Acervo
Vídeos
Galeria
Projetos


Pluralidade, Religiões e Políticas Públicas de Juventude

Por Alexandre Brasil*

"Diferentes pesquisas afirmam que a religião é o principal espaço de encontro/socialização dos jovens. Assim, penso que dentro de uma perspectiva de construção de Políticas Públicas de Juventudes de forma participativa, em que haja envolvimento direto dos e das jovens, o espaço das religiões é foco obrigatório de se procurar diálogo, de se buscar reverberação"

1. A presença das religiões na juventude
Podemos olhar três recentes pesquisas sobre jovens em que, com alguma liberdade estatística e como exercício, é possível um olhar comparativo entre elas exatamente pela coerência qualitativa que expressam quando observamos a filiação religiosa de pessoas entre 15 e 24 anos. Partimos do Censo de 2000, passamos pelo levantamento com 3,5 mil pessoas do Instituto da Cidadania em 2003, e chegamos até o trabalho sobre Juventude e Democracia do Ibase e Pólis de 2004 com 8 mil jovens, conforme aparecem na
Tabela 1.

Tabela 1 - Jovens de 15 a 24 anos e filiação religiosa em três pesquisas: Censo (2000), Inst. de Cidadania (2003), Ibase/Pólis (2004) - %

 

 

 

 

2000

 

2003

 

2004

 

Catolicismo

 

73,0

 

65,0

 

55,0

 

Evangélicos

 

14,2

 

20,0

 

21,5

 

Espírita/Afro

 

3,3

 

3,0

 

2,8

 

Sem religião

 

9,3

 

11,0

 

16,3

 

Os três estudos sugerem a permanência de um caminho que se iniciou na década de 1990 em que temos combinado o decréscimo católico, o crescimento evangélico e o crescimento dos Sem Religião. É interessante o desempenho dos Sem Religião, mas somente no próximo Censo teremos condições de realmente avaliar isso. A questão é se temos apenas algum viéis das pesquisas ou se, de fato, nesta década este grupo incrementou o seu crescimento na sociedade ou ainda se houve este aumento, apenas e de forma pujante, especificamente entre os e as jovens.

Em relação a esta pertença religiosa, uma das constatações que merece ser sublinhada é o fato de que entre os 13 milhões de jovens (27,3%) que participam/participaram de organizações sociais, o percentual dos que em algum momento participaram de grupos de cunho religioso é de 81,1%; cerca de 10 milhões (Fonseca & Novaes, 2007). Outras pesquisas têm constatado esta ativa presença dos jovens nos grupos religiosos, como a divulgada no livro publicado pelo Conselho Nacional de Juventude (Conjuve, 2006, p. 100), em que se encontrou que entre os 28,1% que afirmou participar em algum grupo, quase a metade participa (42,5%) em grupos religiosos.

Estes dados expressam a capilaridade social e a disseminada presença da religião e do religioso na juventude brasileira contemporânea. A participação em grupos religiosos, portanto, pode ser analisada como um importante vetor para a construção de identidades juvenis, representando espaço importante de agregação social nesta fase de vida. Nas palavras da antropóloga Regina Novaes, num texto sobre jovens no Rio de Janeiro: “Igrejas são espaços de agregação social em uma determinada fase da vida de muitos jovens” (Novaes, 2001, p. 66).

2. A questão da pluralidade
Desde o artigo 18º da Declaração Universal dos Direitos Humanos  de 1948, boa parte dos documentos internacionais em que a religião aparece, ela figura na linha do “sem discriminação de raça, sexo, língua ou religião”. Isso é o padrão até uma declaração que tratou especificamente da questão religiosa, a Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções*2, de 1981.

Fundamentalmente o que temos é a presença do direito a ter (e conseqüentemente não ter ou de mudar), praticar e educar os filhos no escopo de uma específica (ou de um blend) religião sem ser discriminado e também é ressaltado o papel do Estado no sentido de garantir e fortalecer o respeito às religiões minoritárias. Esse poderia ser um resumo, das diferentes citações da religião nos documentos de Direitos Humanos.

No Brasil, vive-se uma relativa diversidade religiosa, com forte predomínio cristão, em que quase a metade da população jovem ou é católica praticante ou evangélica, e em ambos os grupos têm-se a predominância das respectivas vertentes carismáticas. Outros se afirmam como cristãos (30%), mas não possuem significativo envolvimento orgânico. Cerca de 15% se diz Sem Religião, essa é uma grande novidade, e os últimos 5% congregam outras dezenas de opções, crenças e expressões religiosas realmente plurais, com uma predominância do Espiritismo Kardecista e do Candomblé.

