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Política pública com ponto de partida e chegada

Em entrevista ao Observatório Jovem, Gaudêncio Frigotto diz ser favorável a implementação de políticas compensatórias desde que inseridas em um modelo de desenvolvimento inclusivo

Observatório Jovem    22.10.2003

Doutor em educação e professor titular em economia política da educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Gaudêncio Frigotto é pesquisador, autor de livros e artigos sobre as relações entre trabalho e educação. Durante o período pré-eleitoral, colaborou no programa de educação básica de jovens e adultos e formação profissional do Partido dos Trabalhadores (PT). Nessa entrevista concedida ao Observatório Jovem, Frigotto apresenta as contradições e as necessidades envolvidas no programa Primeiro Emprego e analisa a situação do jovem imerso numa "sociedade sem horizontes".

Na trilha desse tema, Frigotto discute quais deveriam ser os princípios e os rumos das políticas públicas no Brasil para que essas não se tornem apenas paliativas. Para o educador, políticas como o Primeiro Emprego são "uma estratégia do Estado, uma tentativa de minimizar o sofrimento, a violência e a vida em suspenso de milhões de jovens, dando-lhes a possibilidade do primeiro emprego". Mas, como diz o professor, um país não se faz somente de programas como esses. Eles devem ser apenas ponto de partida.

Observatório Jovem (OJ): Qual sua opinião sobre o debate em torno do programa Primeiro Emprego?

Gaudêncio Frigotto (GF): Para mim, o debate situa-se em torno de uma profunda contradição e de uma profunda necessidade. Nós vivemos em um país cuja dívida com a infância e a juventude é enorme, especialmente, em relação à classe trabalhadora. Abro aqui parênteses: não podemos falar em infância e juventude; existem juventudes e infâncias. Esse recorte de classes é crucial para não falarmos "abobrinhas". À juventude a qual me refiro é, sobretudo, àquela filha da classe que vive do trabalho, os populares. Essa juventude sempre foi mutilada. Há milhares de jovens com um mínimo de escolaridade; alguns em trabalho semi-escravo; outros inseridos precocemente no mundo do trabalho.

A Europa rica e o capitalismo orgânico estão ampliando a faixa de preservação da infância e juventude. Lá, é dever do Estado garantir a vida dos jovens até 16 ou 18 anos - antes, a regra era até 14 anos. Isso é um mecanismo para retardar a entrada do jovem no mercado de trabalho, já que há milhares de adultos desempregados. Nós somos um país de uma tradição de violência brutal sobre a classe trabalhadora e, de certa forma, sobre o trabalho infanto-juvenil e infantil, porque temos uma história escravocrata brutal.

OJ: Diante desse cenário histórico de violência e mutilação, programas como o Primeiro Emprego servem de solução paliativa ou compensatória. Se essa é uma profunda contradição, qual é a profunda necessidade?

GF: As políticas de primeiro emprego nascem de uma necessidade. O secretário municipal de Trabalho de São Paulo, Márcio Pochman identifica muito bem os tipos de políticas. Seriam elas redistributivas e emancipatórias. Fome Zero, Bolsa-Escola e todos esses mecanismos, cujo objetivo é fazer com que as pessoas se alimentem e fiquem na escola, são exemplos de políticas redistribuitivas.

Assim, considero o Primeiro Emprego - dentro da idade legal para se inserir no mercado - uma estratégia de Estado na tentativa de minimizar o sofrimento, violência e a vida em suspenso de milhões de jovens, dando-lhes a possibilidade do primeiro emprego. Essa possibilidade tem sido muito difícil no mundo. O programa Primeiro Emprego é sazonal, no sentido que o Estado pode garantir a vaga apenas por um tempo. Não há garantia nenhuma justamente pela própria lógica do capitalismo atual, que incorpora em bancos, indústrias e serviços muito mais máquinas do que seres humanos.

