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Os jovens não renunciaram às lutas sociais,

Para Paulo Carrano, “as contradições geradoras das ‘demandas radicais’ persistem e deveria ser tarefa de toda a população, e não apenas ‘da juventude’, articular as saídas ‘socialmente transformadoras’”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele retoma o assunto da Revista IHU On-Line, que trata sobre o tema dos jovens hoje. Assim, Carrano analisa o perfil da juventude deste novo século e alguns contextos sociais e econômicos que influenciam essa geração. “Não tenho dúvidas que cada escândalo de corrupção envolvendo políticos joga mais água no moinho do desinteresse e descrédito dos jovens na política tradicional”, disse.

Paulo Carrano é mestre e doutor em Educação, pela Universidade Federal Fluminense, onde atualmente é professor e pesquisador. É autor de e Os jovens e a cidade. Identidades e práticas culturais em Angra de tantos reis e rainhas (Rio de Janeiro: Relume Dumará/FAPERJ, 2002) e Juventudes e cidades educadoras (Petrópolis, RJ: Vozes, 2003).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – É possível traçar um perfil único de jovem do século XXI? Em que medida as diferenças de classe (A, B, C e D) criam universos juvenis diferentes?

Paulo Carrano – Não. Qualquer tentativa de estabelecimento de perfis unitários para os jovens ou qualquer outro grupo etário tende a resvalar em simplificações. A resposta para isso poderia ser uma outra indagação: é possível traçar um único perfil para a humanidade em qualquer século? A maioria das pessoas, cientistas sociais ou não, tenderá a dizer que a humanidade é composta de sujeitos e contextos múltiplos e que não seria possível estabelecer um padrão universal. Sendo assim, por que a recorrente tendência em considerar os jovens como uma unidade social de perfil único?

Sem dúvida, o pertencimento à determinada classe social gera condições objetivas para a constituição de universos juvenis diferenciados. Porém, somente em contextos muito específicos podemos falar em “unidades de geração”. Fazer parte de uma classe ou de uma geração não é questão de escolha. Entretanto, no interior de uma mesma classe social, há uma multiplicidade de corpos jovens (homens, mulheres, brancos e não brancos etc.) que experimentam trajetórias biográficas únicas, são capazes de realizar escolhas alternativas, de elaborar projetos de vida e reagem diferentemente às adversidades e possibilidades que a vida lhes oferece. E isso é algo que faz com que dentro de uma mesma classe social existam diferentes modos de experimentar a condição juvenil. Desta forma, é possível dizer que a origem de classe faz diferença, mas que também é simplificador tentar comparar os jovens apenas pelas suas origens de classe.

IHU On-Line – Segundo pesquisa da FGV, o salário da juventude aumentou 10,5% por ano entre 2004 e 2008. A elevação da renda mensal entre os jovens pode apontar um conformismo social e político entre a juventude? Chegamos ao fim da era das demandas radicais e socialmente transformadoras?

Paulo Carrano – Não existe correlação imediata entre renda e comportamento político. O aumento da renda salarial para determinadas pessoas pode significar, ao contrário, a percepção de direitos que antes não haviam sido vislumbrados. Ainda que possa ter acontecido elevação salarial para os jovens integrados ao mercado de trabalho, o dado mais significativo no que se refere à relação jovens e trabalho está relacionado com as altas taxas de desemprego juvenil (cerca de três vezes superior ao conjunto da população). Também está ligado à precarização crescente dos postos de trabalho disponíveis (trabalho informal, superexploração da mão-de-obra e ausência de proteção previdenciária), à expansão da escolarização fundamental pública sem qualidade e aos baixos níveis de escolarização média e superior entre os jovens brasileiros. Num país como o Brasil, com gritantes níveis de desigualdade social e elevadíssimas taxas de concentração de renda, não me parece possível falar em fim de demandas radicais e socialmente transformadoras. As contradições geradoras das “demandas radicais” persistem e deveria ser tarefa de toda a população, e não apenas “da juventude”, articular as saídas “socialmente transformadoras”.

IHU On-Line – Outra pesquisa da Fundação Getúlio Vargas aponta os jovens brasileiros como os mais esperançosos do mundo. A “estabilidade econômica” brasileira tem contribuído para elevar o sentimento de esperança entre a juventude? A que o senhor atribui esse resultado?

Paulo Carrano – É possível pensar, sem dúvida, que determinado grau de estabilidade ou instabilidade econômica influencie as expectativas das pessoas em relação ao futuro. Seria interessante buscar saber se há diferenciações significativas de “otimismos” entre as diferentes classes sociais, os níveis de escolarização, sexos e locais de moradia, por exemplo. No caso da comparação entre os jovens de diferentes países, seria interessante tentar perceber até que ponto haveria um “fator cultural” do otimismo nacional exercendo influência sobre o resultado da pesquisa.

IHU On-Line – Entre os principais sonhos da juventude, destacou-se, na pesquisa realizada pelo Datafolha, a busca por necessidades básicas como emprego, estudo e casa própria. Esses dados indicam que no lugar do jovem contestador, rebelde, engajado, surge um jovem preocupado com o consumo e sua realização pessoal?

