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Entrevista: A juventude e seus fantasmas

 Alexandre MoraesRosaly de Seixas Brito

por Walter Pinto / Dezembro e Janeiro de 2014
foto Alexandre Moraes

Professora da Faculdade de Comunicação da UFPA, jornalista, mestre em Comunicação e doutora em Ciências Sociais, Rosaly de Seixas Brito defendeu, em abril deste ano, a Tese “Diferentes, desiguais e conectados(?) Vivências juvenis, representações midiáticas e negociação de sentidos na cena metropolitana”, sob orientação da antropóloga Angélica Motta Maués. No relato abaixo, ela trata de alguns dos fantasmas que ronda a juventude da Região Metropolitana de Belém, entre os quais, a segregação racial, os novos arranjos familiares, o acesso ao ensino superior e os estereótipos na mídia.

Juventude e história

Tanto quanto a maneira de se conceber a família ou a infância, também a ideia de juventude é algo que vai se tecendo ao longo dos séculos e é determinada social e historicamente. A maneira como a pensamos hoje é radicalmente distinta, por exemplo, daquela que vigorou no período medieval. Em um famoso livro sobre a história social da criança e da família, o historiador francês Philippe Ariès, para citar uma fonte importante, formula a tese de que, até o século XVIII, as classificações por idade que hoje conhecemos não existiam de forma clara e as fronteiras entre as chamadas “idades da vida” estavam embaçadas. Além do mais, ao examinar os tratados pseudocientíficos do período medieval, que estabelecem faixas etárias bem distintas daquelas que hoje conhecemos, e a rica iconografia da época, o pesquisador concluiu que havia uma ausência do sentimento de infância e até mesmo de família, na Europa medieval. Somente no século XVI, por exemplo, é que a criança começou a aparecer na iconografia profana medieval. A socialização da criança, então, não era exclusividade da família e esta, por sua vez, não tinha uma função afetiva, como hoje, em relação aos filhos. No que se refere aos jovens, eles entram em cena ainda mais tardiamente e seu reconhecimento social como faixa etária distinta, mais precisamente demarcada, está ligado à emergência da época moderna. A generalização da escola, por exemplo, que se afirma como instância socializadora distinta da família nessa época, contribui para uma demarcação mais precisa das fronteiras etárias. Mas, embora os jovens e a juventude estivessem inscritos no imaginário ocidental, sobretudo pela literatura, pelo menos desde o século XVIII, é a partir do XIX que o jovem ganha status de um indivíduo reconhecido em sua singularidade no interior da família e na sociedade em geral. Para muitos autores, porém, a adolescência e a juventude, mais próximas da ideia que temos em torno delas hoje, são uma “invenção” do século XX, quando se delineiam e se difundem, em maior escala, imagens da juventude, especialmente pelo cinema e pelas mídias de massa de modo geral. E quando, efetivamente, esse segmento da população passa a ocupar a cena urbana e a ser visto, inclusive, como mercado de consumo muito promissor. Todos se lembram, para citar um exemplo bem conhecido, do famoso filme com James Dean, com o sugestivo nome, traduzido para o português, de “Juventude Transviada”, cujo título em inglês “Rebels without a cause” (rebeldes sem causa) era revelador de uma das imagens que se construíram em torno da juventude nos anos 1950. De outro lado, produz-se uma juventude bem ajustada às normas, em publicações como a Revista Capricho, brasileira, que surgiu na mesma década e alcançou tiragens recordes. São exemplos de uma farta produção discursiva para e sobre a juventude, não só na mídia como também em diferentes searas, que marcou o século XX e que faz-se intensamente presente hoje.

