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"Juventude": A dor como um processo necessário

Juventude é um filme temática e esteticamente ligado à chamada primeira fase do cinema de Ingmar Bergman. Em seu filme seguinte, Noites de Circo, o autor finalmente encontrará pela primeira vez a sua expressão autoral de cinema em caráter definitivo

Em seus filmes anteriores, da sua chamada primeira fase, Bergman ainda tenta encontrar um caminho autoral, mas esbarra na tradição dos melodramas do cinema nórdico. Nesses filmes, existem características que prenunciam o cinema que Bergman irá desenvolver a partir de Noites de Circo. Mas essas características aparecem apenas de forma esparsa, de forma assistemática. É a prova de um autor buscando caminhos próprios.

Nesse contexto, Juventude merece atenção especial, exatamente por ser o filme imediatamente anterior a Noites de Circo. Em sua própria temática, existem de forma esparsa várias personagens que Bergman irá retomar em alguns de seus grandes clássicos. A atriz famosa que apreende o vazio de sua existência, o lirismo da colheita de morangos silvestres num flashback, o jogo de xadrez com uma mulher que se diz imortal, entre outras, lembram o contexto de vários de seus filmes posteiores. Além disso, estão presentes a estrutura em flashbacks, o jogo de espelhos, a importância do close, a questão existencial e a perda da fé em Deus.

O drama da bailarina Marie, a sua percepção do pesadelo e da falta de sentido da sua vida, se inicia quando ela recebe o diário de Hendrik, mandado por seu tio Erland, conforme saberemos mais tarde. O envio do diário é na verdade uma expressão de vingança, já que a paixão do tio pela bailarina não é correspondida. O tio sabe que o diário fá-la-á sofrer. No instante em que a bailarina percebe que o caderno que recebera se trata na verdade do diário de Hendrik, seu antigo namorado, ela instantaneamente se relembra de todos os traumas de seu passado, e percebe que sua vida nos palcos foi na verdade uma grande fuga de problemas que ela ainda não conseguiu resolver consigo mesma. Por isso, ela se sente mal, e dificilmente conseguirá representar. Nesse instante cruel, nesse arrepio de vazio que sintetiza a essência do filme, a câmera se aproxima do rosto da bailarina e a enquadra em primeiríssimo plano. Essa é uma seqüência típica da posterior segunda fase do diretor.

Uma das características é o franco fatalismo do filme. Qunado a bailarina sai de seu camarim, pálida e ausente, ouvimos várias pessoas da equipe dizendo que sonharam ou que têm a sensação clara de que alguma coisa péssima acontecerá com o espetáculo. O curto-circuito na verdade salva Marie, porque ela terá tempo de fazer o seu necessário ajuste de contas com seu passado não assimilado. Mas de fato, a metáfora é clara: o palco fica às escuras, e nesse clima introspectivo, Marie se vê impossibilitada de fugir de seus problemas com a luz artificial da dança. Ela, então, sai do lugar de apresentações e faz uma viagem em busca de um sentido para os acontecimentos de seu passado. Uma viagem de auto-descoberta, onde ela volta ao local onde seu drama se iniciou. Daí o flashback se inicia...

Em Juventude, os locais vazios ganham uma importância fundamental, que espelham o estado psicológico da personagem. O início do filme nos situa exatamente neste clima, quando vemos cenários vazios (quase à moda de Ozu) que situam os arredores do teatro. Em filmes posteriores, igualmente introspectivos, Bergman também optou por início semelhante, como em Gritos e sussurros e The touch.

No flashback é que o filme se revela um melodrama, que culmina com a morte um pouco estranha do rapaz: ele mergulha num lugar cheio de pedras. O lento envolvimento do casal, a timidez do rapaz, a incomunicabilidade deste com sua "família", a paixão do tio pela moça, a divisão de Marie entre seu amor e a dança são apresentados de forma lenta, poética e sugestiva, anunciando a posterior tragédia. O melodrama tem momentos desiguais, mas ainda assim é o melhor melodrama da primeira fase do cinema de Bergman. O amplo domínio da narrativa, a exuberante fotografia de Fischer recobrem o filme de um lirismo simples e autêntico. O flashback é ainda muito bem mesclado. Marie volta ao local onde ela e Hendrik fizeram amor pela primeira vez e toca nos umbrais, com a luz do sol tocando levemente sua face. Em seguida, encontra Erland, amargurado e decadente. As cenas do lago também são memoráveis, especialmente a cena em que Marie sai de sua casa e se aproxima da ponte, onde encontra Hendrik.

