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Entre a escola e os jovens

As marcas da vida juvenil são vistas como ameaças à ordem escolar. Compreender essa relação é o primeiro passo para a construção de um processo educativo saudável

Pensar na relação atual entre juventude e escola não é tarefa fácil. Há muitos sinais de que esta relação tem sido bastante tensa e conflituosa. Por um lado, percebemos as dificuldades da escola e dos professores em lidar com os jovens, seu imaginário, comportamentos, vestimentas, identidades, e, por outro, um descontentamento dos jovens em relação ao que é oferecido pela escola, o que se revela no baixo rendimento, em atitudes de confrontação a professores e autoridades escolares ou na simples indiferença e apatia diante do conhecimento escolar. Como podemos explicar esta distância real e simbólica entre a escola e os jovens? Certamente não há explicações fáceis nem rápidas frente a um problema dessa magnitude.

Um dos aspectos que, dentre outros, nos ajudam a compreender essa problemática diz respeito à forma como a escola e os professores vêem os jovens e com eles se relacionam. Tudo leva a crer que a imagem que os professores têm da juventude é bastante negativa. Os jovens são vistos muitas vezes como baderneiros, preguiçosos, rebeldes e incontroláveis, pouco enquadrados nas regras escolares e no funcionamento da escola. Geralmente, a causa dessa situação é atribuída a uma invasão da escola pelo mundo da rua.

A escola estaria sendo bombardeada por problemas sociais, como a violência e a pobreza, pelos efeitos negativos dos meios de comunicação de massa, por uma suposta crise de valores humanos, e por símbolos e comportamentos juvenis incompatíveis com seu modelo de funcionamento, e que deveriam ficar do portão para fora.

Mas será que algum dia a escola conseguiu manter-se apartada das dinâmicas sociais à sua volta? Será que isolar-se seria a solução? Provavelmente não. As muitas escolas que têm adotado a estratégia do isolamento não têm obtido resultados positivos; ao contrário, muitas vezes agravam o problema. Providências como erguer os muros, aumentar as grades, exercer maior controle da entrada e saída de estudantes, proibir a entrada de aparelhos eletrônicos, bonés, instrumentos musicais etc. apenas tentam (geralmente em vão) resgatar um modelo escolar rígido, que já não funciona.

O problema não está na invasão da escola pelos elementos externos, e sim nas dificuldades que ela tem de se organizar a partir do contexto e da realidade social e das características dos estudantes atendidos. Nesta perspectiva, o problema não está fora da escola, mas dentro dela, e as soluções devem passar necessariamente por uma mudança de dentro para fora.

Marcas apagadas

É curioso notar que, se a escola costuma resistir negativamente às marcas da vida juvenil (o boné, as roupas, a linguagem etc.), que aparecem como elementos ameaçadores à ordem escolar, coisa muito diferente ocorre em relação às crianças.

Mesmo sendo algo recente no Brasil, as escolas de educação infantil têm avançado muito no sentido de reconhecer a infância como uma fase de vida extremamente rica e que deve ser o ponto de partida para a organização escolar. Se a atividade central da infância é brincar, é preciso que a escola incorpore este elemento e o potencialize. É isso que justifica os brinquedos e parques dentro das escolas. É com base na condição bio-psico-social das crianças que se organiza o espaço educativo, a adequação dos móveis, bebedouros, a decoração das salas com as suas produções. As escolas explicitam a presença da infância por todos os lados, mostrando que a condição infantil não é um obstáculo para o processo educativo, mas uma aliada e um importante ponto de partida.

Coisa muito diferente ocorre quando focalizamos as escolas voltadas aos jovens. As marcas da juventude desaparecem dos espaços institucionais e geralmente retornam a eles pela ação ativa e muitas vezes transgressora dos próprios jovens (grafites, pichações, rabiscos, recados nos banheiros, boné, walkman na sala de aula), e são vistas como uma invasão ilegítima de elementos externos e estranhos ao ambiente escolar.