Essa é uma questão que poderia apresentar um horizonte mais concreto, se houvesse, por um lado, a redução da jornada de trabalho drasticamente e, por outro, a ampliação do fundo público para gerar mais empregos na área de direitos e de serviços. Ora, o movimento no mundo é contrário ao que digo: é privatizar tudo. Então, essa é uma contradição. Por isso, não existe solução fácil. Mesmo países que tiveram um programa de primeiro emprego ambicioso, como a França, muitas vezes apresentaram soluções longe do ideal: davam emprego para um jovem recém graduado em arquitetura, engenharia ou direito para cuidar do metrô ou orientar turistas no museu. Isso também gera um impacto existencial brutal sobre as pessoas.

OJ: No Brasil, esse impacto existencial sequer entra em debate já que a situação é tão complicada.

GF: Diante da massa de jovens no Brasil, temos um problema crucial de sobrevivência. É preciso não torná-los presas fáceis da contravenção e do tráfico. Criou-se uma mentalidade no país de que todos desempregam e só quem emprega nos grandes centros é o tráfico. Os jovens, porém, não querem o tráfico. Eles são empurrados para isso. Eles têm sensibilidade para perceber que esse caminho significa vida curta. Acho que o governo deve apresentar programas, mas também o passo seguinte a eles.

OJ: Qual seria esse passo?

GF: Lutar por construir um modelo de desenvolvimento inclusivo. Esse é um passo duro, porque não depende de uma vontade unilateral, e sim da nossa vontade política e também da correlação de forças com o mercado internacional. Aqui entram grandes temas, como os apresentados pelo economista Celso Furtado, da necessidade de ter um projeto nacional de desenvolvimento, um mercado interno revitalizado e não sucumbir à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e à idéia de Banco Central autônomo. Podemos ter políticas distributivas e emancipatórias, mas tudo isso é fogo fátuo, caso não tenhamos uma mudança estrutural na distribuição de renda e um projeto de desenvolvimento que gere autonomia, emprego e renda. As políticas só têm sentido se apontarem para esse horizonte, caso contrário viram filantropia ou caem no jogo político, com iniciativas como o cheque-cidadão, restaurante popular etc.

OJ: O senhor traçou o panorama brasileiro, no qual as políticas públicas passam pelo dilema da profunda contradição e da profunda necessidade. Há algumas polêmicas em torno do programa Primeiro Emprego. Mesmo com essas contradições, o programa pode ser considerado uma política bastante válida? É isso o que o senhor considera?

GF: Sim. Como pesquisador, tenho insistido muito sob um ângulo. O de que nós, do campo mais à esquerda -, como se refere Frederic Jameson, no livro Sementes do Tempo (Editora Ática) -, nos habituamos a pensar em antinomia (é bom ou ruim) e não em contradição (é bom e ruim). Sempre temos que situar esses programas num horizonte. Esses programas se tornam ruins se são ponto de partida e de chegada. De qualquer forma, os programas para primeiro emprego já são ruins no ponto de partida porque obriga a juventude a entrar precocemente no mercado de trabalho. Mas, infelizmente, a realidade nos impõe isso. Quando a situação é essa, não posso lidar com antinomias porque esse jovem, de uma forma ou de outra, terá que resolver seu problema. O Estado tem esse dever de garantir sua sobrevivência, minimamente, através de políticas públicas.

OJ: Como?

GF: Acho importante discutir qual é a forma. Mas, primeiro, vamos considerar que é uma forma não só legítima, como necessária de intervenção do Estado, seja ela redistributiva ou emancipatória. Cria-se, para esse jovem a possibilidade de ter perspectiva de futuro, não ter vida provisória, em suspenso, subemprego, desemprego etc. Acredito que no contexto de contradição, o Primeiro Emprego é uma política necessária, importante, fundamental, de discriminação positiva e inclusiva. Falta dizer que uma política dessa deve ter um aporte, fundo público e responsabilidade com a sociedade.