Faixa etária

Por esse mesmo raciocínio acima, as faixas etárias são estabelecidas socialmente e podem variar em diferentes sociedades. O ciclo vital e as fases em que ele se divide não são universais, variam de uma sociedade para outra, ou mesmo no interior de uma mesma sociedade. O que é comum a todas são os ritos de passagem entre elas. Diferentemente da visão do senso comum, portanto, a idade e a faixa etária não são fatos meramente biológicos, e sim estabelecidos social e culturalmente. Há, inclusive, imagens culturais que circulam – hoje, em especial, pelos meios de comunicação de massa -, como as que mencionei acima, que ajudam a produzir a ideia que se tem de infância, juventude e velhice em diferentes épocas. Desde os fundadores da Antropologia, tanto a idade como o sexo foram tomados como princípios universais da organização social. Mas, a despeito disso, estudos sobre a infância e a juventude são bem mais recentes, datam das primeiras décadas do século XX; antes, essas faixas etárias ocupavam um lugar mais periférico nos estudos da disciplina. A juventude ainda hoje é pouco tematizada na Antropologia brasileira, por exemplo. Outro aspecto importante sobre isso é que as idades devem ser vistas de maneira relacional, pois, como diz Pierre Bourdieu, “somos sempre o jovem ou o velho de alguém”. Parece óbvio que a infância e a juventude não sejam vividas da mesma maneira por crianças e jovens de diferentes classes sociais. Ou seja, quando falo de crianças e jovens, não devo tomá-los como uma unidade social, como grupos dotados de interesses e vivências necessariamente comuns, mas tentar fazer o que se chama nas ciências sociais de “desnaturalização” desses sujeitos, vê-los como pessoas “de carne e osso”, por meio da pesquisa, em suas nuances e especificidades. Outro aspecto importante a ser destacado, no caso da juventude, é que, para além de uma faixa etária definida, transformou-se em um valor cultivado pelas sociedades contemporâneas. Todos querem ser jovens, ainda que seja por meio de intervenções plásticas e práticas corporais as mais diversas. Há um culto à juventude. Disseminou-se um medo do envelhecimento, quase como se o ato de envelhecer passasse a significar um não pertencimento, numa lógica social em que tudo é feito para não durar e para ser substituído rapidamente, em que se cultua a novidade. Os efeitos subjetivos disso são terríveis. Pode-se dizer que estamos presenciando uma nova forma de embaçamento entre as fronteiras etárias e geracionais.

Diferenças sociais

São incontáveis as diferenças que separam jovens de distintas camadas sociais, tanto no espaço social e na sua vivência cotidiana concreta quanto na imagem que é projetada em torno deles na sociedade. À desigualdade econômica, flagrante e cruel, somam-se outros marcadores sociais da diferença, que são de várias ordens: étnico-raciais, de gênero, de acesso ou não ao mundo do consumo (para o qual todos são interpelados, indistintamente), educacionais; aquela que decorre da segregação espacial e social na cidade, pois muitos vivem em condições precárias de habitação, de serviços e equipamentos urbanos, nas franjas da metrópole, e são discriminados, por exemplo, pelo seu endereço, quando pleiteiam um emprego; o grau de exposição à violência tanto física quanto simbólica; os efeitos subjetivos de todas as formas de discriminação sofridas. É por isso que, nas pesquisas tanto sociológicas quanto antropológicas, se costuma pluralizar o termo juventude, para assinalar que não existe uma, mas várias juventudes em um mesmo espaço urbano.

