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Depoimento sem Dano, para quem?

Devido principalmente às dificuldades enfrentadas para o desfecho de alguns processos judiciais que envolvem crianças e adolescentes que se supõem serem vítimas de abuso sexual alguns profissionais do Direito vêm propondo a inquirição daqueles por meio do chamado Depoimento sem Dano. A sugestão se dá a partir da alegação de que há situações para as quais não se têm testemunhas, sendo a palavra dos envolvidos – crianças e adolescentes – a principal prova possível de ser produzida

Devido, principalmente, às dificuldades enfrentadas para o desfecho de alguns processos judiciais que envolvem crianças e adolescentes que se supõem serem vítimas de abuso sexual, alguns profissionais do Direito vêm propondo a inquirição daqueles, por meio do chamado Depoimento sem Dano. A sugestão se dá a partir da alegação de que há situações para as quais não se têm testemunhas, sendo a palavra dos envolvidos – crianças e adolescentes – a principal prova possível de ser produzida. 

Além disso, alertam para o fato de que a insuficiência de provas nesses casos acarreta, conseqüentemente, baixo número de condenações. Justificam também que, nas audiências realizadas nas Varas da Infância e da Juventude e nas Varas de Família, o depoimento aconteceria em ambiente inapropriado para crianças e adolescentes, que podem ser solicitados a narrar, para diversas pessoas estranhas, fatos que lhes são constrangedores, situação que poderia lhes acarretar danos psíquicos. Da mesma forma, reconhecem que, no curso do processo, tal solicitação geralmente acontece mais de uma vez, revitimizando crianças e adolescentes. Como solução, acenam para a possibilidade de se colocar em prática o Depoimento sem Dano, indicando psicólogos e assistentes sociais como os profissionais que deveriam colher tal testemunho, na medida em que estes saberiam como formular perguntas às crianças e aos adolescentes. Nota-se assim que, mais uma vez, busca-se método objetivo, preciso, incontestável, seguro, para se colher um testemunho, prova que sustente a apuração do fato e posterior condenação do réu.

Segundo o modelo proposto, crianças e adolescentes devem ser ouvidos nas dependências do Fórum em sala especialmente projetada para esta finalidade, retratada como aconchegante, com móveis, brinquedos e material preparado para o atendimento destes, além de ser equipada com câmeras e microfones para se gravar o depoimento. O psicólogo ou o assistente social que irá colher o depoimento deve informar a criança, ou o adolescente, sobre a existência de câmeras. Durante a inquirição, o profissional permanece com um fone no ouvido para que o Juiz possa indicar questões a serem formuladas, sendo que o psicólogo ou o assistente social deve transmitir as crianças e adolescentes perguntas que estes possam entender. O Juiz, o Ministério Público, os advogados, o acusado e servidores judiciais assistem ao depoimento por meio de um aparelho de televisão instalado na sala de audiências. Com a gravação do relato, uma cópia é anexada ao processo, o que torna desnecessária a repetição da inquirição.

Há destaque, assim, para o fato de que a criança ou adolescente não precisa depor diversas vezes, sendo possível obter um material gravado de qualidade, baixo custo, moderno e de fácil acesso a todos. Outra vantagem é a valorização da palavra dos mesmos.

Magistrados justificam que outros países vêm utilizando técnicas similares, citando os modelos argentino, espanhol e francês. Assim, saúdam o Projeto de Lei 7.524/2006, que propõe esta como a forma preferencial de inquirição de crianças e adolescentes no contexto jurídico nacional. Para tal, o citado Projeto justifica a necessidade de alteração no Código de Processo Penal Brasileiro, cujo artigo 530 passaria a ter a seguinte redação:

Art. 530-A. Far-se-á a inquirição judicial de crianças e adolescentes, como vítimas ou testemunhas, na forma prevista neste capítulo (…)

Os que defendem a inovação alegam que o processo penal estaria se modificando devido ao reconhecimento da importância de interdisciplinaridade, atribuindo-se aos avanços das ciências humanas a notoriedade desses depoimentos no âmbito jurídico.

