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Entre grades

Foto: iStock PhotoO sistema de socioeducação para jovens em conflito com a lei é alternativa à lógica do aprisionamento que prepondera no País

Um rápido olhar sobre a situação dos jovens e adolescentes brasileiros em conflito com a lei revela um quadro desalentador. O país tem hoje mais de 15 mil deles privados de liberdade. Noventa por cento são do sexo masculino, 60% são negros e 51% não freqüentavam a escola na época do delito. Quase 90% são usuários de drogas e oito em cada dez vivia com a família, cuja renda era de apenas dois salários mínimos. Embora a maioria tenha praticado atos infracionais leves, de menor gravidade – como os delitos contra o patrimônio –, todos foram enviados para unidades de internação que, em geral, não asseguram os requisitos mínimos de saúde e dignidade humana.

Uma pesquisa realizada em 2002, com diretores de entidades e programas de atendimento socioeducativo de internação, revelou que o ambiente físico de 71% das unidades era inadequado às necessidades da proposta estabelecida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Não é de admirar, portanto, que essas instituições tenham se transformado num barril de pólvora, incapazes de cumprir os objetivos para os quais foram criadas – reeducar e reintegrar os jovens na sociedade. Pelo contrário, viraram escolas da violência e do crime.

Para reverter esse quadro, dizem os especialistas, é necessário implementar o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), elaborado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH) e o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), com o apoio de dezenas de entidades da sociedade civil.

A proposta, transformada em projeto de lei e atualmente em tramitação no Congresso Nacional, prioriza as medidas socioeducativas em meio aberto – como as de prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida – em detrimento das restritivas de liberdade, como semiliberdade e internação em unidades educacionais. O documento é não apenas uma tentativa de reverter a tendência crescente de internação dos adolescentes, mas, sobretudo, de confrontar sua eficácia invertida, já que a elevação do rigor das medidas não tem melhorado a inclusão social dos egressos do sistema socioeducativo.

“O Sinase fortalece o ECA ao enfatizar a proposta de política socioeducativa como uma articulação em rede, visando à integração de políticas setoriais, como assistência social, educação, saúde, trabalho e emprego, previdência social, cultura, esporte, lazer e segurança pública”, diz a psicóloga Maria Luiza Moura Oliveira, representante do Conselho Federal de Psicologia no Conanda.

“Ele pode ser a ponte do olhar vingativo para o olhar educativo voltado aos adolescentes em conflito com a lei”, diz Fábio Silvestre da Silva, gerente do projeto Atendimento Socioeducativo de Adolescentes em Conflito com a Lei, da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da SEDH.

O pedagogo mineiro Antonio Carlos Gomes da Costa, que participou da formulação do ECA, em vigor desde 1990, tem opinião parecida. “A medida de internação deve ser aplicada obedecendo aos princípios da brevidade e da excepcionalidade, como determina o ECA. Enquanto ela prevalecer sobre as medidas socioeducativas em meio aberto, nós não estaremos, infelizmente, trilhando o caminho certo da municipalização e regionalização de sua aplicação”, afirma.

Para Gomes da Costa, o Sinase é a iniciativa de maior ambição, envergadura e profundidade criada até hoje nesta área: “Para implementá-lo, precisamos fazer três construções: de propostas de atendimento, de espaços físicos adequados e equipados, e de equipes preparadas para praticar o novo modelo de atendimento. É um salto triplo”.

Cultura da vingança

O Sinase bate de frente com a lógica do internamento de jovens que hoje prepondera no país – no decorrer de uma década, o número de internos subiu de 4.245, em 1996, para 15.426, no ano passado. “Esta é uma cultura antiga baseada na vingança, na punição e na reação”, diz o juiz Humberto Costa Vasconcelos Júnior, da 3ª Vara da Infância e Juventude do Recife (PE). Ele explica, no entanto, que muitos magistrados não aplicam medidas socioeducativas alternativas em razão da inexistência da retaguarda necessária.

“Muitos municípios brasileiros não oferecem condições para os juízes aplicarem medidas em meio aberto, como a liberdade assistida ou a prestação de serviços à comunidade”, afirma. Para inverter essa lógica, o juiz pernambucano, que também está à frente da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Pernambuco, criou, em meados de 2006, o programa Liberdade Assistida Universitária, no qual estudantes do ensino superior acompanham e auxiliam adolescentes no cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto.

“A liberdade assistida sempre foi considerada uma medida melhor, por ter mais efetividade do que as outras. O sistema fechado, da forma que existe hoje, está fadado ao fracasso, pois tem apenas caráter punitivo”, diz o magistrado.

No programa pernambucano, universitários de diversos cursos (direito, psicologia, serviço social, enfermagem, pedagogia, etc.) entram em ação no momento em que o juiz dá a sentença, visitando a comunidade onde os adolescentes moram e orientando-os, para melhorar as condições de vida do jovem e de sua família. No fim de agosto, dez instituições superiores de ensino já tinham aderido ao Liberdade Assistida Universitária, e 96 alunos haviam recebido a capacitação para atuar junto aos jovens em conflito com a lei.

