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Conheça 2 bons exemplos em segurança

Em Santa Catarina, índices sociais favorecem combate à violência; em São Carlos (SP), aplicação rigorosa do ECA trouxe resultados

Projeto social que atende 1.800 jovens em Florianópolis uniu ONGs, Igreja, líderes comunitários, governos federal e estadual e polícia

Folha de S.Paulo - Cotidiano: São Paulo, domingo, 04 de março de 2007

GILMAR PENTEADO
ENVIADO ESPECIAL A SANTA CATARINA

Em meio à violência que cada vez mais preocupa o país e assusta as pessoas, há dois bons exemplos em segurança pública que, sem atos mirabolantes, conseguiram bons resultados.

Em Santa Catarina, os índices sociais positivos fizeram diferença no combate à violência -o Estado tem a menor taxa de homicídios dolosos (intencionais) no país. Já São Carlos, município no interior de São Paulo, o resultado veio com uma iniciativa de seguir estritamente o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Em Florianópolis, no prédio que abrigou o IML (Instituto Médico Legal) por mais de 30 anos, a geladeira usada no passado para depositar os corpos agora guarda pranchas de surfe inacabadas. Pela mesa na qual os cadáveres eram necropsiados, hoje escorre apenas resina.

O imóvel de três andares foi reformado e reaproveitado. O local agora faz parte de um projeto que atende 1.800 crianças e adolescentes e colocou mais 500 na universidade.
O projeto social uniu ONGs, Igreja, líderes comunitários, governos federal e estadual e polícia. Todos citam a iniciativa com uma das responsáveis pelas estatísticas favoráveis, aliada aos índices sociais do Estado, a predominância de cidades pequenas -que reduz bolsões de miséria- e a colaboração da comunidade em ações policiais.

Segundo o Mapa da Violência organizado pela OEI (Organização dos Estados Ibero-Americanos), Santa Catarina foi o Estado com o menor índice de homicídios dolosos.
Nenhuma cidade catarinense aparece na lista dos 260 municípios com os piores índices no país. Das 263 cidades do Estado, em 91 (31%) não houve assassinato entre 2002 e 2004.

A diferença para os outros Estados já começa nos índices sociais. O Estado tem o segundo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do país. Florianópolis ocupa a quarta posição entre os municípios e a primeira entre as capitais.

O analfabetismo atinge 5% da população e o PIB (Produto Interno Bruto) per capita foi de R$ 12.159,00 em 2004. Esse valor é o dobro do PIB per capita de Pernambuco, Estado em pior situação segundo o Mapa da Violência. Naquele Estado, o analfabetismo é de 21,4%.

Em relação ao número de policiais, Santa Catarina e Pernambuco têm proporções semelhantes. A diferença está no salário. O vencimento inicial bruto de um policial civil ou militar em Santa Catarina, segundo o governo, é R$ 1.950,00. Em Pernambuco, é metade disso.
Segundo o secretário estadual da Segurança Pública, Ronaldo Benedet, a política de segurança de Santa Catarina não tem grandes fórmula. "Todo mundo bate nas conseqüências dos crimes. Mas e as causas? Procuramos valorizar a polícia. Mas sem o trabalho social, a ação da polícia é quase inócuo."

Antigo IML virou oficina de pranchas

"Eu costumava freqüentar o prédio para buscar os corpos dos jovens assassinados. Hoje, esse lugar ganhou vida", diz padre

Prédio integra grande projeto social que atende as áreas mais problemáticas de Florianópolis, como forma de prevenção ao crime

GILMAR PENTEADO
ENVIADO ESPECIAL A SANTA CATARINA

A grande geladeira usada no passado para depositar os corpos agora guarda pranchas de surfe inacabadas. Pela mesa na qual cadáveres eram necropsiados, hoje escorre apenas resina. A sala de exame de balística virou local para manutenção de instrumentos de percussão, e a antiga cela está quase pronta para se transformar em uma padaria popular.

O imóvel de três andares, que abrigou o IML (Instituto Médico Legal) e a perícia científica em Florianópolis por 30 anos, foi reformado e reaproveitado intencionalmente para se tornar um símbolo. O local onde jovens assassinados eram enviados agora faz parte de um projeto que atende 1.800 crianças e adolescentes e já conseguiu colocar mais de 500 na universidade.

O prédio integra o projeto social Aroeira, um grande programa que atende jovens das áreas mais problemáticas da cidade: o complexo do Maciço do Morro da Cruz, que reúne 17 morros no centro, e o complexo do Monte Cristo, na periferia de Florianópolis.

As duas áreas concentram cerca de 100 mil pessoas, pelo menos metade em situação de pobreza.