Não sou favorável à evasão fiscal. Acho que o capital já ganha muito. Talvez, pudéssemos criar uma lei que, em nome de uma sociedade mais equilibrada, tivesse que incluir jovens sem esse programa para o primeiro emprego. Trata-se de uma correlação de forças. No Rio Grande do Sul isso foi muito bem articulado. Lá, o governo, se não me engano, pagava o salário durante seis meses, ou metade do tempo, e a empresa assumia o resto. Para muitos jovens, houve continuidade no emprego porque este estava ligado a uma política de geração desse primeiro emprego, que é a participação da pequena e da média empresa.

OJ: Agora, tentando entender melhor como é complexa a situação do jovem trabalhador brasileiro, verificamos que na Europa há um esforço para retardar a entrada do jovem no mercado de trabalho; no Brasil, algumas estatísticas mostram que houve um aumento da faixa etária de entrada no mercado, ou seja, teoricamente, houve um retardamento também. A questão é que não se sabe ainda o porquê desse retardamento: se os jovens estão mais na escola, se estão ociosos, desestimulados etc. O senhor tem alguma reflexão sobre isso?

GF: Tenho algumas hipóteses, mas não dados. Sem dúvida nenhuma, houve um crescimento na taxa de escolarização. Há possibilidade de acesso ao mercado escolar privado e público e uma crença muito forte das famílias, mesmo naquelas de origem popular, de que a educação tem valor absoluto. A idéia de empregabilidade foi construindo isso e não a preocupação com o capital humano. Os jovens de classe média alta já não têm essa preocupação. Eles estão em crise por ver que o diploma não lhes garante o emprego que tiveram os pais.

Outro aspecto que pode mascarar esse dado é o da economia informal. Centenas de jovens que antes pressionavam o mercado formal, agora vivem de "bico", trafico, prostituição ou outros ilícitos. Outro fenômeno, apresentado, me parece, pelo Paul Singer, é o do retorno de famílias da cidade para o campo. Assim, entendemos que haja hoje 20 milhões de sem-terra. Cada família dessas tem em média cinco filhos. Outro fator é o brutal desemprego adulto.

O problema do primeiro emprego pode ter uma abordagem nos moldes de uma política redistributiva e inclusiva, que retardasse a entrada do jovem no mercado de trabalho e garantisse sua escolaridade completa. Tomei conhecimento no Rio Grande do Sul de estudo para a criação de um programa de bolsas destinado a jovens em idade de escolarização e também necessitados do trabalho. Assim, seriam garantidos transporte, livros e o mínimo de dinheiro para se sentir um jovem integrado. Em termos sociais e econômicos, esse molde seria o de uma sociedade que paga um custo alternativo por ter sua juventude na escola. Portanto, não adianta só abrir vaga na escola. É preciso um montante de recursos para que esse jovem, que necessita trabalhar, se vire sem buscar o "bico" ou a contravenção. Provavelmente, esse jovem está escondido nas estatísticas. Esse é um programa que me parece, do ponto de vista da própria juventude, mais importante.

OJ: Qual seria o ponto de vista da juventude?

GF: Passei por algumas experiências com as quais aprendi isso. Ajudei a organizar a escola politécnica Joaquim Venâncio, na Fiocruz. No início, ela era direcionada somente para jovens das favelas da Maré e Manguinhos estudarem em turnos integral e noturno. Logo na primeira turma, perdemos muitos alunos. Na visão moralista da sociedade e de nós mesmos, educadores, a tendência é lamentar: "poxa, nos esforçamos tanto para dar escola em tempo integral, vale-transporte e comida, os melhores cientistas e essa garotada inconseqüente e inconsciente não soube aproveitar". Num diálogo duro, os meninos me disseram: "a gente pode ser franco? O nosso pai pode nos dar um tênis 'furreca' e uma camisa vagabunda por ano. Então, se a gente quiser ter uma grana para comprar uma roupa diferente, ir a uma festa ou ao cinema com uma morena para 'secar' uma loira, a gente tem que descolar. Muito de nós faz na contravenção".

Então, o que fizemos foi perguntar o quanto precisavam ganhar para ficar na escola. Negociamos com eles. A partir daí, nenhum deixou de voltar.

Um estado democrático deve garantir horizontes de vida para jovens, crianças e adultos. Se o jovem não tem horizonte, ninguém tem. Se o país trata mal ou mutila sua juventude e infância, está mutilando o futuro do país.