Juventude e família

No que tange à família, é interessante observar, em primeiro lugar, que o grupo domésticofamiliar sofreu intensas transformações e redimensionamentos nas últimas décadas. Seja em vista do aumento sem precedentes do número de divórcios e separações dos casais, que leva à formação de novos arranjos familiares; seja em vista da elevação significativa do número de famílias chefiadas por mulheres, do declínio das taxas de fecundidade, da emergência de famílias homoafetivas, da proliferação das tecnologias reprodutivas e, uma tendência que vem se tornando importante do ponto de vista demográfico, do aumento das famílias chamadas single, compostas por uma única pessoa – hoje, elas já respondem por mais de 12% dos domicílios no Brasil, conforme o último censo. São inúmeros os fatores que contribuíram para disseminar a ideia de que a família está em crise. Esta percepção do senso comum, no entanto, não se sustenta às vezes quando você tem a possibilidade de olhar a questão mais de perto, por meio da pesquisa social. Neste particular, a pesquisa que fiz com jovens de Belém permitiu-me chegar a uma constatação importante: contrariando a ideia de instituição em crise, a família é um valor central na vida deles, é a sua referência e a sua âncora, também a razão de ser, muitas vezes, de alguns de seus projetos para o futuro. Por exemplo: jovens de baixa renda sonham em poder proporcionar um futuro de menos privação de ordem material para os pais, por isso, correm atrás de sua própria ascensão social, por meio da educação formal. Isso não quer dizer, porém, ausência de tensão, de conflito e padecimento no interior do grupo familiar. Ao contrário, como todos os agrupamentos humanos, a família é marcada por múltiplas tensões e ambivalências. Ao mesmo tempo que acolhe, também é fonte de sofrimento psíquico para o indivíduo, porque o faz padecer, por diversas razões. A dissolução do vínculo conjugal dos pais, por exemplo, muitas vezes, causa sofrimento quando os novos arranjos que surgem não são capazes de incluí-los satisfatoriamente. A violência doméstica também é outro fator crucial de sofrimento, tanto em sua face física (violência do pai contra a mãe e/ou contra os filhos) quanto simbólica (por exemplo, quando os pais ou o padrasto/madrasta os discriminam por qualquer razão em relação aos irmãos). Enfim, são inúmeros os casos em que a família é também fonte de padecimento. Não dá para idealizá-la e pensá-la como lugar somente de afetos, harmonia e acolhimento, como preconiza o modelo judaico-cristão, fortemente enraizado no imaginário social.

Educação e projeto de futuro

A primeira coisa a destacar é que, independentemente de sua origem social, todos os jovens que participaram da pesquisa reconhecem na educação formal, sobretudo de nível superior, o único caminho possível para livrá-los de uma exclusão ainda maior do que a que já sofrem, no caso dos que pertencem às camadas populares. Para os demais, também é indiscutível que a educação de nível superior é condição sine qua non para enfrentar o mercado de trabalho com um mínimo de chance. Portanto, avançar na educação é projeto de vida de todos. Desde o advento da época burguesa ou modernidade em que, como falei antes, os jovens passaram a ser reconhecidos como um segmento social distinto, a equação estudo versus trabalho sempre foi reveladora das formas perversas de estratificação social. Nas sociedades industriais, pensou-se a juventude como um período da vida em que, pelo mecanismo de uma “moratória social”, aos jovens das famílias de classe média ou das elites, era concedido o direito de ingressar tardiamente no mercado de trabalho, dedicando-se exclusivamente aos estudos até então. Enquanto isso, os jovens das classes populares, em geral, não gozavam dessa moratória, tendo que, na maior parte dos casos, ingressar desde cedo no mundo do trabalho. Trata-se de uma clivagem de classe, em que a uns é facultado dilatar o hiato entre a infância e a vida adulta e a outros, não. Em pleno século XXI, essa clivagem continua a se reproduzir intensamente. A pesquisa revelou que uma das principais linhas divisórias que colocam o jovem das camadas populares em franca desvantagem é a dificuldade de ascender ao ensino superior, em vista do gargalo do processo seletivo para ingressar na universidade e das lacunas de formação que trazem do ensino fundamental e médio. Isso não os faz desanimar, necessariamente, mas torna sua luta muito mais árdua para alcançar esse objetivo. Há casos de jovens participantes da pesquisa que recebiam meio salário mínimo e enfrentavam tripla jornada para concluir o ensino médio em escola pública, trabalhar à tarde e fazer o cursinho pago à noite, com bolsa negociada. Mas mesmo os jovens de classe média são assombrados pelo fantasma da dificuldade de inserção em um mercado de trabalho altamente competitivo. Este fantasma, aliás, ronda jovens do mundo todo e com fundamentos objetivos. A taxa de desemprego global de jovens é quase três vezes maior que a taxa mundial de desemprego adulto.

