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Campanha pela Desinternação e não Internação Ilegal no Sistema FEBEM

A reportagem traz uma entrevista com o coordenador do Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo, Givanildo Silva sobre o desrespeito da Febem às determinações do ECA e sobre a campanha pelo fim do sistema


Desde a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, a situação das unidades de internação para adolescentes autores de ato  infracional não se alterou. Mesmo com todas as evidências de que o  modelo FEBEM está esgotado, governo, parlamentares, juizes e grande parte da sociedade ainda não compreenderam a importância de superá- lo.

   

Há mais de 16 anos organizações da sociedade civil apresentam  alternativas, sem que sejam acatadas ou mesmo ouvidas com seriedade.  Apesar da grande mídia não oferecer a cobertura adequada, o  agravamento das violações de direitos humanos dentro da FEBEM tem  sido identificado através da publicação de inúmeros relatórios e  decisões judiciais.

  

Em 2006, entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil/OAB Federal e o Conselho Federal de Psicologia/CFP apontaram  a gravidade da situação ao realizarem inspeções às unidades de internação, mas nada mudou.

   

Está amplamente demonstrado que a medida de internação se dá em condições inadequadas, ferindo a Constituição, os tratados  internacionais dos quais o Brasil é signatário, as leis em vigor no  país e, o mais grave, a dignidade e a vida dos jovens internados.

 

Em 1999 o jornal francês Liberación comentou imagens mundialmente  difundidas de situações de maus tratos em unidades de internação  afirmando que o Brasil é o último país que ainda mantém campo de concentração.

   

É pensando em como reverter tal quadro de perversidade, que o Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo está lançando uma campanha nacional pela não internação ilegal e desinternação dos adolescentes no sistema FEBEM. Para esclarecer sobre a campanha, entrevistamos Givanildo Silva, Coordenador do Fórum.
  
ENTREVISTA

 

Porque uma campanha com esse caráter? Desinternação e Não Internação Ilegal de adolescentes no Sistema FEBEM?

 

A instituição para atendimento de adolescentes que cometem ato infracional está ilegal desde 1990. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 259, parágrafo único, determinou que a União, Estados e Municípios teriam 90 dias, a contar da promulgação da lei, para criarem ou adaptarem seus órgãos às diretrizes da política de atendimento estabelecida. A FEBEM, porém, não respeita as diretrizes do ECA. Existe ainda no Brasil uma cultura menorista, fruto da legislação anterior (Código de Menores), que trata a criança e o adolescente pobre, filhos da classe trabalhadora ou excluída, como caso de polícia ou de justiça. O judiciário não respeita o princípio da excepcionalidade e da brevidade da medida de internação. Muitas vezes aplica internação aos jovens por considerar precárias as medidas sócioeducativas em meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade).É de responsabilidade do Poder Executivo investir na qualidade das medidas em meio aberto e garantir aos jovens serviços de proteção eficientes para que seus direitos fundamentais não sejam ameaçados ou violados. É o Poder Executivo que deve ser responsabilizado por  sua falta. A aplicação das medidas de internação se dá com base em uma idéia  equivocada, propagada por alguns meios de comunicação, de que a juventude é a principal causadora do aumento da violência. Pesquisa do próprio Poder Judiciário aponta que os "crimes" cometidos pelos adolescentes representam cerca de 1% dos cometidos por adultos. Essa distorção leva à internação ilegal, que é a situação de 80% dos adolescentes que estão no sistema de internação em todo o país, causando assim uma grave violação dos direitos dos adolescentes e comprometendo definitivamente a vida desses meninos e meninas. Por isso, a campanha tem o objetivo de alertar a sociedade de que os responsáveis pelo atual quadro do sistema de internação são em primeiro lugar o governo, que não respeita as condições de atendimento aos adolescentes e não cria as políticas necessárias para que o processo educativo ocorra em meio aberto; em segundo o poder judiciário, que tem punido os jovens duplamente, por interná- los sem que seja essa a medida adequada e em instituições que ilegais; e em terceiro a sociedade, que não tem olhar crítico suficiente para filtrar as informações da mídia, aceita as imagens em cima dos muros e não se importa com o que acontece dentro dos  muros, omitindo-se à situação dos adolescentes.

  

O ex-Governador do Estado de São Paulo(Cláudio Lembo) enviou um projeto de lei que muda o nome da FEBEM para CASA, com isso o objetivo da campanha se esgota?