Também precisamos falar sobre a dispersão das políticas. Construiu-se a idéia que tudo que é estatal e público é ineficiente. Em nome disso, se fez uma dispersão, que supostamente promoveria uso mais eficiente de recursos. No entanto, acabamos criando lobbies, atendendo grupos que ganham de todo jeito. Exemplo disso é o sistema S (o Sesi e o Senai, na indústria; no comércio, o Sesc e o Senac; na agricultura, o Senar; e, nos transportes, o Sest e o Senat. Mais recentemente, agregou-se o Sebrae) Muito desses "S" foram criados, exatamente, para jovens e adultos formarem-se profissionalmente. Fiz meu mestrado no Senai. É uma instituição que conta com fundo público compulsório, administrado de forma privada. Apesar de todas as contradições, o presidente Lula, por exemplo, teve acesso ao Senai. Hoje, alguém como Lula, que comeu somente pão até os oito anos, não entra no sistema Senai ou Senac, que apesar do fundo público, ainda cobra mensalidade e disputa verba para qualquer programa, como para o Plano de Qualificação Profissional (Planfor). Acho que essa suposta eficiência na dispersão das políticas provocou uma dispersão de recursos brutal. Portanto, temos que tomar as rédeas, o controle de uma esfera pública de fato pública.

OJ: Políticas públicas universais ou focalizadas fazem parte dessa discussão? Focalizar ou universalizar é também fazer com que os recursos aplicados sejam mais eficientes e direcionados, produzindo uma discriminação positiva?

GF: Essa foi uma questão abordada recentemente em reunião do grupo de trabalho Educação, Trabalho e Exclusão Social do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (Clacso). Assim como é falsa a oposição sobre as políticas da juventude, sobre as quais argumentei antes, também é falsa a oposição universalização/focalização. É claro que nós temos que construir o horizonte de uma universalização. Mas, tratar igualmente grupos sociais historicamente violentados é mantê-los violentados. Eu não defendo a focalização do Banco Mundial, porque ela é para não universalizar. É a manutenção da miséria. Alívio à pobreza. Para não retirar o horizonte da universalização, eu tenho que brigar para aumentar o fundo público, para tratar positivamente e desigualmente aqueles que se tornaram desiguais.

OJ: Como o senhor se posiciona no debate sobre as cotas em universidades para negros e pobres?

GF: Sou favorável à cota. Mas, como? Não diminuindo a universalização. Para que essas medidas não sejam paliativas, de alívio à miséria e à pobreza ou se transforme num tiro no pé da própria vítima (negro e pobre), a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) deveria aumentar, digamos, 20% das vagas entre 2003 e 2007. Além disso, fixar um aporte no orçamento e, momentaneamente, um acréscimo no número de professores. Isso porque incluir na mesa não significa que todos comam. É preciso infra-estrutura acadêmica, de serviço, Internet, vale-transporte etc. Sem isso, o aluno se convence que ele é inferior, não é capaz.

Cada vez mais eu posso pensar por antinomia. É bom ou não é bom. Focalizo ou universalizo. Não: focalizo e universalizo.

OJ: Focaliza-se para universalizar?

GF: Exatamente. Nós temos que lutar para que não exista nenhuma necessidade de política compensatória e que a base sejam as políticas de emancipação, para que tenhamos um horizonte. É como o professor Manuel Castells apresenta: ter emprego era ter futuro previsível. Casava-se, pagava-se um apartamento em 20 anos, tinha-se filhos. Hoje não dá para fazer isso. As pessoas vivem em suspenso. Por isso, o historiador Eric Hobsbawm diz em seu mais recente livro - O Novo Século -, que a humanidade tem uma capacidade exponencial de produzir e que a grande questão do século 21 é como universalizar o acesso aos bens produzidos. Esse mesmo historiador se pergunta se as crianças que nascem hoje têm futuro. Na Inglaterra ainda têm. No Brasil, na África, na Índia, não se sabe. Isso é dramático.