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Ousadia, desejo e transgressão: as nuances da juventude gay, lésbica, bissexual e transgênero - GLBT

Antes de qualquer comentário é preciso reconhecer a complexidade existente entre as temáticas gênero, orientação sexual e sexo e o aprofundamento dessa complexidade quando associado a juventude e a classe social

Se entre as camadas médias e urbanas, alguns autores apontam para a flexibilidade das identidades sexuais, observamos que entre as camadas pauperizadas, sobretudo, as da periferia e de cidades interioranas, a forma como o indivíduo vivencia o seu afeto, desejo sexual e se projeta no cenário social irá definir como será tratado na sociedade e é sobre isso que iremos discutir nesse texto. Não ignoramos a fluidez dos desejos, das identidades sexuais e das sexualidades, entretanto, nesse texto nos limitaremos a discutir a vivência cotidiana de adolescentes e jovens que se reconhecem nos códigos existentes nas identidades gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros.     

Olhando atentamente o cotidiano da juventude GLBT pauperizada é possível observar as conseqüências da violência. Um aporte teórico que nos permite analisar os resultados da exclusão e da violência encontra-se na discussão do abuso (COSTA, 2003). O termo abuso inclui prevalecer-se de, aproveitar-se de, praticar excessos que causam ou podem causar dano, assim como o uso de palavras para desqualificar, ridicularizar, fazer zombarias, injúrias, insultos, usar mal ou inconvenientemente de qualquer situação de superioridade de que se desfruta e se exceder em limites que ultrapassam o respeito pelo outro. O termo, neste sentido, inclui agressões que, mesmo não ferindo o corpo, ferem a sensibilidade, as emoções, a auto-estima e desrespeitam a identidade e singularidade da pessoa atingida, podendo causar transtornos ou desconforto emocional, que podem traduzir-se em “subalternidade” e/ou negação da identidade sexual.

Nesse caminho é importante enfatizar a conseqüência da humilhação, que pode ser tão traumática quanto os efeitos da lesão física, já que suas ações atingem a valorização pessoal, a autoconfiança e a confiança no outro. Portanto, a conseqüência última do abuso também é a homofobia[2] internalizada. Neste sentido, mais eficaz do que as ações preventivas e/ou repressivas dos aparelhos de controles sociais é a postura do indivíduo que é levado a repudiar seus desejos, em detrimento do histórico estigmatizado, não os vivenciando ou mantendo-os na invisibilidade.

Portanto, a invisibilidade adotada, encontra-se no campo da violência simbólica (Bourdieu, 2003). O exercício diário da ocultação seja na família, no trabalho, na universidade, na igreja ou na escola é motivado pela internalização nos indivíduos dos valores sociais que engendram a sua orientação sexual nos campos do pecado, do erro, da culpa, da sujeira entre vários outros adjetivos de cunho pejorativo aos quais os/as adolescentes e jovens são levados a crer sobre a sua sexualidade.

Em pesquisa coordenada pelo Grupo Arco-Íris, UERJ e Universidade Cândido Mendes em 2003, com 468 freqüentadores na 8ª Parada do Orgulho GLBT realizada em Copacabana/RJ, perguntou-se sobre os locais e os autores das agressões mais marcantes. Entre os que responderam, 50,2% apontaram os locais públicos, acompanhado do número expressivo nas dependências da casa (14,9%), a escola ficou com 11,9%, seguido de 11,2, nos estabelecimentos comerciais e 9,5% no trabalho. É importante mencionar que 25,9% entre faixa de 14 e 18 e 20,4% dos jovens entre 19 e 21 anos foram vítimas de agressões ocorridas na escola.

Ainda com a pesquisa acima, entre os causadores dos abusos foram indicados em ordem seqüencial: primeiro - desconhecidos, com 136 casos; segundo colegas de trabalho ou escola com 36 casos; terceiro - familiares com 28 casos; quarto - amigos com 27 casos; quinto - policiais ou seguranças com 23 casos; sexto - vizinhos com 17 casos; sétimo - parceiro com 13 casos; oitavo - professores ou chefes com 9 casos e por último em nona posição os funcionários públicos com 4 casos.  Das agressões sofridas pelos/as homossexuais da amostra, 42 agressões foram denunciadas a órgãos públicos, das 295 apontadas como as mais marcantes. Os resultados obtidos na pesquisa permitiram indicar que mais da metade dos entrevistados, quase 60%, já haviam sofrido algum tipo de agressão diretamente ligada à orientação sexual. Dos entrevistados, cem afirmaram não ter divulgado a agressão a ninguém, o que evidência a conseqüência mais marcante do preconceito: a subalternização e sentimento do medo. Este quadro confirma e aprofunda a observação de que a violência contra GLBT é vivenciada de forma silenciosa e que a significativa maioria das agressões não só estão impunes como sequer foram oficializadas em registros jurídicos.

