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Livro - A criação da juventude

A juventude de hoje, segundo pesquisas recentes, está se transformando na geração “nem-nem”. Cada vez mais vulneráveis à devastação do mundo do trabalho, os jovens reduzem compromissos, flexibilizam desejos e rejeitam simultaneamente o estudo e o trabalho. Se este diagnóstico está correto, a juventude – esta condição transitória da vida – estaria deixando de ser o elo histórico entre o passado e o futuro das sociedades? Ou, ainda, estaríamos presos a uma essência da “condição juvenil” como portadora de utopias e projetos de transformação social? 
A resposta é difícil, porque exige não apenas abandonar aquele olhar nostálgico, que faz tudo datar da rebeldia dos anos 1960, e mergulhar na complexidade da história. A juventude não é uma essência, mas uma invenção cultural; a juventude não é, ela se faz.
Resultado de quase uma década de pesquisas, A Criação da Juventude, de Jon Savage (Rocco, 560 págs., R$ 84), é um livro importante, quase obrigatório para obter as respostas, porque não é apenas a história da criação da juventude enquanto território ou segmento provisoriamente segregado da sociedade, mas uma narrativa detalhada das projeções, anseios e imaginários forjados pelos jovens no perío-do inaugural do século XX. O leitor poderá deliciar-se ou comover-se com histórias inimagináveis e bem documentadas, mas também perder-se um pouco com os deslocamentos constantes de Savage, entre as realidades juvenis dos Estados Unidos (o foco irradiador) e os cenários ambíguos da Grã-Bretanha, da França e da Alemanha. O livro convence mais pela riqueza dos detalhes do que pelo argumento simplista de que a rebeldia e o comportamento teenager foram banalizados pelo marketing e pelo consumo de massa.
A narrativa começa com as histórias de Marie Bashkirtseff (1875) e Jesse Pomeroy (1887), dois adolescentes em plena belle époque. Romanticamente inspirados em Jean-Jacques Rousseau e J. W. Goethe, foram testemunhos precursores daquele novo estado intermediário, ainda não batizado, entre a infância e a idade adulta. E já anteciparam os dois polos dramáticos pelos quais os jovens oscilaram durante toda a história ocidental. Por um lado, tidos como gênios criadores, símbolos de esperança e futuro. De outro lado, vistos como um grupo instável e perigoso e, no limite, imenso berçário de monstros, gângsteres e destruidores de mundos. De qualquer maneira, os teen-agers não nasceram apenas de um espírito ianque hedonista e autoconfiante, mas de um contrato faustiano das multidões com a cultura do século XX. Neste contrato, é quase impossível distinguir o que foi mais decisivo, se a realidade ou os mitos, uma vez que estes últimos adquirem facilmente toda a força da realidade.
Na era da alfabetização em massa, Savage mostra como o produto ideal da escola pública foi o “cristão musculoso”, que combinava autodisciplina, bravura física e rigor religioso num novo tipo de masculinidade moral. Esse evangelismo, refinado por organizações recrutadoras como a Associação Cristã de Moços (1884), Exército de Salvação (1878), Boy’s Brigade (1883) ou o escotismo do coronel Baden-Powell (1907), acabaria, afinal, por carrear água para a maré do nacionalismo agressivo e do militarismo da Grande Guerra. 
Essa tendência disciplinadora, contudo, engendrou também o seu próprio veneno, como atesta, na mesma época, o aparecimento dos hooligans, designação criada pela imprensa londrina para nomear fortes distúrbios de rua em 1898, ou das gangues de “apaches”, que surgiram de grupos de jovens seminômades que viviam nos distritos insalubres de Paris. Também foi a primeira, mas não a última vez, que a mídia da época associou explicitamente maneiras de se vestir e de se comportar com a transgressão e a delinquência. Nem seria a primeira vez que a mídia metabolizava e ampliava as atividades de pequenos segmentos da juventude, forjando um clima generalizado de medo social.
“O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica”, escreveu Sigmund Freud em 1900. Poucos meses depois, saiu O Mágico de Oz, de L. Frank Baum (que virou best seller infantil do Natal daquele ano), e, quatro anos depois, Peter Pan, de J. M. Barrie. Não foi apenas uma coincidência de datas. Nas duas fábulas, cheias de aventuras excitantes, dificuldades inesperadas e fugas maravilhosas – mas também de trapaças, mutilações e medos difusos –, os sonhos não eram apenas fantasias aleatórias, mas pistas psíquicas daquilo que foi reprimido e recalcado pela sociedade moderna. Longe da inocência psicológica do século XIX, as duas fábulas eram discursos freudianos “adaptados aos jovens”. Para Savage, revelaram-se ainda documentos fundadores para a definição da juventude moderna.
Pode-se acompanhar não só as sucessivas adaptações teatrais e cinematográficas das duas fábulas, que arrastaram multidões em 1933 e 1939, mas também a história real, menos fabulosa, do objeto de inspiração de Barrie: Peter Llewelyn Davies, um órfão precoce que assistiu a sua geração inteira morrer na guerra. Depois, virou editor e deixou apenas um manuscrito melancólico, intitulado Morgue, um relato cheio de mortes prematuras, obsessões psíquicas e no qual dizia que “sua alma fora roubada”.
