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Desigualdade numa escola em mudança

Mônica Peregrino, pesquisadora do Observatório Jovem e professora da UERJ, concedeu entrevista sobre sua tese de doutorado que trata da relação entre jovens pobres e a escola pública

A tese "Desigualdade numa escola em mudança: trajetórias e embates na escolarização pública de jovens pobres" foi defendida em março de 2006, no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF.

Observatório Jovem (OJ)   -   Em linhas gerais, qual o objeto de sua tese?

Mônica Peregrino (MP) - O objeto da tese é analisar a relação entre os jovens pobres e a escola pública fundamental. É uma investigação sobre essa relação conflituosa, porém cada vez mais duradoura, entre esses dois sujeitos, da década de 70 para cá, com especial atenção aos dias de hoje.

OJ - Quais as principais características da escola investigada e do bairro em que ela se encontra no Rio de Janeiro?

MP – É uma escola municipal que data da primeira metade do século XX, antiga escola primária que na década de 60 teve parte de seu terreno usado para a construção de um ginásio estadual, depois anexado ao conjunto da escola, formando o que na década de 70, depois da reforma, passou a se chamar escola de primeiro grau, de primeira a oitava série. Apesar de integrados administrativamente, os dois prédios possuem estilos e propostas de ocupação bastante distintos. De certa maneira, o prédio do ginásio funciona, ainda hoje, como um apêndice, feio e deselegante, "quebrando" a beleza da construção original. A meu ver, esse "descompasso" é um interessante testemunho dessa escolarização, frágil e precária, destinada aos jovens pobres, cuja entrada em massa na escola inicia-se exatamente no período de construção do ginásio, na escola que foi objeto da pesquisa. O descompasso entre os prédios é a concretização física, arquitetônica, visível, desse caráter clandestino que a escolarização dos pobres, em especial dos jovens, tem ainda hoje na escola.

Quanto ao bairro onde a escola fica situada, ele desempenha papel fundamental. Desde o início sempre soube que gostaria de entender as desigualdades que marcam os processos de escolarização. Neste sentido, a posição peculiar que o bairro ocupa na cidade foi fundamental. A escola fica situada num bairro de classe média da cidade que é especialmente cercado por favelas. Os movimentos de reconfiguração da cidade, aliados à recente penetração do tráfico e comercialização de drogas na cidade – em especial nas favelas – fez com que esse, que já foi um dos mais "seletos" bairros da cidade, experimentasse, de tempos para cá, uma decadência que encontra particular expressão nas relações entre as classes, e em especial entre favelados e não-favelados. Essa relaçãoentre as classes, quase caricata, se expressa nesta escola.

OJ – Em seu trabalho você afirma que houve uma expansão degradada da escola pública e, em verdade, no lugar de universalização do direito à Educação teríamos, hoje, a escola como gestora da pobreza. De que maneira isso foi constatado na escola investigada?

MP – Na verdade, essa era a minha hipótese antes da tese (a da expansão degradada). Na tese não uso essa expressão. A tese se refere à forma como se deu essa expansão. Ela é um estudo da maneira como a escola "incorporou" ou passou a ser "habitada" pelos pobres, mesmo sem incorporá-los. Nela uso as expressões "crise", "desinstitucionalização", "desenraizamento", "modos de escolarização", "repactuação de legitimidades"... Talvez expansão precária. Degradada, não. Quanto à escola como espaço de gestão da pobreza, sim, eu incorporo a idéia, mas ela não é minha. Ela está na tese de Eveline Algebaile "Escola pública e pobreza: expansão da escola dos pobres no Brasil", defendida na UFF em 2004. Na tese ela afirma que a escola se expandiu, não só em número de alunos e na "cobertura" das classes, mas também em suas funções, passando a incorporar mecanismos ligados à gestão da pobreza, com prejuízo das funções "clássicas" da instituição escolar. Já a minha tese busca apreender o impacto causado por essa expansão nos processos de escolarização, com especial foco nas desigualdades novas e antigas que marcam tais processos. Na verdade a minha tese mostra como a escolarização dos pobres se realiza como o inverso da utopia que marcava a luta dos movimentos sociais por escola: universalização não do "saber escolar", mas de sua escassez, no interior da própria escola.