Por que a escola consegue reconhecer a infância, mas não consegue reconhecer a juventude como uma fase de vida igualmente rica e cheia de potencialidades a serem desenvolvidas? É provável que a imagem negativa sobre os jovens seja um dos fatores explicativos.

Por isso, construir um novo olhar sobre os jovens estudantes torna-se um passo necessário para que a escola alcance sucesso em seus objetivos. Um processo educativo que parte de posturas defensivas e de visões negativas sobre o outro dificilmente pode ser bem-sucedido. As características trazidas pelos jovens, sejam elas aprovadas ou desaprovadas pelos professores, são a matéria-prima a partir da qual se constrói a possibilidade concreta do trabalho educativo. Por isso a condição juvenil atual deve ser vista como ponto de partida, e não como um empecilho ou obstáculo para a escola.

Isso não implica a aceitação passiva de tudo que é trazido pelos jovens, o que seria pouco adequado para uma instituição que se propõe a educar e ampliar o universo cognitivo e cultural. Mas implica aceitar que o processo educativo precisa considerar efetivamente o que as pessoas são, fazem e pensam, e não o que deveriam ser, fazer ou pensar. Isto envolve uma releitura da condição juvenil que se afaste dos estereótipos produzidos, ou da idéia de um aluno ideal, e promova uma aproximação com os jovens concretos, suas características e necessidades.

O desafio é perguntar

O desafio é grande, pois os jovens são diversos, possuem gostos, estilos, comportamentos diferentes, fazem escolhas diversas, têm trajetórias singulares, e, como sabemos, lidar com a diferença é algo muito difícil, inclusive para a escola.

Nesse sentido, o processo educativo deve partir mais de perguntas do que de respostas. Afinal, quem são estes jovens? Como eles constroem seu “estar no mundo”? Quais são as chaves culturais e cognitivas por meio das quais eles compreendem o mundo ao seu redor e seu próprio papel nesse mundo? Como estes jovens constroem conhecimentos no mundo moderno, e, afinal, como eles aprendem?

Tais questionamentos levam, por um lado, a apostar na aproximação e no diálogo com os jovens como forma importante de acessá-los e, por outro lado, a assumir uma postura de constante investigação e pesquisa por parte do educador. É preciso se despir dos preconceitos e apostar na valorização do diálogo e na capacidade de os jovens adotarem uma postura ativa no processo de aprendizagem.

A tarefa torna-se ainda mais complexa na medida em que muitos professores acreditam que seu papel se restringe a transmitir conteúdos, porque assim foram e continuam a ser ensinados em muitas universidades. Uma aproximação efetiva com os jovens implica alargar esta compreensão sobre o papel docente, apostando numa tarefa educativa mais ampla e abrangente que possa ajudar os estudantes a construírem sentidos para o conhecimento.

Como vimos, educar jovens reveste-se de uma tarefa bastante desafiadora e complexa, que deve passar necessariamente por uma aproximação com o universo deles, visto muitas vezes pelo educadores como algo hermético, enigmático, quase um mundo à parte, e que, não raro, entra em choque com os valores, identidades e expectativas dos educadores.

Isso deixa claro o quanto o papel do educador é central, essencial e, ao mesmo tempo, desafiador. Parece que ensinar os jovens pressupõe, antes de tudo, aprender com eles, não no sentido de situar-se no mesmo patamar, mas de com eles descobrir as chaves que podem acessar seu universo cultural e cognitivo e ajudá-los, então, a ampliar e a enriquecer este universo.

* Ana Paula Corti é socióloga, doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo, assessora da ONG Ação Educativa e autora dos livros “Diálogos com o Mundo Juvenil: Subsídios para Educadores” e “Encontro das Culturas Juvenis com a Escola” 

Publicado na Revista Onda Jovem - Edição 06 - Nov 2006