Não é de se estranhar, portanto, que o citado Projeto de Lei venha acarretando acaloradas discussões entre os que compõem essas categorias profissionais, enfocando-se e analisando-se critérios éticos, teóricos, metodológicos e técnicos. Destacam-se, a seguir, diversos questionamentos que vêm sendo pontuados, convidando o leitor deste pequeno artigo a formular outras questões, dispondo-as no espaço destinado aos comentários.

Poderíamos perguntar se a não vitimização de crianças e de adolescentes, nesses casos, seria apenas não depor na frente do acusado e não ter que repetir seu depoimento para diversas pessoas em distintas ocasiões. A referência que vem sendo feita é em relação à escuta ou a uma inquirição? Estaríamos desconsiderando a menoridade jurídica de crianças e de adolescentes equiparando-se o direito de ser ouvido à obrigação de testemunhar? Qual o status atribuído à criança, ou ao adolescente, no processo judicial? O de testemunha? Crianças assumem o compromisso de dizer somente a verdade? Seria esta uma forma de proteção à criança e ao adolescente, de garantia de seus direitos? Os pais podem se opor e não permitir que seus filhos testemunhem? Ao se afirmar que a criança e o adolescente possuem direito de ser ouvidos, se estaria considerando seu direito de não ser ouvidos, ou esse direito seria, agora, uma obrigação?

Alega-se que este poderia ser um novo espaço de atuação para psicólogos e que, na técnica em questão, não se estaria realizando avaliação psicológica e sim uma entrevista investigativa. No entanto, despontam também as perguntas: psicólogos colhem depoimentos, fazem inquirição, conduzem oitivas? Com esta técnica se estaria ferindo a ética profissional ao se desconsiderar o dever de respeitar o sigilo nos atendimentos?

Destaca-se, ainda, que o fato de técnica semelhante existir em outros países não significa que tenha havido consenso para sua implantação. Na Argentina, por exemplo, a alteração do Código de Processo Penal para que os depoimentos de crianças e de adolescentes fossem possíveis suscitou árdua polêmica entre os profissionais, argumentando-se, dentre outros aspectos, sobre a fugacidade com que se pretende solucionar assunto tão complexo. A urgência para a tomada de decisões mostra-se clara ao se determinar que, em um único encontro, a questão deve ser elucidada, confundindo-se atendimento psicológico com a obtenção de depoimentos.

Na África do Sul, onde há mais de 10 anos se usa técnica aos moldes do Depoimento sem Dano, autores apontam algumas dificuldades que vêm ocorrendo, como o fato de os profissionais que fazem as perguntas serem, de certa forma, obrigados a reproduzir as questões tal como formuladas pelo Juiz, apesar de não ser esta a proposta original do trabalho.

A psicóloga Marlene Iucksch, em palestra proferida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2007, explicou que técnica semelhante ao Depoimento sem Dano é realizada na França por policiais, devidamente treinados, que auxiliam a instrução do processo. Marlene mostrou-se surpresa ao ser informada de que, no Brasil, há proposta para que psicólogos realizem esta tarefa. Além de compreender que esta não estaria de acordo com um trabalho psicológico, a profissional ressaltou que reconhecer a palavra da criança e do adolescente, ou o direito de se expressarem, é diferente de sacralizar a palavra destes.

Sem desconsiderar a difícil situação de crianças e de adolescentes que passam por reiterados exames ao longo do processo, entende-se – a partir da concepção que se tem da Psicologia – que, além de o Depoimento sem Dano não ser tarefa de psicólogos, a revitimização da criança pode ocorrer quando há ausência ou recorrência de intervenção, bem como intervenções inadequadas. Acredita-se, portanto, na necessidade de serem melhor avaliadas inúmeras questões implicadas no Depoimento sem Dano, a fim de que não se prejudique ainda mais a criança e o adolescente. Destaca-se, ainda, que o Conselho Federal de Psicologia encaminhou em 2007, ao Senado Federal, moção contrária à aprovação do projeto de lei que institui o Depoimento Sem Dano, o que não significa que o debate esteja encerrado.

* Leila Maria Torraca de Brito é Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Disponível no site: http://www.psicologia.ufrj.br/nipiac/blog/?p=84