OJ – Seu estudo mostrou que, na escola investigada, durante a década de 90, os alunos residentes nos morros e favelas próximos à escola ocupam os bancos escolares mas não as posições sociais deixadas pelos alunos de classe média que historicamente ocuparam a instituição investigada. Como se deu este processo?

MP – O que eu constato na pesquisa é que a expansão da escola e sua universalização significou, na verdade, a circunscrição da escola pública de primeiro grau (hoje ensino fundamental) aos pobres. As classes populares não entraram na escola e passaram a habitar essa instituição junto com outros grupos sociais. Ao contrário, quando a escola pública começa a ficar "plena" de pobres a classe média sai da escola ou passa a ocupá-la temporariamente. É importante ressaltar que o Rio de Janeiro tem determinadas características especiais quanto à distribuição das classes pelos sistemas público e privado de ensino. Em 1983, por exemplo, enquanto nos demais estados da  região sudeste a escola pública de primeiro grau respondia por 90% das matrículas neste nível de ensino, no Rio de Janeiro a "cobertura estatal" realizava-se em apenas 65% delas. Isso mostra, por um lado, que a desigualdade entre as classes, em especial nesta cidade, é, há muito, marcada por circuitos diversos no que se refere à escolarização de grupos sociais desigualmente posicionados. Por outro lado nos mostra que nesta cidade, onde a pobreza e sua paisagem – a favela – encontram-se encravadas na cidade, recortando os espaços territoriais destinados aos cidadãos do "asfalto", as instituições, incluindo a escola, são elementos fundamentais na distinção entre as classes.

Fiz esse parênteses enorme e retomo agora para dizer que, se a escola se circunscreveu aos pobres, ela não perdeu seu caráter seletivo. A seletividade esteve presente na década de 70, de 80, de 90, e está presente ainda nos dias de hoje. Mas as formas de seleção, os sujeitos selecionados e os objetivos da seleção, esses mudaram. Na verdade, quando o perfil da população da escola pública começa a mudar na década de 80, a seletividade aumenta e tornam-se dramáticos os efeitos dessa equação: evasão, repetência e fracasso escolar são nossos conhecidos. A princípio, portanto, a escola que inicia sua circunscrição aos grupos sociais de inserção mais precária, incorpora precariamente esses grupos para imediatamente eliminá-los. A escola da década de 90 mantém um perfil em tudo semelhante ao da década de 80, no que se refere ao tipo de população atendida, mas atenua os mecanismos de seleção assim como os seus efeitos. Atenua mas não os elimina. A seletividade na década de 90, quando vão sendo consolidados os mecanismos de circunscrição da escola aos pobres, ainda é muito maior do que na década de 70, quando a maior parte da população escolar no segundo segmento do ensino fundamental ainda pertencia à classe média. O fato é que mudanças na estrutura e na função das escolas públicas da década de 90 para cá, dentre elas a atenuação dos mecanismos seletivos, fizeram com que os antes considerados "fracassados" do sistema público de ensino se mantivessem na escola, criando-se, dentro das instituições públicas de ensino, padrões, modos, processos, não só diversos como principalmente DESIGUAIS de escolarização. Não se eliminou o fracasso, o que se fez foi incorporá-lo à escola, permitindo, dentro da instituição, a criação de modos desiguais de estar nela. A escola não eliminou os processos pelos quais marginalizava seus jovens alunos. Ela apenas expandiu sua fronteira, passando a manter a "margem" no seu interior. Mantendo-a como margem.

OJ – É possível afirmar que esteja em curso um “ardil” da certificação, considerando que em muitas escolas a aprendizagem é algo secundário e que os certificados são cada vez mais desvalorizados no mundo profissional?

MP – Acho importante fazer uma distinção: os certificados são fundamentais na conquista de empregos, mesmo alguns bastante precários. Mas eles não configuram qualquer garantia de penetração sólida no mundo do trabalho. Acho que vivemos um tempo trágico para os jovens de maneira geral e em especial para os das classes populares, em que se a escola e os certificados que ela fornece - direta ou indiretamente - não garantem formas dignas de inserção social, a ausência de escolarização, é garantia de precariedade no futuro.