  

Não, na verdade se fortalece. Quando defendemos o fim da FEBEM, reivindicamos a mudança do modelo, não a simples mudança de nome. É preciso alterar a estrutura e a cultura institucional, desde a arquitetura até a forma como o governo, o poder judiciário, os profissionais envolvidos no atendimento e o povo pensam essa instituição. Sem duvida, o maior entrave nessa mudança são os poderes executivos e o judiciário. A proposta de arquitetura apresentada pelo governo para as novas unidades é inadequada, insegura e se traduz como parte de uma  política antiga, que reflete o sistema prisional e coloca ainda mais em risco a vida dos adolescentes. O governo já construiu algumas,  As novas unidades e o modelo implementado não foram discutidos com a  sociedade, processo fundamental para uma mudança efetiva. Quando  muito, o governo tem repassado a gestão das unidades para ONGs, criadas de ocasião, buscando assim afirmar que está dialogando com a  sociedade civil. Com isso, o estado se furta de suas responsabilidades, transferindo o ônus para a iniciativa privada. Vamos cair nos mesmos erros do sistema prisional, que tem hoje uma CPI para apurar irregularidades causadas pela gestão privada.  E não podemos esquecer que a sociedade civil já apresentou propostas  de reordenamento em diversas ocasiões, seminários, conferências, grupos de trabalho, etc. Na verdade, falta ao governo vontade para o diálogo e acolhimento das propostas.

 

Em relação ao endurecimento, como vocês avaliam a fala do Governador Serra(SP), sobre o aumento do prazo da medida de internação de 3 para 10 anos?

 

O governador repete os seus antecessores, não aprendeu com os erros  do passado. Na ânsia de dar uma resposta para a sociedade, apresenta novamente a face errada, a da linha dura, para criar fato político e atender aos seus interesses futuros. O governador e os governadores de forma geral, desconsideram o percurso da construção do ECA, desconsideram que aconteceu um dialogo interdisciplinar das diversas áreas do saber, que os pactos, tratados e acordos internacionais foram assimilados e respeitados. Também precisa compreender, que os técnicos, militantes, já apresentaram alternativa de modelo para o atendimento dos adolescentes autores de ato infracional, porém, o que faltou foi vontade política de fato! E uma questão grave, que acabou agravando a situação dos adolescentes e a própria segurança publica, é que no estado de São Paulo, vimos esses arroubos de ilegalidade e irracionalidade, da gestão anterior. Em uma das crises da instituição, já reduziu a idade para responsabilidade penal e transferiu diversos jovens para o sistema prisional. O que acabou acontecendo? Esses jovens acabaram se articulando com o crime organizado e quando voltaram para unidades da FEBEM, reproduziram a estrutura. Ou seja, esse tipo de solução, tem se demonstrado um desastre completo.

 

Qual o atual quadro do sistema de atendimento ao adolescente autor de ato infracional?

  

No inicio de 2006 o Conselho Federal de Psicologia, junto com a OAB Federal, fizeram uma inspeção simultânea em unidades de internação em todo o país (22 estados e o Distrito Federal). A lógica que vigora em todos os lugares visitados é a do sistema prisional. Não existem condições de habitabilidade adequada, propostas pedagógicas, planos de atendimento individualizados, integração com a comunidade, acesso adequado a defesa. Existe tortura e maus-tratos, entre outras violações, ferindo tudo o que é previsto em lei. Ou seja, todo o sistema se encontra ilegal, os governos se encontram na ilegalidade.

 

Porque, na sua opinião, o estado resiste a fazer as mudanças necessárias e adequadas a lei?

 

Falta de vontade política é o primeiro ponto. Segundo, uma visão preconceituosa contra pobres e negros vistos como potenciais marginais. Terceiro uma falsa idéia de segurança com o recrudescimento do atendimento, fazendo parte do calculo político de que tal postura trará dividendos políticos junto à população. E por último, e que é muito mais grave, é o custo da FEBEM. Podemos falar de São Paulo, que em 2005 para se ter uma idéia tinha um orçamento destinado a FEBEM que inicialmente girava em torno de 500 milhões de reais. O governo pediu uma suplementação de verbas em decorrência do colapso total do sistema de cerca de 260 milhões. Isso do orçamento direto, sem contar outras verbas de secretarias e órgãos ligados ao sistema sócioeducativo e que fazem parte do orçamento indireto (educação, saúde, cultura, segurança publica, judiciário).Se esse orçamento direto foi executado de fato, tirando os gastos com dívidas trabalhistas, cada adolescente custa em torno de 14 mil por mês ao povo do estado de São Paulo e brasileiro. O que justificaria um marmitex custar 16 reais, quando em qualquer lugar pagamos 4 reais; um colchonete de 50 reais, custar 400 ou 500 reais; ou ainda, quando das rebeliões, uma reforma que custaria 20, 30 mil reais, custar para a FEBEM 200, 300 mil, por ser obra de urgência e portanto com dispensa de licitação. Essas distorções aparecem. Essa talvez seja a grande questão que esteja no cerne desse problema, o recurso gasto no sistema não chega a ser utilizado efetivamente com o atendimento dos adolescentes, tem servido sim, para alimentar outros interesses que precisamos descobrir quais são e a quem isso tudo realmente interessa.

 

O que a sociedade civil organizada tem feito ao longo desses 16 anos, para que não mais exista esse modelo de atendimento?