Marie só conseguirá construir um futuro se conseguir resolver seus problemas internos do passado. Por isso, ela faz uma espécie de volta às origens, redescobrindo seu passado, voltando ao lugar onde todo o caso acontecera e revendo seu asqueroso tio Erland. Marie está cansada de fugir. Ele deve enfrentar seu passado, e não mais se esquivar dele através do trabalho, ou da dança. Talvez seja o que o próprio Bergman sinta em sua vida pessoal. Cansado de se esquivar nos melodramas superficiais, Bergman parece estar convencido de que é preciso enfrentar seus fantasmas interiores de forma mais direta, e não se esquivando deles. O resultado é o posterior Noites de Circo.

A habilidade narrativa de Bergman fica comprovada quando ele mistura a presença do passado e a possibilidade do futuro, representada através de dois homens. Ora, passado e futuro sempre estão interligados, porque a vida é contínua, e Marie só poderá construir um futuro se aprender a dialogar com o passado. Os primeiros contatos de Marie com o jornalista são frustrados, porque Marie ainda tem medo de se ferir novamente, e evita o contato com os homens. Mas ela sabe que o tempo passa, e ela tem medo de ficar sozinha. Ao mesmo tempo em que resolve seus traumas com o antigo Hendrik, Marie contempla a possibilidade de um futuro com o jornalista.

O diário, portanto, acabou tendo um resultado positivo para Marie. Sem dúvidas, foi-lhe penoso recordar os pesadelos do passado, mas apenas assim, enfrentando-os, Marie pode construir um futuro. O diário foi a chave de um processo de busca de uma nova identidade. Seu passado foi traumático, mas Marie pode conviver com isso, e partir para uma nova possibilidade, mesmo que seja pior que o mundo de antes. A tentativa desse novo esquilíbrio é com certeza melhor que fugir, para esquecer o equilíbrio de antes que é por definição insustentável. Quando Marie finalmente consegue dialogar com seu passado, encarar seus traumas com o mínimo de dignidade, Marie então está pronta a enfrentar um novo futuro, uma perspectiva que se abre indefinida pela frente. Bergman é no fundo neste filme um grande otimista, pois acredita que Marie finalmente conseguirá reconstruir a sua vida. A estréia do espetáculo agora para ela ganha um novo sentido: um novo espetáculo, um novo desafio, um novo dia...

Em vários de seus filmes posteriores, Bergman irá romper com essa possibilidade de um novo caminho, mas no fundo Bergman nunca achou que a vida é ruim. As dificuldades são apenas um processo necessário de uma busca de uma verdadeira identidade, e Juventude reflete à perfeição essa idéia.

***

Publicado originalmente em 28/08/99 - http://www.geocities.com/Hollywood/Agency/8041/juventud.html

Juventude, divino Tesouro

Ficha Técnica
Título Original: Sommarlek
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 72 minutos
Ano de Lançamento (Suécia): 1951
Estúdio: Svensk Filmindustri AB
Distribuição: Gaston Hakim International
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman e Herbert Grevenius
Produção: Allan Ekelund
Música: Erik Nordgren
Fotografia: Gunnar Fischer
Desenho de Produção: Nils Svenwall
Edição: Oscar Rosander

 Elenco
Maj-Britt Nilsson (Marie)
Birger Malmsten (Henrik)
Alf Kjellin (David Nyström)
Annalisa Ericson (Kaj)
Georg Funkquist (Tio Erland)
Stig Olin (Mestre de balé)
Mimi Pollak (Sra. Calwagen)
Renée Björling (Tia Elisabeth)
Gunnar Olsson (Padre)
Christopher Lee

 Sinopse
Marie (Maj-Britt Nilsson) é uma bailarina clássica não muito jovem que, ao encontrar um antigo diário, recorda um verão que passou com Erland (Georg Funkquist), um possessivo tio que vivia com sua cancerosa esposa (Renée Björling) numa ilha perto de Estocolmo. Lá Marie faz amizade com um inocente jovem, Henrik (Birger Malmsten), por quem ela logo se apaixona. Quando o verão está para terminar os jovens amantes estão muito envolvidos, mas algo trágico irá acontecer.

ficha técnica publicada em:

http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/juventude-divino-tesouro/juventude-divino-tesouro.asp