizer acompanhar de perto, estar junto, ser aliado.

Essa é a riqueza do livro, na avaliação do autor, porque o trabalho retrata o dia-a-dia de quem esteve com os adolescentes, e permanece com eles, em vários momentos, como ensaios, shows e festas do hip hop. Apesar de óbvia, a conclusão de Juarez Dayrell pode provocar estranheza em quem discrimina os jovens da periferia e fazem deles um grupo excluído em todos os campos de convivência. “Insisto em dizer que esse jovem ama, sofre, ri, tem tristezas e é um sujeito dentro desse contexto concreto em que ele vive, com muitas limitações. E é um sujeito que sonha e tem projetos. Muita gente se esquece disso”, afirma.

Identidade em forma de poesia

Na periferia, a juventude é um período curto. Rapidamente os adolescentes são forçados a agir com amadurecimento, ter responsabilidade de adultos. Casam e constituem família de forma precoce, têm que encontrar meios de garantir a própria sobrevivência, além de colaborar com pais e irmãos. Por esses, e muitos outros motivos, o tempo de lazer e diversão se torna pequeno, aquém do necessário para a consolidação da personalidade, na avaliação do professor e sociólogo Juarez Dayrell, que acaba de concluir tese de doutorado sobre o tema, com o livro O rap e o funk na socialização da juventude.

Para realizar o trabalho, ele se aproximou dos jovens nas favelas da cidade que se relacionam com atividades culturais. Conheceu nova realidade, partilhou angústias, como ele mesmo descreve. E concluiu que o rap e o funk são grandes questões postas na contemporaneidade. “Esse é o espaço de vivência da condição juvenil desses meninos, o lugar de construção de identidade, de entendimento e elaboração da realidade a que estão submetidos”, avalia o pesquisador, que demarca seu trabalho a partir de uma visão de classe social.

Depois de conviver com o hip hop, defende que este não é um movimento homogêneo. Nele, estão um conjunto múltiplo de visões de mundo, que acabam se refletindo no tipo de música e arte que produzem. O fato torna ainda mais significativo o espaço de produção cultural que representa. “Ali eles transformam em poesia o que estão vivendo, com angústia, rebeldia, indignação. É também uma via de encontro, de identificação através das roupas, dos adereços. Para esses meninos, pouco considerados pela sociedade, o rap representa uma orientação de vida”, afirma. Para muitos jovens, lembra o professor, a música que produzem se constitui um caminho alternativo à criminalidade, e um espaço legítimo de afirmação da identidade negra.

"Demorou pra formar"

Embora em diferentes níveis, a consciência política é outro elemento determinante do rap. Como exemplo, o professor cita os rappers do NUC – Negros da Unidade Consciente, o SOS Periferia e o Arizona como alguns do que demonstram boa análise da força ideológica que representam. 
 
A experiência com a juventude na periferia também levou o professor a compreender que a resistência dos artistas da favela com a intelectualidade burguesa decorre das muitas vivências oportunistas, que os jovens denunciam através de suas ações. “O problema é que muitos chegam às favelas agindo como quem se apropria. Levam o que interessa e somem. Essa é uma atitude pouco ética”, declara. E revela que ganhou a confiança dos meninos como uma conseqüência da postura metodológica que adotou. “Depois das entrevistas, entreguei a eles o material produzido e os convidei para ler os textos antes de serem encaminhados para a editora. Nos comportamos como parceiros”, lembra. Na linguagem dos rappers, “demorou pra formar”. Ou seja, satisfação para todos os envolvidos no processo.

Para o professor Juarez Dayrell, o rap e o funk guardam muitas revelações sobre a desigualdade social. A música e a poesia relatam, descrevem, denunciam e se apresentam como uma orientação fundamental na vida de centenas de jovens da periferia da Região Metropolitana de Belo Horizonte. “Quando se questiona o funk, a crítica está dirigida ao lugar social de onde vem quem o produz. Antes de mais nada, estamos falando de uma juventude que quer, através da arte, afirmar seu direito a ser jovem”, afirma.

O sociólogo admite que as universidades, de uma maneira geral, têm um olhar conservador para o tema. O viés da educação e o esforço de vários pesquisadores, entretanto, têm permitido uma revisão de posturas. “Recebo críticas de que esses grupos não são reconhecidos como produtores culturais, mas através dessas pesquisas estamos forçando uma abertura da universidade para a periferia. Hoje, há um pouco mais de esforço para se conhecer essas expressões culturais que estão postas”, avalia o professor.

Publicado no Jornal Estado de Minas. Capa. Belo Horizonte, 9 de janeiro de 2005.