Como dar conta dessa pluralidade? Como se pensar direitos humanos entre jovens no Brasil de hoje a partir desta configuração das religiões? Aqui entra o tema da necessidade de se promover os cultos afro-brasileiros, as religiões indígenas e outras experiências autóctones como o Santo Daime. No mínimo, precisa-se falar em se combater e se prevenir a intolerância religiosa. Questão garantida nas leis. Porém, não podemos esquecer que somente há 30 anos é que o Camdomblé na Bahia (Pereira dos Santos, 2000), se viu desobrigado a ter registro na polícia para poder constituir um local de culto. Recente também é a questão da legalização fundiária dos terreiros. Ainda engatinha-se no que se refere a um ambiente de tolerância religiosa, o que no caso das religiões afro-brasileiras lamentavelmente ainda está fortemente relacionado com o racismo.

Quando finalmente vislumbramos uma situação com maior possibilidade para os terreiros, ocorre a ofensiva do neopentecostalismo, que também foi alvo em diversos momentos de parte da elite católica e enfrentou uma série de dificuldade em seu início. O quadro não é o ideal e é preciso avançar. A questão da tolerância “não se refere aos pressupostos que caracterizam cada manifestação religiosa em si mesma, mas à convivência entre as várias manifestações religiosas e ao diálogo não propriamente concernente aos seus princípios, mas à atuação em uma sociedade democrática” (Gallupo, 2000, 16). Esse é o espaço da tolerância, o espaço público, o diálogo que não precisa necessariamente entrar nas questões substantivas da religião*3.

Quando se observam os indivíduos e o processo de trânsito religioso não há, a priori, problemas. Faz parte e é preciso lembrar que as pessoas têm a liberdade de mudar de religião. A questão dos indígenas dá uma bela discussão nesse aspecto. Caberia aqui toda uma digressão antropológica a partir das teorias da
etnicidade (Barth, 1998), coisa que Maria Amália Barreto (1990) sinalizou no passado*4 . Discussão a qual não sou habilitado e nem cabe neste espaço. Mas o ponto que é preciso sublinhar é que o Estado precisa atuar no sentido da promoção da rica diversidade religiosa existente no país. Não era bom quando todos eram católicos e é somente um pouco melhor agora em que há uma polarização católicos-evangélicos. Como sociedade e como nação não se pode perder a riqueza e a diversidade que representam as religiões indígenas e os cultos afro. Nossos filhos devem conhecer e aprender dos mitos, estórias e histórias da cultura africana e indígena. Não se pode prescindir dessa riqueza, dessa diversidade.

3. A participação das religiões nas Políticas Públicas de Juventude
Por fim, em relação às Políticas Públicas de Juventudes, apenas um ponto. No importante livro da UNESCO (2005) sobre Políticas Públicas de/para/com juventudes impressiona a ausência das religiões. Salvo engano, há apenas uma menção da Igreja Católica e só.

Diferentes pesquisas afirmam que a religião é o principal espaço de encontro/socialização dos jovens. Assim, penso que dentro de uma perspectiva de construção de Políticas Públicas de Juventudes de forma participativa, em que haja envolvimento direto dos e das jovens, o espaço das religiões é foco obrigatório de se procurar diálogo, de se buscar reverberação.

Temos uma massa de jovens organicamente constituída e que, boa parte, encontra-se alienada do processo das Políticas Públicas de Juventudes. É fato que alguns grupos religiosos precisam fazer seu dever de casa. Entre evangélicos, discute-se a viabilização de um espaço, uma espécie de Fórum
Evangélico de Juventudes, para uma atuação mais ativa neste diálogo/processo. Já a Pastoral de Juventude, ligada a Igreja Católica, têm adotado há alguns anos o tema das Políticas Públicas de Juventude como central em sua formação e discussões, desenvolvendo importantes iniciativas e provendo atuantes quadros.
Outros grupos religiosos também têm feito esse trabalho, mas também cabe às organizações não-religiosas e ao Estado visualizar e incluir as organizações e grupos ligados às religiões. Estes grupos têm potencialmente grandes possibilidades de efetiva participação. É um diálogo que pode ser difícil e demorado, mas que não pode ser dispensando quando se fala em Políticas Públicas de Juventude, construção de autonomia e Cultura de Paz.