OJ – A leitura de sua tese evidencia que o modo como a instituição escolar articula a composição das turmas cria um tipo de exclusão intra-institucional que encontra correspondência na divisão por classes sociais, categorias profissionais e local de moradia das famílias dos alunos. Como isso funciona a partir daquilo que você denominou de alunos “extremos” e “não extremos”?

MP – Se eu queria perceber as desigualdades na escola assim como suas "mutações" no período dos quase 40 anos percorridos pela pesquisa, e mais, se eu queria entender de que forma os mecanismos seletivos agiam sobre os grupos sociais na escola, a primeira coisa que eu tinha que fazer era distinguir "os desiguais" na escola, em cada um dos períodos estudados. Isso foi feito a partir de dois critérios nos cortes estudados (anos de 1973, 1974, 1975 e 1976 para a década de 70; 1984, 1985, 1986 e 1987 para a década de 80 e 1995, 1996, 1997 e 1998 para a década de 90): profissão declarada pelos pais nos períodos de matrícula e local de moradia (na década de 70 também foram considerados os atestados de pobreza). Desta forma consegui distinguir os "desiguais sociais" no universo de alunos da escola. Com a divisão clássica entre trabalho manual e trabalho intelectual - mas incorporando à análise os matizes que encontrei no espectro mais amplo da classificação – assim como da divisão entre moradia em favela e moradia no "asfalto –  aqui também incorporando as complexidades trazidas pelas diferenças que marcam as favelas da região, assim como as diferenças demarcadas pelas desiguais regiões de uma mesma favela – foi possível "classificar" o universo de alunos estudados em cada década, de maneira que eram considerados "extremos" aqueles alunos que condensavam as condições de vida mais precárias e como "não-extremos" aqueles que expressavam condições menos precárias.

A partir daí, foi possível "perseguir" as trajetórias desses sujeitos, percebendo as características específicas de seus processos de escolarização em cada uma das décadas. Como as reprovações e evasões agiam sobre os grupos sociais na escola? Que turmas freqüentavam? Que turnos ocupavam?

Com essa operação consegui constatar, não apenas o óbvio (a ação seletiva dos critérios do julgamento escolar, reproduzindo, através da escola, o posicionamento subordinado dos "extremos") , mas principalmente, as maneiras e as formas de ação da seletividade escolar sobre cada um dos grupos nas décadas que marcam a pesquisa. Foi possível produzir ainda um mapa dinâmico da desigualdade numa instituição em mudança.

OJ – O que significa a categoria “alunos terminais” cunhada em sua tese?

MP – Não é uma categoria. Também não foi cunhada na tese. Na verdade, eu utilizo a expressão numa nota, explicando que essa era a forma com que eu, quando professora do segundo segmento do ensino fundamental em escolas públicas, "classificava" superficialmente aquelas turmas que acumulavam todas as qualidades "negativas", tomando como referência os critérios escolares: as turmas de pior rendimento das escolas, e aquelas que condensavam os alunos mais velhos, com condições de vida mais precária, com histórias pregressas plenas de reprovações e abandonos da escola. Eram as turmas que "ficavam pelo caminho". Que não tinham seqüência, nem mesmo no ordenamento das turmas das escolas.

Mas a tese não se debruça sobre as "turmas terminais". Ela explica os processos que produzem o fenômeno da "terminalidade" das turmas e turnos na escola, nos desiguais processos de escolarização que foram tomando corpo na escola pública desde a década de 70.

OJ – A partir da observação e análise das práticas dos alunos num espaço particular da escola – o corredor – você conseguiu observar práticas significativas dos alunos que expressaram simultaneamente a busca pela conquista do tempo livre por parte dos alunos e os mecanismos de contenção destes pela instituição e seus agentes. Em que medida isso se associa a seu objeto central de investigação?

