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"A Cena Carioca com Muito Charme"

O pesquisador do Observatorio Jovem Carlos Henrique Martins fala sobre a dissertação de mestrado Os Bailes de Charme como Espaços de Lazer e Sociabilidades na Cidade do Rio de Janeiro

Por Karine Mueller e Raquel Júnia

Para a dissertação de mestrado concluída em 2004 o pesquisador do Observatório Jovem Carlos Henrique Martins foi a 102 bailes Charme na cidade do Rio de Janeiro. Mas o namoro com o “Movimento Cultural” é mais antigo, Carlos é “charmeiro” há 20 anos. Na entrevista ao Observatório Jovem, o pesquisador fala sobre a relação da juventude com o Charme e também sobre como esse movimento  permance distante de uma cultura do consumo.

Observatório Jovem (OJ) - Como é a participação dos jovens nos bailes Charme?

Carlos Henrique (CH) - Eu freqüentei os bailes Charme durante muitos anos e não via os jovens. Mas eu percebia isso com um olhar de freqüentador, sem a preocupação de um pesquisador. Esse fato começou a me chamar atenção porque o Charme existe há 25, 26 anos, e se não houvesse a presença do jovem, o movimento teria acabado ou, pelo menos, reduzido a freqüência dos bailes. Pensei que deveria haver uma forma de renovação e que esta passasse pela juventude. Então comecei a observar que o Charme se caracterizava como um movimento de adultos. As músicas são, em sua maioria, da década de 80 e 90 e hoje tem um movimento forte ligado à New Jack e outras expressões de Black Music, como eles chamam, e também ao Hip Hop. Mas era preciso ter a presença dos jovens! A partir daí comecei a andar pelos bailes já com um outro olhar e a identificá-los. Eles não estão em maioria, mas estão presentes em um número considerável. Geralmente são levados por pessoas da família ou então por pessoas mais velhas, ou ainda pela própria musicalidade do Charme, que faz com que esses jovens procurem descobrir onde toca aquele tipo de música com a qual eles se identificaram na relação intergeracional na família. Na pesquisa trabalhei com alguns jovens – quatro rapazes e dois grupos de dança – um masculino e um feminino. Encontrei esses grupos de dança em um Charme de Rua, em Padre Miguel. 
 
OJ - Qual era a idade desses jovens?

CH - Nesses grupos de dança os meninos tinham entre 15 e 24 anos e as meninas entre 13 e 21 anos.

OJ - Como eles se envolveram com o Charme?

CH - A maioria se envolveu por meio da família, embora hoje eles estejam cunhando um outro movimento musical que de certa forma hibridiza o Charme e o Hip Hop. Eles chamam de Dança de Rua e fazem questão de diferenciar do Street Dance. A Dança de Rua seria uma junção de diversas formas de dançar, com aspectos do Jazz, do Ballet Moderno e do próprio Street Dance. No movimento cultural do Charme há várias subdivisões musicais. O Flash Back são as músicas dos anos 80, o Mid Back as músicas do final dos anos 80 e nos anos 90 surgem o Slow Jam e o New Jack, dentre outras nomenclaturas. Os jovens estão mais voltados para o New Jack e o Hip Hop. Eu cunhei um nome para entender melhor o envolvimento dos jovens – o New Charme. Isso é algo que as pessoas se incomodam em enxergar. Nos bailes, hoje é perceptível, tanto nos de adultos, quanto nos de jovens, a música com a base musical toda do Charme e a linguagem do Hip Hop e o contrário também, a base do Hip Hop e o cantar mais melódico do Charme.

 OJ - No início do Charme não havia essa mistura?