Velhos ideais juvenis de abnegação e transcendência foram substituídos por imprudentes desejos de autorrealização e gratificação imediatas. A sociedade de massas projetava novos desejos, mas também abria caminho para manifestação de imagens reprimidas, acabando por criar seus próprios monstros.
“Morrer será uma incrível aventura”, dizia o Peter Pan da fábula. No ano de 1933, a incrível aventura foi trilhada. Três milhões de jovens alemães ingressaram na Juventude Hitlerista. Claro que havia um forte sistema de coerção criado pelos nazistas, mas o convencimento por meio da mística vingativa da ação e do pertencimento mostrou-se muito mais persuasivo.
Num capítulo particularmente brilhante, Savage documenta o resultado mais trágico do proselitismo pugilista da Juventude Hitlerista: a morte de 10 mil jovens recrutas alemães (entre 16 e 18 anos) nas batalhas de Caen, em 1944. Mas já oferece ao leitor o contraponto, noutro capítulo precioso: a reconstituição da participação jovem em associações como Rosa Branca e outros núcleos de resistência à Europa nazista. De qualquer forma, seria difícil eliminar o imenso déficit geracional: “Somos a geração sem vínculos e sem profundidade. Nossa profundidade é o abismo. Somos a geração sem felicidade, sem lar, sem adeus. Nosso sol é estreito, nosso amor, cruel, e nossa juventude, sem juventude”, testemunhou um jovem alemão em 1945.
Ao instituírem a crença de que os deuses favoreciam quem morresse jovem, as guerras apenas modernizaram um certo romantismo juvenil. Ídolos do cinema ou da indústria do disco se prestavam a isso, galvanizando imagens de Peter Pan ou de Oz. Savage reconstitui com precisão muitos desses eventos definidores, alguns de uma inusitada atualidade. O funeral de Rodolfo Valentino, em agosto de 1926, ficou longe de um “showneral”, mas já mostrou o quanto a multidão juvenil enlouquecida juntava Eros com Tanatos: “Vinte mil adolescentes vestidos como jovens sheiks ou shebas e com os cabelos gomalinados, num tumulto de proporções inéditas e irrefreáveis”, na descrição de um repórter da época. Como qualquer outro produto industrial, ídolos também estavam sujeitos à lei da obsolescência planejada. No entanto, suas presenças luminosas ajudavam a reiterar ou inspirar novos arquétipos juvenis. De alguma forma, eles tentavam transformar o sistema à sua imagem e, ao fazer isso, forneciam alguma dose de esperança aos jovens.
“Adolf Hitler é um quadrado e tem o ouvido ruim. É excêntrico e um pouco amalucado. Ele pode chorar lágrimas de crocodilo, mas não dança swing.” Assim a revista Jitterburg, de 1938, definiu Adolf Hitler para os jovens americanos. A febre do swing, com os shows de Benny Goodman e sua orquestra atraindo plateias de milhares de jovens em março de 1937, marcaram os momentos nos quais o comportamento quase animalesco das multidões começou a ser ritualizado.
O swing fundia a inebriante espontaneidade do clássico estilo hot dos anos 1920 com a força dramática de uma grande orquestra. Mas, para os jovens, foi sobretudo uma música física, animada, extasiante, da qual se podia participar de forma quase espasmódica. O swing também introduziu todo um mundo adolescente, com a sua própria gíria, revistas, modas e heróis. Para Savage, o swing anunciava a maioridade dos teens, porque mostrou que havia todo um mundo juvenil, com força social suficiente para garantir seu próprio nome enquanto marca.
O desfecho veio com o início da temporada de Frank Sinatra no Paramount Theatre, em outubro de 1944. Às 4 da manhã filas já se formavam, com 3 mil garotas de meias soquete, gravatas borboleta e fotos do ídolo espetadas nos vestidos. Horas depois, 30 mil jovens frenéticas tomavam conta de Times Square. No mesmo ano foi lançada uma revista que juntava identidade nacional, cultura de pares e marketing juvenil num pacote irresistível: Seventeen. Tiragem inicial da revista: 700 mil exemplares.
Mas a sombra faustiana ainda se fazia visível em 1945, ano que marcou, simultaneamente, a cunhagem da palavra teenager e a explosão das bombas atômicas, que mudaram radicalmente a própria noção de futuro. As utopias políticas tiveram aí uma resolução trágica, pois impediram a juventude de assumir sua natural vocação de catalisadora das mudanças sociais. A narrativa de Savage termina em 1945, mas não a história da juventude, que exigiria, no mínimo, um segundo e alentado volume. Até mesmo porque os fantasmas da atual geração, apelidada de “nem-nem”, são outros. Se a juventude foi historicamente inventada, ela pode muito bem reinventar-se. E trilhar novos e insuspeitos caminhos de invenção política e social. 
Publicado originalmente em Carta Capital