MP – Para responder a essa pergunta vou precisar fazer uma longa introdução. A educação republicana, essa “invenção da modernidade”, move-se sobre um paradoxo: promete educação como direito, como “bem social” a ser universalizado, mas trata-a como privilégio de fatias (às vezes mais amplas, às vezes mais restritas do todo social), porque nas sociedades capitalistas a lógica dos sistemas educacionais fundamenta-se na distribuição desigual do capital simbólico que a escola detém. Modificar essa equação, no marco das sociedades capitalistas ocidentais,significa, sempre, transformar a instituição. A expansão da escola significa sempre, portanto, a transformação das relações em seu interior.

A expansão da escola no Brasil, trazendo para o interior da instituição parcelas crescentes das classes populares, tem implicado na modificação paulatina da dinâmica institucional nas escolas que de décadas para cá vêm circunscrevendo seu âmbito de ação às fatias de inserção mais precária na dinâmica social. Na pesquisa ficou claro que a escola expande-se “desinstitucionalizando-se”, perdendo as características propriamente “escolares”, e abarcando funções cada vez mais coladas às formas tradicionais de regulação dos pobres na sociedade brasileira.

Entendo ser esta a maneira peculiar com que a escola, no Brasil, realiza aquilo que demarca a forma particular de relação entre os pobres e o Estado neste país: a recusa de sua incorporação plena à sociedade brasileira, através da “invenção” de formas (de grau e intensidade variados) de integração subalterna, mais ou menos à margem das instituições estatais. A mim parece que a “novidade” do fenômeno relaciona-se com o fato de que as “margens do Estado” são mantidas, hoje, no interior do aparelho estatal. A escola que se expande também se desinstitucionaliza. Na incorporação dos jovens pobres à escola, a escola torna-se “menos escola”.

A circunscrição da escola aos pobres não altera a instituição de maneira homogênea. Nem todas as dimensões institucionais entraram de maneira idêntica, em processo de fragilização. A escola continuou sendo uma instituição seletiva e, em algumas circunstâncias, podemos dizer que radicalizou essa dimensão. A seletividade escolar, em todas as décadas percorridas pela análise, manteve-se vigorosa, e direcionou sua ação, em todos os anos de levantamento realizados nesta pesquisa, para as camadas mais vulneráveis nos âmbitos econômico e social, dentro do universo de usuários da escola.

Por outro lado, e essa é uma questão fundamental, a forma como se dá a “expansão” da escola delimita  e circunscreve  os elementos que passarão a fazer parte  das lutas pela realização efetiva da escola como um direito. É aqui que começo efetivamente a responder esta pergunta. Exatamente neste momento que abordamos a escola como um lugar de luta pela realização de um direito. A escola não é apenas instituição que legitima a reprodução das relações sociais de produção. Ela é também objetivo e meio de luta por direitos. Desta forma ela é espaço de contradições e embates, que nem sempre tomam de imediato as formas "clássicas" das disputas políticas.

Para entender a expansão da escola ao mesmo tempo como processo de reprodução das relações sociais de produção e como movimento de luta por direitos reiteradamente negados, realizei o recorte da pesquisa a partir de dois âmbitos. Por um lado, apreendendo a escola a partir dos processos de escolarização dos jovens que nela habitam. É a partir dos percursos dos jovens na escola que as formas de desigualdade presentes em tempos passados e presentes são analisados. Circunscrevendo toda a primeira parte da tese, os percursos nos permitem perceber os impasses e contradições dos processos educativos, não diretamente pelo ponto de vista expresso pelo jovem, aluno da escola, mas pela tentativa de recriação de parte fundamental de sua experiência de escolarização, expressos naquilo que chamo, durante o trabalho, de modos de escolarização. Em outras palavras, busco perceber os impasses e possibilidades inscritos na escolarização dos jovens pobres a partir da recriação das trajetórias percorridas por eles na escola, fundamentalmente a partir das desigualdades que marcam esses percursos.

Por outro lado, a partir da primeira abordagem, uma outra se fez necessária. Nela busquei entender as relações entre os alunos, jovens pobres que habitam uma escola pública em especial, e a instituição escolar. Mas faço isso levando em consideração que esses jovens ocupam um espaço delimitado, neste caso, não só por sua posição na sociedade e na cidade, mas também por sua posição na escola. É desta forma que tento entender as formas de regulação da escola, seus limites e possibilidades, a partir da observação de um espaço em particular: o corredor do ginásio da escola.