Acervo
Vídeos
Galeria
Projetos


Projeto Guia Cívico do Pan - um projeto de inclusão ou exclusão social?

Artigo demonstra a insatisfação e indignação de Fransérgio Goulart, membro do Fórum de Juventudes RJ, com relação a mais um projeto voltado para a juventude, em especial a juventude moradora de comunidades populares do município do Rio de Janeiro: o Guia Cívico do Pan

 Antes de relatar a minha insatisfação e indignação tentarei, brevemente,  contextualizar este projeto.

O projeto Guia Cívico do Pan é a coluna de um projeto maior denominado de “Segurança cidadã” que tem como entidade executora a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) do Ministério da Justiça. O projeto teria como objetivos principais: a incorporação de novos parceiros a fim de garantir efetividade ao processo de articulação de todas as forças da sociedade e formas de governo no combate à criminalidade, além de planejar e controlar as intervenções em cada região, quebrando o isolamento entre a área de segurança e as outras instituições do Estado, as entidades da sociedade civil e os movimentos sociais.

O Guia cívico hoje estende–se para 116 comunidades do município e conta com a participação de cerca de 4.500 jovens, entre 14 e 16 anos de idade, que recebem uma bolsa no valor de R$175,00/mês e que tiveram aulas sobre os mais diversos temas (cidadania, espanhol, inglês...). Os guias conheceram os espaços públicos da cidade, os pontos turísticos e os equipamentos que serão utilizados durante os Jogos Pan–Americanos para poderem exercer a função de auxiliar na organização e fiscalização do evento.

A indignação começa pela forma como todo este processo foi sendo construído. Os jovens não foram chamados para que ouvissem toda a proposta e, com isto, pudessem construir coletivamente o processo. Mais uma vez a “política bolo pronto” foi o que acabou reinando: o projeto veio pronto e ponto, a tal participação juvenil nunca existiu.

Esta iniciativa governamental teve como ponto de partida a interlocução com líderes comunitários.Visualizamos a juventude tutelada, neste caso, os adultos (líderes  comunitários) falavam pelos jovens. No entanto, mesmo sem participação direta , os/as jovens moradoras de comunidades acreditavam e  acreditam  na figura da liderança ou gestor comunitário para fazer valer suas vozes no projeto.

 No início desta articulação, os/as líderes comunitários/as fizeram um curso de Gerenciamento e mediação de conflitos, com instrutores que, segundo relatos das próprias, não conheciam nada da violência  nas comunidades e solicitaram que se elas soubessem quem era o chefe do tráfico dentro de sua comunidade avisassem à Senasp. Embora ressaltassem que continuariam ajudando e colaborando no que fosse possível, as lideranças tiveram que informar aos instrutores o que eles “não sabiam”: a denúncia, neste caso, representaria a morte destas e de suas famílias.

Diante disse, vale ressaltar dois pontos : Para estes atores -, que nunca ou raramente são reconhecidos pelo poder público e que, na maioria das vezes, tiram dinheiro de seu próprio bolso para realizar trabalhos comunitários com objetivo da melhoria da qualidade de vida (pois quem tem que fazer não faz nada ou quase nada em relação às comunidades populares)- receber uma bolsa entorno de R$250 ou R$350 pelo trabalho de coordenação local era algo importante para a sustentabilidade dos seus trabalhos comunitários. E ainda: as lideranças relatam que são “conviventes” com o tráfico e não “coniventes”, mas estas questões não devem ser muito faladas nas comunidades.

Quando começaram a participar deste projeto, algumas lideranças começaram a ficar muito expostas em relação às relações existentes entre os diversos atores de suas comunidades - fato este que nunca mereceu uma discussão maior dentro do projeto. Será que o poder público soube e monitorou este fato?

As lideranças apontaram que os jovens participantes e suas famílias foram cadastrados no projeto e na Senasp. Seria isto um retorno do monitoramento dos passos das pessoas, desta vez não dos comunistas, mas dos moradores de comunidades populares?

Vale neste momento uma contextualização para uma melhor compreensão dos fatos descritos acima da minha relação com as lideranças comunitárias .
Por ser um militante de movimentos  sociais e populares,tenho um contato muito próximo com algumas lideranças comunitárias, pois as mesmas participam destes espaços e  nestes acabam fazendo uma verdadeira terapia  dos problemas enfrentados em projetos e suas relações com o poder público ,principalmente.
 
Por que todas estas indagações? Pelo simples fato de que mais uma vez o desconhecimento do poder público e todo estereótipo construído sobre as comunidades trazem  a impressão de que o canhão  da Eco-921 não vai existir, mas existirá uma outra forma de coerção tão violenta quanto ele apontado para a comunidade durante os Jogos Pan-americanos. 

No evento de certificação dos jovens do Projeto Guia Cívico, que contou com participação do  presidente da república, foram noticiados vários problemas, entre eles as brigas entre jovens de comunidades por questões de facções do tráfico. A questão é que todo este fato poderia ser evitado ,pois desde o início do projeto as lideranças disseram que seria impossível colocar dentro do Maracanã jovens de comunidades diferentes, juntos em um mesmo evento, ou seja, esta atividade foi um ato de  irresponsabilidade do poder público para a sociedade, em especial as comunidades populares envolvidas neste processo.

Concluo pedindo uma reflexão de todos os cariocas, mas, em especial, de quem executa as políticas e projetos governamentais. Se este projeto ou qualquer outra ação governamental tivesse construído de fato um lugar para comunidades e, principalmente, que os jovens colaborassem, poderíamos ter uma história diferente da que soubemos ou presenciamos. Acho que esqueceram de avisar ao poder público que hoje, queira ou não, temos uma limitação imposta pelo tráfico que é algo real.

Aqui, no Rio de Janeiro, no Fórum de Juventudes temos tido todo o cuidado com esta questão da geografia do tráfico, por isto termos acreditado muito nos Encontros de Galeras, um evento realizado em alguma comunidade popular, no qual os jovens trazem o que querem discutir e como querem fazer isto. A partir disto, estamos vagarosamente fazendo uma discussão da limitação desta circulação e, hoje, alguns jovens que diziam não poder ir a algum lugar já começam a circular por outras comunidades. Através  do encontro, algumas questões estão sendo apontadas pelos próprios jovens como impedimento da circulação destes pela cidade,que são: a defesa do território ,a história e identidade construídas dentro de suas comunidades,a apropriação de termos utilizados pelo próprio tráfico(a questão Cultural).O que estamos fazendo enquanto Fórum para minorar esta questão?Uma é a própria proposta da  atividade e toda sua dinâmica,como já descrevemos anteriormente,  a outra é partir da cultura local e seus valores,principalmente os relacionados a questões da história e identidade destes jovens e suas comunidades.

Termino com mais um questionamento: por que o guia cívico – um projeto para formação de “guias de turismo”,esta é realidade, ser um projeto implementado pela secretaria nacional de segurança pública?

(1) - ECO 92,evento acontecido na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1992 para a  discussão da questão ambiental a nível mundial.Neste evento segundo notícias e estatísticas apresentadas pela grande mídia houve uma baixa do n° de  delitos e assassinatos na cidade do Rio de Janeiro .Diante deste fato uma foto marcou os cidadãos cariocas,em especial aos cidadãos moradores de comunidades populares,a foto que correu o mundo de um tanque do exército apontado para uma comunidade popular,pois esta foi a política de enfrentamento da criminalidade.

*Fransergio Goulart é historiador e membro do Fórum de Juventudes do estado do RJ