"Se você circular pela periferia, vai ver grandes contrastes. São duas cidades, uma com infra-estrutura e a outra sem a presença forte do Estado", disse o padre Vilson Groh, coordenador dos projetos. "É um barril de pólvora que ainda não explodiu, mas isso pode acontecer. É preciso agir e rápido."
Partiu do padre a idéia de adaptar o antigo IML e transformá-lo em um projeto-símbolo para a cidade. "Eu costumava freqüentar o prédio para buscar os corpos dos jovens assassinados. Hoje, esse lugar ganhou vida", disse.

A oficina de pranchas de surfe é um dos cursos que mais atrai jovens. "Foram eles próprios que disseram que queriam essa oficina. Com isso, conseguimos atrair uma gangue inteira para o projeto."
Seis desses jovens, já formados, planejam abrir uma empresa. "Ninguém voltou para o crime", disse um deles, que virou monitor.

Coincidência
O prédio estava desocupado quando ONGs foram ao secretário estadual da Segurança Pública, Ronaldo Benedet, pedir um local para o projeto IPC (Incubadora Popular de Cooperativas).

"Confesso que foi coincidência. Mas a idéia mostrou que esse é o caminho: se com poucos recursos, se faz isso, imagine com grandes investimentos? Prevenir é muito mais barato", afirmou o secretário.

Benedet disse que a política de segurança de Santa Catarina não tem grandes fórmulas. "Todo mundo bate nas conseqüências dos crimes. Mas e as causas? Procuramos valorizar a polícia. Mas sem o trabalho social, a ação da polícia é quase inócua."

Para o professor de Antropologia da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Teófilos Rifiolis, a distribuição do Estado em pequenas cidades é um dos fatores principais dos baixos índices criminais em relação ao restante do país.
A maior cidade, Joinville, tem 500 mil pessoas. Municípios menores, segundo Rifiolis, significam mais ordem urbana e menos bolsões de miséria. "Um das prioridades do governo é combater o êxodo rural. Com isso, vamos evitar que as cidades cresçam de forma desordenada", disse o secretário da Segurança.

Vizinho solidário
Também com objetivo de descentralização das ações, o Estado incentivou a criação de Consegs (Conselhos Comunitários de Segurança). Hoje, existem 253 conselhos, em 131 cidades. A vigilância com a ajuda de vizinhos é um dos principais projetos em andamento.
"Não queremos que as pessoas sejam medrosas. O Brasil acabou criando um bando de covardes, que se escondem atrás de muros", afirmou Rubens Silveira, presidente do Conseg Jurerê/Forte/Daniela.
Em Jurerê, o administrador aposentado Nelson Marque de Oliveira, 69, foi salvo duas vezes por vizinhos. Na primeira, oito anos atrás, uma vizinha viu estranhos forçando a porta dos fundos. Oliveira estava em casa, com a mulher grávida de nove meses. Os criminosos foram presos. Em outra vez, um vizinho percebeu um estranho na garagem de Oliveira. O ladrão também foi preso.

Amigo levou e tirou jovem da criminalidade

DO ENVIADO ESPECIAL A SANTA CATARINA

P., 17, foi responsável pela iniciação de seu melhor amigo no crime. Os dois participaram de um furto a residência que quase acabou em latrocínio (roubo com a morte da vítima). Anos depois, P. foi também o responsável pela saída de seu amigo da cadeia e por sua reabilitação.

P. e seu amigo R., 18, são monitores hoje no sítio organizado pelo projeto Aroeira. O local, a 30 km do centro de Florianópolis (SC), abriga jovens ameaçados de morte, principalmente por gangues rivais, ou jovens infratores.

Três anos atrás, P. convidou o seu amigo para furtar uma casa. R. nunca tinha cometido um crime. O jardineiro apareceu durante o furto. "Por pouco nós não tivemos de matá-lo", lembrou R.

Depois disso, os amigos se separaram. P. voltou a roubar, mas foi preso após assaltar um taxista. Ficou oito dias preso. Saiu com o compromisso de entrar no projeto. No roubo, no entanto, P. perdeu a arma que era de um criminoso -e teria de pagar por ela para não ser morto. O projeto conseguiu os R$ 500 para saldar a dívida. O dono da arma chegou a assinar um bilhete dizendo que havia recebido o dinheiro, o que funcionou como um "salvo-conduto" para o jovem andar sem ser cobrado.