“Entre os primeiros 15 adolescentes em liberdade assistida acompanhados pelo programa, não houve nenhuma reincidência. É um indicativo do sucesso da iniciativa”, comemora Ademir Soares de Oliveira, coordenador adjunto da Infância e Juventude de Pernambuco.

Projeto semelhante e igualmente bem-sucedido está sendo implementado no Jardim Ângela, bairro paulistano marcado pela violência e pobreza. Na faixa etária de 15 a 24 anos, a localidade, dona do maior índice de exclusão social entre todos os bairros da capital paulista, registra 150,1 homicídios por 100 mil habitantes. Para ajudar a transformar esse quadro, a organização não-governamental Sociedade Santos Mártires criou, há dez anos, o projeto Redescobrindo o Adolescente na Comunidade (RAC) – rebatizado no ano passado para Núcleo de Proteção Especial RAC –, com o objetivo de auxiliar no cumprimento de penas alternativas impostas a jovens da comunidade autores de delitos leves. “Nossa missão é estimular, orientar e acompanhar adolescentes, jovens e suas famílias, por meio de atividades socioeducativas que os levem a exercer sua cidadania”, diz Mônica Costa Sampaio, coordenadora do programa.

Depois que são acolhidos, os jovens assistidos pelo núcleo elaboram, com a ajuda de psicólogos, um plano de metas, que servirá como fio condutor do trabalho. Essa estratégia permite o acompanhamento individual de cada adolescente e está na base do sucesso do projeto. “Atendemos 120 jovens e adolescentes por mês e no nosso último diagnóstico, relativo a 2006, tivemos uma taxa de reincidência de apenas 10%”, conta Mônica.

Esse índice é menos da metade dos 22% de reincidência dos jovens atendidos nas 95 unidades da Fundação Casa, antiga Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (Febem), de São Paulo. A atuação da Santos Mártires tem sido reconhecida e elogiada por diversos organismos nacionais e internacionais, como o Unicef, principalmente porque o programa mobiliza a comunidade, as famílias e os próprios adolescentes a debaterem e tomarem decisões sobre o que fazer para reintegrá-los à comunidade.

Rapidez na sentença

Outra experiência positiva que tem como base a aplicação das medidas socioeducativas alternativas previstas no ECA pode ser vista no município de São Carlos, no interior de São Paulo. Criado há seis anos, o Núcleo de Atendimento Integrado (NAI) atende cerca de 80 jovens por mês e tem ajudado a reduzir os índices de criminalidade na cidade. O êxito do programa se deve, sobretudo, à agilidade com que a pena alternativa é aplicada – no máximo, dez dias após a infração. Segundo um dos idealizadores do projeto, padre Aguinaldo Soares Lima, a rapidez do processo é de extrema importância porque reduz a sensação de impunidade e desestimula os adolescentes a se envolver com a criminalidade.

O enfoque de todo o trabalho do NAI, que conta com o apoio da prefeitura local, é que a vida de um adolescente é algo muito mais amplo do que o ato infracional olhado isoladamente, fora do contexto de sua existência. Para os gestores do programa, não se trata simplesmente de julgar o delito cometido, mas, em especial, de conhecer o adolescente e o significado da infração na sua história de vida. A abordagem tem dado certo, e o índice de jovens e adolescentes que voltam a cometer atos infracionais, segundo a secretária da Infância e Juventude de São Carlos, Rosilene Mendes dos Santos, é de apenas 4%.

Iniciativas como essas, acreditam muitos especialistas que tratam da questão da criminalidade juvenil, são mais eficazes para a reinserção social dos adolescentes e jovens e a redução da violência do que o endurecimento do ECA, ou a redução da maioridade penal – propostas sugeridas por parte da sociedade como alternativa para lidar com os 5% dos jovens infratores que cometem crimes graves.

“O ECA não é benevolente com os jovens em conflito com a lei. Ele é, de fato, severo e justo. O que passa para a sociedade a impressão contrária é a aplicação e a execução das medidas sem a observância rigorosa do que prescreve a legislação”, diz o educador Antonio Carlos Gomes da Costa, autor de diversos livros sobre socioeducação de jovens infratores. “Os três anos de privação previstos no Estatuto, se bem trabalhados e corretamente aproveitados, são suficientes para socioeducar um jovem. Para um adolescente de 12 anos, três anos correspondem a 25% da duração de sua vida.”

“Com uma proposta de trabalho adequada, é possível reintegrar os jovens infratores ao convívio social, mesmo os autores de crimes violentos”, diz Fábio Silvestre da Silva. A psicóloga Maria Luiza, do Conanda, tem opinião semelhante: “É preciso fazer valer o que está previsto na lei, ou seja, acompanhar o infrator ao longo do cumprimento da medida de privação de liberdade e fazer com que ele esteja preparado para voltar ao convívio da comunidade”. Esta conduta, diz ela, é muito mais eficaz do que aumentar o tempo de reclusão de adolescentes e jovens infratores, que podem ficar detidos até a idade de 21 anos.

Matéria publicada na Edição 9 do Boletim Onda Jovem - Novembro de 2007 - Paz