Pesquisa no mesmo molde e coordenação foi desenvolvida em 2004. Diferente do ano anterior, existiram no questionário perguntas específicas a fim de mensurar a intensidade da violência contra GLBT nas escolas. Entre os freqüentadores, com 15 a 18 anos que responderam as perguntas sobre discriminação na escola (47 entrevistados), 40,4% afirmaram terem sido marginalizados por professores e colegas. Os percentuais diminuíram à medida que as faixas etárias aumentaram, mas ainda assim, permaneceram em números consideráveis, entre 19 a 21 anos (83 entrevistados/as), 33,3% e 26.8% entre os de 22 a 29 anos (179 entrevistados) sofreram discriminação no espaço escolar.

Os coordenadores chamam a atenção para o fato de a discriminação ocorrer de forma diferenciada entre os homens e mulheres. Observaram que entre os 503 entrevistados, 33.1% dos homens foram discriminados seguidos de 17.7% entre as mulheres. Os bissexuais localizaram-se em nível inferior aos homossexuais, 21.9%. Entre as/os transgêneros o percentual ficou no patamar de 25.8%, a incidência foi relativamente baixa, mas segundo os autores seria em decorrência da pouca freqüência de estudantes transgêneros nas escolas/faculdades. A discriminação contra os homossexuais de acordo com Abramoway, Silva e Castro (2004) demarcaria a diferença de um com relação ao outro, afirmando o papel daquele que discrimina e a inferioridade e desvio daquele que é discriminado.

Outra situação especifica do universo infanto-juvenil, encontra-se na descoberta das nuances do corpo e da prática sexual, no geral esse processo é compartilhado com amigos. A necessidade de narrar experiências amorosas e de ouvir relatos sobre relações sexuais é o caminho que vários adolescentes utilizam para diferenciá-los das etapas da infância. O primeiro beijo, a paquera na escola, a saída com o pretendente, a troca de telefones e a comunicação do namoro aos amigos, todas as publicidades de experiências que romantizam a vida cotidiana dos adolescentes não fazem parte do dia-a-dia dos jovens GLBT. A prerrogativa da solidão, o autocontrole dos gestos e o silenciamento oral dos desejos são as primeiras experiências que os adolescentes GLBT são obrigados, em detrimento do preconceito, a aprender. Entretanto, esse quadro é apenas um lado do prisma, em se tratando de seres humanos, o desejo é capaz de gerar ousadias e revelar caminhos.

O uso dos praticantes: a internet entre a visibilidade virtual e a invisibilidade real

As salas de bate-papo na internet ou nos telefones convencionais são habilmente freqüentadas pelos adolescentes GLBT residentes nos centros urbanos. Os usuários inventam nomes e características pessoais, esse quadro provoca o anonimato e possibilita, inicialmente, a invisibilidade. Utilizando-se do reservado[3] das salas de bate-papo é possível aos usuários o diálogo entre duas pessoas. As informações relacionadas às preferências culturais, as características físicas e os bairros onde se situam são obtidas no diálogo virtual. O objetivo do início da conversa, depois de alguns minutos é teclado e logo aparece na tela: vamos nos encontrar? A ação motiva outra reação: me dá seu número de celular?

A partir de relatos de adolescentes freqüentadores dos encontros de quartas-feiras no Shopping Madureira e da rua Almerinda Freitas (zona norte do município do Rio de Janeiro), a privacidade do aparelho telefônico celular permite que somente o usuário possa atendê-lo, não correndo o risco de ser descoberto a sexualidade pelos familiares. Portanto, na tentativa de encontrar aquele que possui interesses semelhantes, os internautas podem agendar e encontrar os seus companheiros de sala de bate-papo na visibilidade da rua, dos shoppings, dos cinemas... Tecendo as suas redes de sociabilidades, conforme podemos verificar no depoimento de Luan.

Conheci meu namorado na lista de e-jovem na internet, ficamos algum tempo nos falando e resolvemos nos encontrar (17 anos).

Outro recurso freqüente utilizado pelos adolescentes GLBT é o blogg: um diário eletrônico disponibilizado na rede de internet, freqüentado por centenas de pessoas, que ao lerem as anotações, podem comentá-las. A internet é amplamente freqüentada pelos adolescentes e jovens GLBT, mesmo entre aqueles que não possuem acesso em suas residências. A invisibilidade inicial provocada pela dinâmica virtual permite que homens e mulheres, sobretudo, adolescentes venham a construir sua rede de sociabilidade. Segundo Russo (2000), existiriam no Brasil mais de 980 sites direcionados a esse público homossexual. 

