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Das cores do silêncio

As atuais propostas de leis de ação afirmativa visam transformar o quadro de desigualdade racial que a ética do silêncio, construída no contexto da sociedade escravista, não conseguiu reverter

Em 1851, o Império do Brasil aprovou a implantação de um registro civil e a realização de um recenseamento geral, no qual a cor da população livre deveria ser declarada. Cerca de metade dessa população era classificada como parda em estimativas populacionais do final do período colonial. O regulamento ganhou a alcunha de Lei do Cativeiro e resultou em uma revolta popular que acabou por fazer o Estado Imperial desistir da medida. A população livre rejeitava os marcadores raciais que a aproximavam da escravidão.

Desde esta época, desenvolveu-se uma verdadeira ética do silêncio em relação à cor dos brasileiros, sempre que em situações formais de igualdade. Nos documentos do período, porém, os escravos sempre tinham cor. Assim, apesar da ética do silêncio, os afrodescendentes livres eram confrontados com sua cor, toda vez que se afastavam de suas redes de relações pessoais. 

Em 1823, Antônio Rebouças, filho de liberta,herói da Independência, quase foi impedido de chegar ao Rio de Janeiro. Para seguir em frente, teve que fazer prova de seus conhecimentos jurídicos e dos acontecimentos ligados à independência da Bahia. Para ele, a única raça existente era a raça humana e, por isso, defendeu, nos termos da época, a presença da população afrodescendente nos conselhos da monarquia, em nome da união nacional. Não foi ouvido. Seu filho, o engenheiro abolicionista André Rebouças, compartilhava a mesma convicção anti-racista. Considerava a reforma agrária um complemento essencial do processo de abolição. Ela não veio. Desiludido com a República, acompanhou o imperador no exílio e foi depois buscar suas raízes na África. Morreu com o coração africano.

A raça/cor como estigma e identidade ligados à memória da escravidão precede, no Brasil, o discurso científico sobre as raças. Sem questionar o estigma, uma ética do silêncio tentava incluir todos que conseguiam entrar no círculo dos cidadãos de bem e de bens. As políticas públicas a partir de 1870 se esforçariam por manter este círculo predominantemente branco. Uma criança negra que chegasse aos bancos escolares em 1950 ainda seria obrigada a ler nos manuais de História que o brasileiro era um povo de aparência predominantemente branca, fruto da feliz mistura de três raças.

As pressões dos movimentos negros, desde a década de 1970, começaram a quebrar a ética do silêncio construída no contexto da sociedade escravista. As atuais propostas de leis de ação afirmativa visam transformar o quadro de desigualdade racial que o silêncio não conseguiu reverter. Não nasceram de cima para baixo. Ao contrário, revelam a presença de novos atores no processo político, um dos melhores frutos da democratização da sociedade brasileira desde a aprovação da Constituição de 1988. 

Não consigo visualizar os riscos alardeados pelos críticos das medidas já em vigor ou ainda em discussão. Os efeitos positivos da aprovação da lei que tornou obrigatório o ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira são evidentes na riqueza e pluralidade das iniciativas com ela relacionadas. A polêmica sobre a qualidade dos alunos ingressos nas universidades pelo sistema de cotas parece-me equivocada. O essencial para garantir a qualidade acadêmica do acesso às universidades públicas é a formulação de critérios e notas de corte mínimos. Há muitos aspectos a serem discutidos no estatuto da igualdade racial, mas o perigo de aprisionamento dos cidadãos em categorias raciais fixas criadas pelo Estado me parece bastante atenuado com o recurso à autodeclaração. Que implica, inclusive, o direito de não-identificação.

 Todos já ouvimos falar da famosa pesquisa em que cerca de 97% dos entrevistados afirmaram não serem racistas, mas, ao mesmo tempo, disseram conhecer alguém que o era. Ao contrário de muitos dos meus colegas historiadores, a mim, a História sugere que falar da raça/cor de cada um, pensar junto como estas categorias foram construídas, enfrentando tensões antes silenciadas, é o caminho certo para construir uma sociedade melhor para todos, porque mais justa e menos marcada por tensões raciais. 

HEBE MATTOS é professora titular de História do
Brasil da Universidade Federal Fluminense.

Publicado em 06/07/06 no jornal O Globo