É preciso olhar para esta parcela da juventude na busca de uma gramática que os inclua e que é enriquecida e enriquece a realidade destes. Sobre uma possível relação entre religiões e Estado, o jornalista Merval Pereira (2006, p. 4) reproduziu uma interessante fala de Sérgio Rouanet a partir de um texto de Habermas:

o Estado tem que dar grande atenção à semântica e ao potencial de motivação que as tradições religiosas têm. (...) a religião é uma força social muito ativa, com um papel importante a desempenhar em mundo em que ele [Habermas] vê dominado pela anomia, ceticismo político, narcisismo, que corroem o processo democrático. Segundo ele, a religião pode reintroduzir sentimentos como a solidariedade e responsabilidade na arena política. O Estado não deve ser secularista no sentido ultrapassado de relegar a religião ao obscurantismo, mas sim, segundo Habermas, usar a religião, num processo de aprendizado recíproco entre crentes e não crentes.

Penso nessa tarefa, esse diálogo, no contexto daquilo que Moacir Gadotti (1989, p. 71), em alusão a aspectos relacionados à dialética paciência-impaciência de Freire, entende ser o ato pedagógico:

O ato pedagógico exige 'paciência histórica', vontade de caminhar junto e não de se sacrificar na vanguarda. Uma educação vai mais à frente na medida em que tiver menos heróis, menos sacerdotes que se imolam em holocausto.

É mister que caminhemos juntos dos e das jovens que participam das religiões no sentido de construirmos Políticas Públicas de/para/com Juventudes, numa perspectiva dos Direitos Humanos e da diversidade de forma abrangente e mais próxima da plural e colorida realidade brasileira. Isso dá trabalho, mas é um imperativo democrático.

 

*1 - Sociólogo, professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde - NUTES/UFRJ.

*2 - “Artigo XVIII: Toda a pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, ela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”.

*3 - Lembro de uma fala do sociólogo Antônio Flávio Pierucci numa entrevista de dezembro de 2005 na Ciência Hoje: “No fundo, no fundo, uma religião não respeita a outra. Sei que para as pessoas que têm religião isso é duro de ouvir, mas eu, como sociólogo da religião, devo admitir que elas não se respeitam; ao contrário, vivem se desqualificando umas às outras”. Não seria possível pensarmos que no lócus público poderia ser construído um respeito mínimo? Uma zona de tolerância/segurança em que se assume a não-agressão? Da mesma forma que isto é encontrado em outras esferas coletivas de disputas, entre torcidas de futebol ou mesmo partido políticos, por exemplo. Nestes outros espaços é provável que o aspecto proselitista seja menor, mas certamente há forte concorrência e se mantém, em alguns casos, o respeito e, em outros, situações de conflito aberto.

*4 - “A um negro discriminado, nunca lhe perguntam se é católico, de terreiro ou protestante. Por que, então, a consciência da discriminação deve passar, necessariamente, pela filiação a um terreiro de culto afro? Ou será que, a exemplo de outros grupos negros, o negro brasileiro poderá se organizar, como um grupo étnico, tomando como pontos referenciais as suas experiências específicas e únicas no Brasil? A cultura é mais o resultado de um efetiva interação social do que uma herança ancestral, nos ensinam os estudos atuais de etnicidade e grupo étnico” (Barreto, 1990, p. 24).

Referências bibliográficas

Barreto, Maria Amália (1990). O problema da identidade do negro brasileiro. Comunicações do ISER, n. 37, ano 9, p. 21-25.

Barth, Fredrik (1998). Grupos étnicos e suas fronteiras. In: Poutignat, P. & Streiff-Fenart, J. Teorias da etnicidade. São Paulo: Unesp, p. 187-227.

Conjuve – Conselho Nacional de Juventude (2006). Política Nacional de Juventude: diretrizes e perspectivas. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert.

Fonseca, Alexandre Brasil & Novaes, Regina (2007). Juventudes brasileiras, religiões e religiosidade: uma primeira aproximação. In: Abramovay, Miriam; Andrade, Eliane; Esteves, Luiz Carlos. Juventudes: outros olhares sobre a diversidade. Brasília: MEC/SECAD & Unesco, p. 149-171.

Gadotti, Moacir (1989). Educação e Poder – Introdução à Pedagogia do Conflito. São Paulo: Cortez.

Gallupo, Marcelo Campos (2000). Direito, democracia e religião a questão da tolerância. Veredas, n. 1, p. 11-18.

Novaes, Regina & MELLO, Cecília (2002). Jovens do Rio. Rio de Janeiro, Comunicações do Iser, n. 57, ano 21, 2002.

Pereira dos Santos, Erisvaldo (2000). Religião e direito na vida dos afro-brasileiros: a propósito do direito à diferença. Veredas, n. 1, p. 21-25.

Pereira, Merval (2006). Política e religião. O Globo, 27 de abril de 2006, p. 4.

Unesco (2005). Políticas públicas de/para/com juventudes. Brasília: Unesco, 2ª ed.