Paulo Carrano – Não vejo por que deveríamos associar esta pauta por direitos (emprego, estudo e casa própria), que expressa a busca pela satisfação de necessidades sociais básicas ao consumismo ou individualismo. É possível aprender com a história que não são excludentes as perspectivas de realização pessoal e participação política. Rousseau [1] afirmou que a base da democracia deveria ser encontrada na combinação entre o cuidado de si e a consideração pelo outro. Concordo, com isso, que a busca deste equilíbrio é algo positivo para pessoas e coletividades.  

IHU On-Line – As opiniões sobre a atuação da juventude na sociedade são divergentes. Alguns apontam para uma juventude sem ideais, individualistas; outros dizem que eles são engajados, e buscam novas formas de sociabilidade e atuação social e política. Estará a juventude perdida, sem bandeiras?

Paulo Carrano – Volto a afirmar que não existe esta juventude genérica, seja ela “apática”, seja ela “revolucionária”. As pesquisas têm demonstrado que há uma diminuição real do envolvimento dos cidadãos de todas as idades no envolvimento coletivo pela resolução dos problemas públicos. Os problemas contemporâneos se caracterizam pela incerteza, a insegurança e a falta de garantias. Concordo com o pensador Zygmunt Bauman [2] quando este comenta que a própria natureza desses problemas constitui um poderoso impedimento aos remédios coletivos: “Pessoas que se sentem inseguras, preocupadas com o que lhes reserva o futuro e temendo pela própria incolumidade, não podem realmente assumir os riscos que a ação coletiva exige”. Os mais jovens também vivem esta situação e também o tempo histórico onde as grandes “narrativas” de transformação social se dissiparam ou perderam força social articuladora. As instituições consideradas eminentemente políticas perderam sua força de envolvimento, especialmente, pela ação de adultos que tornaram o “ofício da política profissional” algo pouco confiável.

Não tenho dúvidas que cada escândalo de corrupção envolvendo políticos joga mais água no moinho do desinteresse e descrédito dos jovens na política tradicional. Uma pesquisa da qual participamos (Juventude e Democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Ibase/Polis, 2005) apontou que é comum que os jovens desconfiem dos espaços de política tradicional, por não conhecerem as regras que pautam a organização das instituições políticas e por perceberem que os acessos aos postos de comando são pouco democratizados. Em linhas gerais, contudo, os jovens não têm se ausentado da esfera pública, mas  buscado, sim, novos espaços, formas e conteúdos de participação. As ações de jovens pela via da cultura e as novas mídias, com destaque para a internet, são exemplos disso. É possível afirmar, de acordo com diferentes pesquisas nacionais e internacionais, que o envolvimento dos jovens tem ocorrido mais em torno de causas e em espaços de maior autonomia de atuação do que em instituições, principalmente aquelas nas quais a escuta e a liberdade de ação para os jovens são limitadas.

IHU On-Line – Parece que o consumo virou a palavra de ordem da sociedade, e os jovens são participantes ativos dessa nova realidade. Esse novo contexto é reflexo da atitude dos jovens ou dos seus educadores? O jovem deixou de ser contestador e passou a ser um mero consumidor? Em que momento isso aconteceu?

Paulo Carrano – A sociedade de consumo é um “dado” do padrão capitalista de produção, consumo e acumulação da maioria das sociedades contemporâneas nas quais todos estão imersos. Os jovens são participantes desta realidade e também são objetos privilegiados de mercados consumidores. A realidade é, contudo, mais complexa e estudos têm demonstrado que mesmo no interior dos mercados é possível se instituir um padrão cidadão e contestador de comportamento. Sobre isso, eu recomendo a leitura do livro Consumidores e cidadãos, de Nestor Garcia Canclini [3]. Não acredito em relações de causa e efeito quando se trata de relacionamentos humanos. Desta forma, tanto jovens como educadores podem assumir atitudes críticas no trato com as mercadorias e os mercados consumidores. A escola pode e em algumas situações já está sendo espaço público importante para desmistificar as mensagens alienadoras de determinados mercadorias culturais e objetos de consumo.

IHU On-Line – Cristovam Buarque disse que, com o apartheid social que caracteriza o Brasil de hoje, a classe média sabe que seu padrão de vida e de consumo sairá perdendo. Partindo dessa teoria, pode-se dizer que o jovem brasileiro de classe média está acomodado e cada vez mais individualista?

Paulo Carrano – Não entendo assim. Se a consciência da perda é real para as classes médias, isso poderia, pelo contrário, desenvolver atitudes de contestação. Aliás, esta é tese da socióloga Marialice Foracchi [4], ao analisar a atitude contestadora dos estudantes das classes médias das décadas de 1960 e 1970, que teriam percebido que as promessas de realização de desenvolvimento não se realizaram. 

IHU On-Line – O senhor disse certa vez que “os jovens, que vivem angústias pessoais seríssimas na vida familiar e na vida profissional que se inicia, carregam o peso de dar respostas para muitas questões que toda a sociedade ainda não resolveu”. Partindo dessa teoria, podemos dizer que o sentimento de rebeldia da juventude se inverteu, no sentido de que por serem tão cobrados com o discurso de “o futuro está no jovem”, eles optaram por não participar das lutas sociais?