 

A sociedade civil organizada nunca se furtou a dialogar com os governos para tentar resolver essa situação. No caso de São Paulo,  sempre se dispôs a dialogar, sempre ajudou e elaborou propostas de reordenamento do modelo, aproximadamente 6 propostas. Sempre recebeu em troca a indisposição e intolerância do governo para fazer esse dialogo da mudança efetiva. Foram muitas as tentativas. Infelizmente no estado de São Paulo é ainda mais grave do que no resto do Brasil, porque temos aqui aproximadamente 60% dos adolescentes internados no país e como o mais rico estado da  federação, teríamos que ter superado essa situação, dando o bom  exemplo a ser seguido e não o contrário. Nas Conferências Nacionais dos Direitos da Criança e do Adolescente, delegados de todo o país, desde 1999, tem exigido e aprovado o fim do Sistema de Internação, que vigora até hoje no país sob uma ótica absolutamente ultrapassada.

 

Mas, só a mudança do Modelo de Atendimento é suficiente para resolver a situação?

 

Não, não é suficiente. Na campanha também discutimos toda a problemática na qual está inserido esse jovem e quais caminhos que podemos construir para superá-la, não oferecendo para a juventude como perspectiva, ou falta de perspectiva, simplesmente a prisão ou o caixão. Nesse sentido, entendemos que o Judiciário tem papel fundamental, a ausência das políticas protetivas e das medidas em meio aberto acabou criando a lógica da aplicação das medidas em meio fechado.  Alguns juizes tem afirmado que aplicam a medida em meio fechado porque não existem essas outras. Então veja bem, ao invés de  responsabilizar o violador, agrava ainda mais a situação dos  adolescentes, marcando as suas vidas definitivamente!
 
E o que vocês estão discutindo na Campanha, além da desinternação e não internação ilegal de adolescentes?

 

Discutimos a importância de se construir e fortalecer nos municípios as políticas previstas no sistema de garantia de direitos (inexistente na maioria deles), a participação e controle social no processo de elaboração e efetivação dessas políticas, a importância de se compreender as causas da exclusão e os diversos aspectos que fragilizam a adolescência e a expõe a violência, na posição de vítima e de sujeito. Não é possível continuarmos com esse alto investimento econômico e humano e não termos nenhuma perspectiva de vida para os adolescentes. Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo aponta que no estado a reincidência é de 38%, ou seja, cria-se um circulo do qual o adolescente não consegue escapar. Por isso, não podemos pensar a Campanha isolada de um debate e problematização maior desse quadro com a sociedade.

 

Recentemente a Corte Interamericana de Direitos Humanos recomendou ao Brasil fazer algumas mudanças na FEBEM de São Paulo. Qual a força dessa decisão da Corte e na prática o que esta sendo feito?

 

O Brasil é signatário de vários pactos e tratados internacionais que o obrigam a respeitar os Direitos Humanos e os Direitos das Crianças e dos Adolescentes. Se o Brasil tem desrespeitado sistematicamente essas normas, desrespeita mais sistematicamente no caso da FEBEM-SP. Isso levou algumas entidades a apresentarem denuncias perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Entre os casos relatados estava uma rebelião ocorrida em 1999 na FEBEM Imigrantes, em que 4 jovens foram mortos, vários foram feridos e a grande maioria foi transferida para unidades do sistema prisional que passaram a ser ilegalmente utilizadas para o atendimento dos adolescentes. A partir destas denuncias e de uma tentativa infrutífera de mediar uma solução com o governo brasileiro, coube a Comissão Interamericana encaminhar o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Foi assim que a Corte determinou 10 medidas que o governo brasileiro deveria adotar para cessar as violações.

 

E essas medidas tem sido implantadas?

 

Não, na prática não mudou absolutamente nada. A Corte determinou a criação de um grupo de fiscalização, mas a situação continua exatamente a mesma, com torturas, condições desumanas de atendimento, as mesmas violações acontecem. O governo do estado de São Paulo não está implantando as medidas e ainda vem tentado criminalizar os grupos que são responsáveis pela fiscalização da implementação das recomendações.

 

O que pode acontecer ao governo brasileiro se não cumpre as Resoluções da Corte?

 

O descumprimento da resolução da Corte pode acarretar sanções econômicas e exposição do Brasil como violador de direitos humanos para todo o mundo, o que já acontece.

 

Qual o objetivo da campanha?

 

O objetivo da campanha é mostrar a sociedade como ela tem contribuído para a violação de direitos com o seu silêncio e, por vezes, concordando com o tratamento dispensado aos jovens. Queremos destacar a importância do envolvimento da sociedade para resolver esse problema. Também pretendemos abrir um diálogo com o judiciário, apontando os equívocos de uma boa parte das internações, a necessidade da revisão de diversas internações e a importância da aplicação correta da lei. Por último, mais uma vez, queremos propor ao Governo Estadual a desconstrução do modelo de atendimento e sua adequação de fato ao Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

Para finalizar que mensagem você gostaria de deixar para sociedade?

Bem, existe uma frase do Bertold Brecht fundamental para a compreensão da situação em que se encontram os jovens, que é a seguinte: "Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem".