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A imagem do Rio nos livros didáticos

Como realidade cotidiana da cidade, o tráfico de drogas não deve jamais virar um tema tabu nas escolas e tem legitimidade para ser abordado nas aulas de geografia. O problema aqui é difundir imagens que estabeleçam uma relação direta entre favela e tráfico, sem problematizar como distintos espaços e seus protagonistas participam deste comércio mundial

Cesar Maia é um político que conhece o poder das imagens, e não por acaso conseguiu transformar o laranja da Comlurb em marca da prefeitura. Onde há laranja, há prefeitura, e esta associação iconográfica fica clara nas faixas existentes ao longo da Linha Vermelha: "agora a linha é laranja"! É assim que se busca evidenciar a presença do poder público, uma guerra das cores, uma guerra das imagens. Hoje há uma vertente do planejamento urbano que se preocupa quase que exclusivamente com o marketing das cidades, buscando destacar singularidades que qualificam os espaços no intuito de atrair investimentos.

Como professor de geografia da UERJ, me chamou muita atenção a polêmica criada em torno do livro didático "Geografia - Sociedade e Cotidiano", indicado recentemente pelo Ministério da Educação para a sexta séria das escolas públicas. No referido livro, ao discutir a formação territorial do Brasil, os autores mostram um mapa do Rio de Janeiro com as facções criminosas nas favelas da cidade, além de uma foto onde um policial entra fortemente armado no complexo de favelas do Alemão.

Claramente o que está em jogo é a imagem da cidade do Rio de Janeiro, e o poder que a geografia tem, a partir de imagens cartográficas ou fotográficas, de qualificar os espaços. Este foi o papel da geografia tradicional e regionalista e tem relação com a própria origem da palavra "geo-grafia", que enquanto descrição da terra buscou produzir discursos e relatos sobre as distintas regiões do mundo. Ao caracterizar um espaço sempre selecionamos alguns elementos a serem destacados e excluímos outros. O que incomodou o sindicato dos professores e o prefeito Cesar Maia foi justamente esta seleção, considerada "uma aberração para crianças de 12 anos".

O que deve ser destacado aqui não é a presença ou ausência deste conteúdo na sexta série e sim o poder que a geografia escolar tem na criação de um imaginário social sobre os espaços. Para minha surpresa, frente à polêmica criada, um dos autores prontamente justificou-se: "foi um mapa publicado no jornal", justificou-se, como que lavando as mãos e apontando o dedo acusatório para uma fonte que cada dia mais tem sido utilizada pelos professores de geografia, a imprensa. O conteúdo jornalístico é uma referência para o saber escolar. No entanto, é preciso refletir sobre sua forma de apropriação, que não pode ser feita sem mediações pelo professor, sob pena de reproduzir estereótipos já difundidos na sociedade.

Em minha dissertação de mestrado defendida na UFRJ, discuti exatamente a representação das drogas ilícitas na cartografia jornalística brasileira. Comparando mapas jornalísticos que representavam o tráfico de drogas na cidade desde a década de 1970, evidenciei que existem mudanças nas formas de perceber (e consequentemente de representar) este fenômeno. Os mapas da década de 1970 situavam o tráfico de drogas em ruas da cidade formal. O tráfico de cocaína, por exemplo, era representado em ruas de Copacabana, galerias e bares, sendo raramente associado às favelas. A estruturação do tráfico de drogas e seu impacto no imaginário social conduziram praticamente a uma ausência destas representações nas décadas seguintes, onde se observa uma associação freqüente entre tráfico e favela.

Ora, sabe-se que o tráfico continua a ocorrer nas ruas da cidade e que ele articula camadas distintas da sociedade. Além disso, os consumidores com maior poder aquisitivo tendem a circular nas áreas mais nobres e tem cada vez mais medo da violência das favelas, desenvolvendo outras estratégias para obtenção das drogas. Estas informações nos levam a crer que as drogas seguiram sendo comercializadas na chamada cidade formal, no entanto sua representação foi sendo suprimida de forma crescente.

Como realidade cotidiana da cidade, o tráfico de drogas não deve jamais virar um tema tabu nas escolas e tem legitimidade para ser abordado nas aulas de geografia. O problema aqui é difundir imagens que estabeleçam uma relação direta entre favela e tráfico, sem problematizar como distintos espaços e seus protagonistas participam deste comércio mundial. O problema não é "entregar um livro tratando do tráfico de drogas", como afirmou Cesar Maia, e sim a associação direta deste tráfico com as favelas, visão que tem estimulado grande parte de nossas políticas públicas que reprimem exclusivamente estes espaços.

Acima de tudo, o repúdio do prefeito é um reconhecimento do poder das imagens geográficas na criação de um imaginário social que qualifica os espaços. Para ele não tem problema que haja uma associação entre tráfico e favela, o problema é que estas favelas estão na cidade do Rio de Janeiro e esta tenta ser vendida como moderna, esportiva e laranja.

* André Reyes Novaes é professor do Departamento de Geografia da UERJ

Originalmente publicada em http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2007/07/06/296669214.asp, em  06/07/2007 às 18h58m