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Periferia de SP promove saraus literários

A reportagem mostra como um grupo de escritores independentes de um bairro em São Paulo editam os próprios livros, realizam saraus literários e outras atividades

Grupos se mobilizam para editar livros com tiragens de mil exemplares, criar bibliotecas comunitárias e publicar fanzines

Encontros semanais chegam a reunir até 400 pessoas no bairro do Piraporazinho, na zona sul da capital paulista

Um episódio vivido pelo escritor Alessandro Buzo, morador do Itaim Paulista, bairro pobre da zona leste, dá idéia do que move os estranhos caminhos da literatura. Em 2001, ele foi convidado a dar entrevista numa rádio comunitária de Suzano. Quem o esperava era Ademiro Alves, o Sacolinha, um cobrador de lotação de 17 anos e seu entrevistador. No caminho até a rádio, Buzo percebeu que andavam em ziguezague, pois o rapaz parava nas casas para recolher e entregar livros. "Uma espécie de bibliotecário delivery", pensou. Então ouviu de uma moradora: "Fulano não está, mas mandou dizer que adorou o livro". Sacolinha recolheu o volume e deixou outro no lugar. "Eu levo leitura até os manos", disse. Sacolinha é um verdadeiro ornitorrinco. Raro.

O lugar ocupado pelo escritor "outsider" na vida contemporânea é meio parecido com o do ornitorrinco na natureza, um mamífero perdido de seu papel na evolução, que tem nadadeiras, choca seus ovos e amamenta os filhotes pelos poros. Esquisitices que o colocam à margem do mundo. Como os ornitorrincos, são solitários.

Ao contrário de outros tempos, a literatura não tem mais a relevância social que já teve, e cada vez mais o ato de produzi-la perde sua condição de ofício. Na periferia, o escritor é como o ornitorrinco, um "outsider" que escapa aos padrões de seu habitat. De que serve, ali, algo que não é ofício? Como esses escritores são solitários.

Sacolinha e Buzo são ornitorrincos que exercem sua esquisitice na Cooperifa, grupo de escritores da periferia que edita seus próprios livros e promove leituras, criado em 1999 pelo poeta Sérgio Vaz, 42, ex-auxiliar de escritório, no bairro do Pirapozinho (zona sul de SP). "Começamos no pátio de uma fábrica e lá ficamos por um ano, fazendo encontros mensais. Mas daí tivemos de desocupar o lugar e pensei: espaço público na periferia é igreja ou boteco. Preferimos o boteco." Sérgio então transferiu o sarau para o bar do Zé Batidão, onde o encontro ganhou periodicidade semanal. "Nosso público médio é de 400 pessoas. E todo mundo vai para ouvir, aplauso no final de cada leitura é regra da casa", diz o mestre de cerimônias.

Até cair de amores pela música, ele ajudava a família no comércio e fazia cursos técnicos. "Com 19 anos montei um grupo. Como não sabia tocar nem cantar, alguém falou que eu podia compor as letras. Foi assim que comecei a escrever poesia", diz. E também começou outro problema. "É que poeta não é muito bem visto na periferia." Mesmo com quatro livros publicados e o sucesso da Cooperifa? "Bem, hoje em dia o centro atravessa a ponte para ir ao sarau, nós entramos no circuito cultural da cidade".

Justiça editorial
No caso da literatura, é essencial que exista algum consenso em relação à qualidade do que se produz. Na chegada do primeiro ornitorrinco empalhado à Europa, a comunidade científica o classificou como um embuste. Afinal, quem pode gabaritar um escritor ou um ornitorrinco?

Com a deserção da crítica, o papel de mestre recaiu sobre o editor de livros. Ou seja, quem decide o que presta ou não é o mercado. E nesse processo de seleção nada natural se agiganta uma enorme periferia de excluídos que resolveu fazer justiça editorial com as próprias mãos. Cessar com o isolamento através da auto-edição de livros com tiragens de mil exemplares, da criação de bibliotecas comunitárias e da publicação de fanzines, esta é a meta.

Outro que arranjou encrenca graças à literatura é Alessandro Buzo, 33, morador do Itaim Paulista. "É que estou vivendo de palestras e da venda de livros mão-a-mão. No subúrbio o cara tem de sair de casa cedinho para trabalhar senão a vizinhança desconfia. Perguntam: "Que foi, tá de férias?"." Autor de quatro livros ("O Trem", "Baseado em Fatos Reais", "Suburbano Convicto" e "Guerreira"), Buzo ainda atende restaurantes (trabalha em um atacadista que fornece produtos alimentícios) e é garoto-propaganda de uma marca de roupas. Ele paga a editora que publica seus livros com alimentos da empresa onde trabalha -a editora faz uma compra equivalente ao preço da tiragem, cerca de R$ 5.000 por 500 exemplares, e a empresa desconta em parcelas mensais. "Paguei as prestações com arroz e feijão. O pessoal diz que essa história vai virar lenda."

Se vai. Alessandro Buzo faz de seus livros verdadeiros retratos do bairro em que vive. Ele também criou a biblioteca Suburbano Convicto.

Fundar bibliotecas também é a maneira de fazer revolução arranjada por Maria Nilda Mota de Almeida, a Dinha, 27, poeta, formada em letras pela USP. Em 1999, Dinha e seus amigos conseguiram permissão da prefeitura para ressuscitar o desativado CDHU do Parque Bristol (zona sul) e lá criaram o Maloca Espaço Cultural, com biblioteca e salas onde acontecem cursos de literatura e música, entre outras atividades. "A biblioteca é mantida pela comunidade".

Figura rara, a Dinha. Assim como Sérgio Vaz, Sacolinha e Alessandro Buzo, eles não estão mais solitários como o ornitorrinco. Não é o tipo de gente convidada para a Flip (Feira Literária Internacional de Parati), o badalado encontro de escritores que acontece a partir do dia 9. Criaram outra, à sua imagem e semelhança: a Flap, que em vez da bucólica Parati ocupa o concreto da praça Roosevelt. O verso de Sérgio Vaz resume o enredo: "Enquanto eles capitalizam a realidade / Eu socializo meus sonhos".

Publicado na Folha de São Paulo - Cotidiano em 30 de julho