Paulo Carrano – A afirmação que fiz foi no sentido de criticar a tendência comum de se atribuir aos jovens às responsabilidades de resolução dos problemas sociais que, em grande medida, são frutos do passivo de realizações das gerações adultas. Não vejo correlação entre a afirmação e uma possível renúncia dos jovens em relação às lutas sociais. Aliás, é preciso dizer que os jovens não renunciaram às lutas sociais. Para perceber isso, basta olhar com cuidado para a composição dos movimentos sociais de diferentes conotações e interesses para perceber que a juventude ainda pulsa.

IHU On-Line – Nas campanhas eleitorais, muitos jovens se candidatam com o discurso da “renovação política”. O senhor acredita nesse potencial? Que jovem é esse que está engajado com os partidos políticos?

Paulo Carrano – Não acredito num potencial “natural” do jovem para a renovação política. Muitos jovens, por exemplo, são “herdeiros perfeitos” de antigas práticas de clientelismo e autoritarismo de famílias e clãs político-partidários. No plano eleitoral, a melhor avaliação ainda é feita a partir da análise de trajetórias pessoais, envolvimentos concretos com a coisa pública e a explicitação de programas de governo ou compromissos públicos com a futura ação legislativa, no caso de candidatos aos cargos executivos e legislativos, respectivamente.

IHU On-Line – A atuação política da juventude ainda é pequena, se comparada com a das décadas de 1960 e 1980? Podemos dizer que o jovem hoje busca novas formas de lutar por um mundo melhor, através do trabalho comunitário, voluntário, por exemplo?

Paulo Carrano – Temos poucos estudos comparativos que nos permitam afirmar com alguma precisão que os “jovens de hoje” participam mais ou menos que os jovens dessas décadas anteriores. O que há, sem dúvida, é um senso comum de que houve maior e melhor participação no passado por conta da ação de minorias mobilizadas – estudantes, por exemplo – que participaram e deixaram importantes legados para as novas gerações. De qualquer forma, sempre será um anacronismo comparar minorias mobilizadas do passado com as maiorias de hoje. O caminho da compreensão da ação coletiva dos jovens no presente passa pela atenção sobre as formas realmente existentes de participação e não pela comparação entre gerações.

Ainda que o trabalho comunitário e o voluntariado não sejam “invenções” contemporâneas, é possível perceber que eles são reais e responsáveis pelo envolvimento de muitos jovens. A citada pesquisa Ibase/Polis constatou que, além do impulso de solidariedade, os jovens encontram no trabalho voluntário, por um lado, uma perspectiva de se envolver em redes sociais capazes de lhes proporcionar aprendizagens e contatos para uma futura inserção profissional, e, por outro, não vêem essa atuação como uma substituição do trabalho de governos. Jovens envolvidos em ações de voluntariado esperam que o Estado faça a sua parte, ainda que não se furtem a contribuir com mudanças ao mesmo tempo em que perseguem oportunidades pessoais.

Notas:

[1] Jean-Jacques Rousseau é um filósofo suíço, escritor, teórico político e um compositor musical autodidata. As idéias políticas de Rousseau tiveram grande influência nas inspirações ideológicas da Revolução Francesa, onde as concepções liberais se difundiram e guiaram ideologicamente a Revolução. Segundo Rousseau, todos os homens nascem livres, e a liberdade faz parte da natureza do homem. Entretanto, se o homem nasceu livre, ao longo do processo histórico, a liberdade não se constitui mais o cerne desse processo, mas outra liberdade vem substituir a liberdade individual, ou seja, a liberdade civil. Sendo assim, segundo Rousseau, a única instituição que ainda se constitui natural é a da família, ou seja, os vínculos ,que se formam na família, se perpetuam enquanto há uma relação de dependência, cujas necessidades básicas, tais como a proteção,a alimentação, devam ser satisfeitas para a própria preservação do grupo humano.

[2] Zygmunt Bauman é um sociólogo polonês que iniciou sua carreira na Universidade de Varsóvia, onde teve artigos e livros censurados e em 1968 foi afastado. Logo em seguida emigrou da Polônia, reconstruindo sua carreira no Canadá, Estados Unidos e Austrália, até chegar à Grã-Bretanha, onde em 1971 se tornou professor titular da universidade de Leeds, cargo que ocupou por vinte anos. Atualmente, é professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia.

[3] Nestor Garcia Canclini é um professor de letras argentino que se doutorou em 1975 pela Universidade Nacional de Paris. Foi professor da Universidade de La Plata, na Argentina e na Universidade de Buenos Aires. Desde 1990, é professor e pesquisador da Universidade Nacional Autônoma do México onde coordena o Programa de Estudos sobre Cultura.

[4] Marialice Foracchi é uma importante socióloga da juventude.

Entrevista concedida ao Instituto Humanintas Unisinos em 29/09/2008.
Disponível também em:

http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=16747