Meses depois, P. soube que o amigo estava preso numa instituição para jovens infratores. Ele incentivou o pai de R. a pedir na Justiça a entrada do amigo no projeto. R. saiu em abril de 2006 direto para o sítio. "Eu consegui sair do crime e vi que ele podia também", disse P. (GP)

Núcleo em São Carlos prioriza a tolerância

LUÍS FERNANDO MANZOLI
JULIANA COISSI
DA FOLHA RIBEIRÃO

São Carlos, cidade de 220 mil habitantes do interior paulista, criou há seis anos um núcleo com o objetivo de aplicar integralmente o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) no atendimento ao jovem infrator. Os resultados obtidos têm colocado a cidade como um exemplo no Estado.

Em 1998, três anos antes da instalação do NAI, 15 adolescentes de São Carlos cometeram homicídios. Em 2005, o número caiu para um e, em 2006, não houve nenhum caso.

Segundo o padre Agnaldo Lima, ex-coordenador do NAI e atual presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, a média de reincidência de jovens que cumprem medidas socioeducativas na cidade foi de 4% no ano passado - no Estado, 29% dos adolescentes atendidos no regime fechado e aberto voltaram a cometer um crime em 2006.

Em Americana, segunda cidade do Estado a inaugurar um NAI, em abril de 2005, a reincidência em 2006 foi de 20%.

Uma das estratégias do núcleo é usar tolerância em relação ao adolescente que comete um crime. Segundo o juiz da Infância e Juventude de São Carlos, João Galhardo, a cada semestre pelo menos 15 jovens que cometeram crimes graves e teriam de ser internados são enviados para medidas mais leves, como a semiliberdade.

No ano passado, dos 850 jovens infratores atendidos pelo núcleo, apenas nove (ou 1,05%) receberam punição máxima da Justiça prevista pelo ECA e foram enviados para unidades de internação. Para comparar, em Ribeirão Preto, que também tem um NAI, dos 903 adolescentes que cometeram atos infracionais de janeiro de 2006 até este mês, 177 jovens (19,6%) foram internados na Fundação Casa, antiga Febem.

"O que fazemos é olhar para o adolescente, e não para o ato infracional. Em vez de investirmos em baldes para conter a água, tentamos fechar a torneira", diz o padre Lima.
Enquanto espera a aplicação da punição, o jovem em São Carlos realiza atividades escolares, artísticas e esportivas, no espaço do próprio NAI.

Internação
Das seis medidas socioeducativas previstas pelo ECA, São Carlos só não tem a internação -executada, quando necessário, por unidades da Fundação Casa em Ribeirão, Araraquara ou São Paulo.

Também não há celas no NAI de São Carlos. O local reservado para a internação provisória do jovem que espera sentença judicial tem portas, e não grades como em outras cidades.

Para o sociólogo canadense Marc Le Blanc, referência no estudo mundial da delinqüência juvenil que esteve em Ribeirão na quinta passada, quanto menor a abordagem punitiva, maior a taxa de sucesso e, com o tempo, menor a delinqüência.

Umaia El Khatib, terapeuta ocupacional e professora da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), afirma que o modelo é um avanço em comparação com outros sistemas de atendimento ao adolescente infrator, mas ainda incorpora a "visão errônea" de que o adolescente infrator tem de ser punido em vez de educado.

"Me ensinaram que não sou bandido", diz rapaz

DA FOLHA RIBEIRÃO

Rodrigo (nome fictício), 17, é um dos 14 jovens atualmente atendidos pelo projeto de semiliberdade do NAI, em São Carlos. Durante a manhã, ele participa de um curso profissionalizante de confeitaria. À tarde, cursa a 8ª série no mesmo colégio.

"Aqui, me ensinaram que não sou bandido, que sou alguém como qualquer outro." Ele foi detido em novembro de 2006 após participar de roubo a mão armada em plena luz do dia a uma casa, com três colegas. "Foi um impulso, decidimos ir na hora. Hoje nem sei mais porquê."

Levado ao NAI, o jovem passou por todos os trâmites e, em vez da internação, foi para a semiliberdade. "É claro que não gosto de não poder ficar em casa o tempo todo, mas sei que aqui é melhor que muito lugar por aí que a gente ouve falar." Rodrigo vive com a mãe no Cidade Aracy, um dos bairros mais pobres de São Carlos. Chegou na cidade há nove anos, de Recife (PE). Seu pai o abandonou há cinco anos.

Eduardo (nome fictício), 17, internado provisoriamente no NAI por roubo, já esteve na Febem no final do ano passado e disse que o núcleo de São Carlos é diferente. "Aqui a gente pode conversar de igual pra igual."
Seu colega Rafael (nome fictício), 16, agrediu o padrasto e espera julgamento no NAI. "Não gosto de ficar preso, mas aqui a gente joga bola e não fica parado", disse.

Folha de S.Paulo - Cotidiano: São Paulo, domingo, 04 de março de 2007