Geração digital

Creio que não há dúvida, culturalmente falando, de que a presença tecnológica ou as interações mediadas pelas tecnologias sejam uma marca da época contemporânea, que afeta a sociedade como um todo e, especialmente, os mais jovens, aos quais se atribuiu o rótulo de “geração digital”, “tecnológica” ou dos “nativos digitais”, ou seja, aqueles que já nasceram sob a égide da chamada revolução digital. Tanto é assim que, para efeito do púbico consumidor, se criaram divisões entre o que se convencionou chamar geração X, Y e Z, que abrangem desde os jovens nascidos ainda nos anos 1980, que, na década seguinte, quando se deu a massificação da internet, ingressaram no mundo digital, até os que nasceram no início dos anos 1990 e já cresceram em um ambiente que, desde então, ficou mais e mais saturado de dispositivos tecnológicos da era digital. Os jovens são pensados e representados hoje por essa ideia da conexão e de pessoas que vivem com o pé mais na realidade virtual do que na presencial. Mas é claro que essa é mais uma, entre tantas outras questões, que precisa ser relativizada e vista em seus matizes. Nenhum dos jovens participantes da pesquisa nega que o mundo digital constitua uma parte importante de suas interações, mas, evidentemente, ela não é exclusiva nem substitui as outras formas de vínculo e de interações. Entre eles, há aqueles que têm total preferência pelos contatos presenciais, como também, em sua maioria, os que interagem cumulativamente nesses níveis de “realidade”. Dediquei uma parte específica do trabalho para discutir isso. Sem dúvida, a web é uma forma de pertencimento muito importante para os jovens que dialogaram comigo na pesquisa, Não existem fronteiras claras entre a vida on-line e a off-line para a maioria, são dois âmbitos que se interpenetram nesta época em que imperam as mídias móveis. Com a proliferação das redes sociais, novas formas de narratividade surgiram, sobretudo biográficas, que implicam certos artifícios e performatividade das imagens de si que são projetadas. Outra coisa importante: diferentemente do que se pode pensar à primeira vista, há um cálculo que permite separar o que pode ser mostrado da vida de cada um e o que não pode, pois há um âmbito da intimidade que permanece indevassável. Também é fato que o acesso à tecnologia é diferenciado entre eles. Sabemos que o advento dos smartphones generalizou mais o acesso, mas cerca de um terço dos jovens que participaram da pesquisa não tinham computador doméstico com acesso à internet. Com uma única exceção, todos mantêm perfis em redes sociais, alguns têm seus próprios blogs.

Representações do jovem na mídia

Como eu digo na tese, o jovem é um dos outros da mídia e essa relação de alteridade foi sempre marcada por assimetrias, representações estereotipadas, que não condizem com os jovens da chamada “vida real”. Tanto reproduzem e amplificam estigmas presentes na vida social como também desautorizam, até certo ponto, a fala dos próprios jovens, negando-lhes, portanto, a condição de sujeitos. De modo geral, a mídia reitera a ideia de que os jovens não podem falar por si mesmos. Lembro, por exemplo, uma edição especial da Revista Veja dedicada aos jovens, analisada no meu trabalho. Dos 23 temas relativos ao mundo juvenil tratados na edição, a esmagadora maioria deles era desenvolvida a partir da fala de 35 especialistas de diferentes áreas, e os jovens foram ouvidos muito pouco, o que já é um dado muito problemático por si só. Já em uma amostra de 408 textos analisados dos dois principais jornais locais, em quase 90% deles, os jovens aparecem como vítimas ou como praticantes de atos violentos, especialmente nas páginas policiais dos jornais. Os jovens das páginas policiais são pobres, moram nas áreas periféricas da cidade e, quase sempre, são negros. A juventude branca, de classe média ou mesmo das elites, ganha espaços mais valorizados na imprensa local, como os suplementos dominicais, geralmente associada a assuntos fúteis. Se a gente levar em conta que a mídia é uma esfera hegemônica, hoje, de construção das representações que circulam na sociedade, evidentemente que é muito grave a reprodução de estigmas em torno da juventude, como os que associam a pobreza à criminalidade, para citar um dos mais evidentes que encontrei na imprensa local. Os dados revelam    uma dimensão ética que se perdeu, com consequências muito sérias, nas maneiras de representar diferentes segmentos sociais e diferentes realidades por eles vividas. A maneira como essas imagens impactam a subjetividade das pessoas envolvidas é algo que sequer se pode dimensionar.

Fonte: Beira do Rio - Jornal da Universidade Federal do Pará. Ano XXIX Nº 122. Dezembro e Janeiro de 2014