Dados apontados por Carrara, Ramos e Caetano (2003), indicam que dos 39 entrevistados entre 14 e 18 anos (faixa etária proibida de freqüentar estabelecimentos comerciais GLS), 43,6% freqüentam as salas de bate-papo de gays e lésbicas na internet seguidos de 20,5% que às vezes as utilizam. Neste sentido, o papel da internet foi redimensionado e/ou complementado pelos os/as adolescentes homossexuais, permitindo, portanto, que sua sexualidade seja vivenciada driblando o controle normativo, como podemos observar no depoimento de Daniel.

Foi na internet que busquei informações sobre homossexualidade. Usava um programa para apagar o histórico, assim minha mãe não via os sites gays que eu olhava (17 anos).

A mesma sorte ou idéia não teve Paulo: Minha mãe descobriu que eu visitava os sites gays, eu tinha treze para quatorze anos. A noite eu via tudo e de manhã minha mãe olhava o que eu tinha acessado. Um dia quando eu cheguei em casa ela pegou meu computador e jogou no chão. Mas já era tarde, conheci muita gente nas salas de bate-papo, íamos ao Shopping Plaza (Niterói) e depois à boate.

Questionado como entrava na boate, sendo menor de idade, respondeu com um sorriso, alguns segundos após a pergunta olhando em direção as mãos:

Simples, eu falsifiquei minha identidade (17 anos).

Considerações finais

A frustração de papéis de gênero e a nomeação de doença orientaram as imagens e as linguagens associadas aos GLBT. Na contemporaneidade, dada a radicalidade com que emergem as forças conservadoras, a violência ainda faz parte do cotidiano dessa população. Entendemos que a violência contra o indivíduo homossexual, assim como com os negros e as mulheres, ao longo da história da sociedade brasileira sempre esteve associada à visibilidade e a forma com que é ocupado o espaço público. Para os setores conservadores visualizar as camadas subalternizadas articulando-se e reivindicando espaço de igual valor entre os interesses que circulam a polis, opera-se como afronta à tradição.

O desejo e o sonho são elementos abstratos que unidos são capazes de materializar as transformações da vida. O desejo vem movendo GLBT a visibilizar suas especificidades em um mundo público onde a diferença é capaz de gerar hierarquias. No entanto, segundo Bhabha (1998), somente demarcando os espaços da diferença é possível visibilizar as especificidades e materializar no real, aquilo que ainda encontra-se nos sonhos. Os anos que se seguiram à década de oitenta, impulsionaram homens e mulheres a dar respostas à epidemia de Aids. Amigos, companheiros, paixões e amores foram embora sem que deixassem seus endereços, a morte ocasionada pelos transtornos decorrentes da Aids dava a partida aos que não sabendo as armas do inimigo, lutavam sem eficácia. Do nome originário câncer gay ao nome científico Aids se passaram quase trinta anos.

Os dados apresentados neste texto apontam e recomendam a importância do enfrentamento de processos de exclusão social, à medida que somente combatendo-a nos constituiremos como uma sociedade democrática. Assim sendo, o conceito de inclusão social somente será eficaz e terá sentido se levar em consideração os direitos do ser humano em práticas universalistas e agregadoras. Portanto, todo ser humano deverá ter o direito à auto-aceitação, às relações sociais positivas, orientadas pelo respeito, qualificação e acolhimento, à autonomia, à determinação de sua própria vida e realizações, à auto-estima, à razão de viver e ao crescimento pessoal e social.  São esses valores que devem orientar todos os democráticos, libertários, cidadãos, defensores da vida e do sonho.

Referencias bibliográficas: 

ABRAMOWAY, M; SILVA, L; CASTRO, M. Juventude e sexualidade. Brasília: UNESCO, 2004.

BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2003.

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Tradução Maria Helen Kuhner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

CARRARA, S.; RAMOS, S,; CAETANO. Política, direitos, violência e homossexualidade: 8ª Parada do Orgulho GLBT Rio 2003. Rio de Janeiro: Palla, 2004.

CARRARA, S.; RAMOS. Política, direitos, violência e homossexualidade: 9ª Parada do Orgulho GLBT Rio 2004. Rio de Janeiro: CEPESC, 2005.

COSTA, L. S. M. da.  Abuso no curso médico e bem-estar subjetivo.  2003.  Tese  (Doutorado em Psicologia Social) -  Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.

RUSSO, R. Tesão on-line. Sex Symbol,  n. 12, p. 35, jan. 2000.

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[1] Esse texto originou-se da dissertação de mestrado “Os gestos do silêncio para esconder as diferenças”, defendida na Universidade Federal Fluminense em 2005.  

[2] Distúrbio psicológico que produz aversão e violência contra homossexuais.

[3] O reservado é um instrumento oferecido pelos provedores. Quando marcado pelos usuários, o acesso a rede é limitado às pessoas que estão compondo o dialogo.  O fenômeno mereceria maior atenção, é interessante observar que mesmo não estando presentes, as pessoas quando dialogando com uma única pessoa, não a faz em público virtual. 

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