CH - Não existia essa palavra para identificar um movimento cultural pontuado, principalmente, pela música e pela dança. Quem cunhou essa palavra foi o DJ Corello, em março de 1980. Na década de 60, o movimento negro nos Estados Unidos começou a ter uma força muito grande pelo reconhecimento dos direitos civis. Não que isso comece em 60, sabemos que a resistência dos negros dos Estados Unidos é bem anterior. Mas em 60, a música começa a entrar de forma muito contundente nessa causa. Diversos movimentos musicais são lançados e se espalham pelo mundo inteiro. No Brasil, por uma questão de identificação com os negros daqui, pela influência do Black Power e dos Panteras Negras e de outros movimentos mais fortes, nós acabamos assimilando esse movimento cultural.A identificação dos negros dos Estados Unidos com os negros daqui era forte, mas nos EUA eles eram muito mais politizados e nós muito menos até por uma questão fácil de entender – estávamos vivendo uma ditadura. Eles viviam uma outra ditadura, a ditadura branca. Aqui no Brasil passávamos por um momento em que a expressão era muito complicada. O movimento cultural era feito nos guetos, embora eu não goste dessa expressão. Dessa forma é que entra aqui, de maneira marcante, o Soul. Nesse momento, já na década de 70, acontece também a explosão da Discoteca. A mundializaçao da Discoteca na minha avaliação atua como uma forma de inibir um pouco a eclosão da musicalidade negra, já que o movimento da Discoteca acaba seguindo para a comercialização, o consumismo, a mundialização da cultura estadunidense e um embranquecimento da música negra, se é que podemos dizer dessa forma. Então permance por um tempo esse namoro do Soul com a Discoteca. Aí começam a criar outros ritmos derivados da Discoteca. O DJ Corello começa a fazer experiências de outras formas de Black Music. Ele introduz a musicalidade do Charme e as pessoas começam a gostar. Ele não tinha dado um nome para essa experiência, mas observou que quem dançava tinha um movimento corporal bem diferenciado. Em um baile no Mackenzie, no bairro do Meier, o Corello convida: “vamos agora ouvir um charminho para você balançar o seu corpo bem devagarinho”. Essa estória do “charminho” ficou na cabeça das pessoas e elas passaram a falar: “agora eu vou pro Charminho, vou ouvir um Charme, vou lá no Corello que vai ter Charme”.Recebi uma crítica de um DJ, dizendo que eu não poderia, na minha dissertação, ter chamado o Charme de movimento musical, confundindo-o com o Jazz, o Samba ou coisa parecida. Respondi que em nenhum momento eu chamei o Charme de estilo musical, mas de movimento cultural que tem como força marcante a dança e a música, que é uma música específica.
 
OJ - É uma música específica?

CH - As músicas são compostas de forma específica. Elas têm, dentre outras características, um ritmo que é quaternário, muito bem delineado e marcado. Os arranjos são muito bem organizados e chamam a atenção. O trabalho vocal tende sempre a ter uma maravilhosa performance vocal do artista, o que não impede de haver determinadas músicas que não tenham vocal. O que eles chamam de Smooth Jazz é uma música muito mais instrumental, com altíssimos arranjos de sax e trompetes.
 
OJ - São sempre músicas em inglês?

CH - Agora tem um grupo de cantores e DJs  muito bom trabalhando a questão do Charme em português. Mas a grande marca é de músicas em inglês.

OJ - Você chegou a pensar porque se manteve essa marca da música estrangeira?

CH - É uma pesquisadora da Unirio, Leila Beatriz Ribeiro, que fala sobre essa questão da valorização estrangeira. Um ponto fundamental por trás disso é a identidade do negro e a valorização da auto-estima. O Charme, na verdade, está relacionado ao charme para se vestir. Na década de 80, independente do calor que estivesse fazendo, os homens iam para o baile de terno e/ou sobretudo, as mulheres de longo, saltão e cabelo arrumado... Isso foi até os anos 90. Eles copiavam essas roupas das capas dos discos, dos artistas. Era o máximo você estar parecido com um artista. Essa pesquisadora fala dessa questão da auto-estima e da força que a palavra tem em inglês no sentido de dar muito mais valor e identidade ao negro do que as palavras em português. Ela utiliza como exemplo as palavras negro e black. Negro carrega um significado de desqualificação na cultura brasileira muito grande, já black tem um peso diferente.

OJ - Essas músicas são compostas lá fora?

CH - Houve um momento em que essas músicas eram garimpadas. O DJ era tão mais famoso e valorizado quanto mais raro fosse o disco que ele apresentasse, então o grande lance do DJ era colocar as últimas músicas dos artistas mais famosos. Quem tinha isso, tinha ouro! Alguns DJs tinham contato lá fora e os LP’s vinham "a peso de ouro". Hoje é feita a pesquisa na internet. Mas mesmo assim ainda existem pessoas que competem entre elas no sentido de ver quem é que consegue as músicas mais raras.  Esse é o lado bom, que é o da renovação, mas tem o lado ruim que afeta o baile. Alguns DJ’s se esquecem que estão tocando para o público e tocam para si. Eles tocam a seqüência que gostariam de ouvir e nem sempre aquilo está atendendo ao gosto da platéia. Um dos jovens que eu entrevistei fala sobre isso. Ele diz que é uma vaidade tão grande que "às vezes fica um bando de trinta, quarenta DJ’s torcendo para que o colega se dê mal na performance dele". E aí, quando o DJ coloca uma música nova é para provocar os outros colegas que o estão assistindo.

OJ - E as músicas em Português, como são feitas?

CH - Em alguns momentos, são utilizadas bases musicais de músicas conhecidas com as letras em português. Em outros momentos, são feitas releituras de determinadas músicas estrangeiras com a tradução em português. Além do grupo que mencionei, que está compondo músicas de Charme em português, há DJ’s que só tocam músicas em português. Eu conheço, pelo menos, três. Também se apropriam de músicas e mudam o andamento, Sampleam. Pegam Djavan, por exemplo, e colocam no andamento da Black Music. Isso faz muito sucesso nos bailes.
 
OJ - Você disse que o movimento da Black Music nos Estados Unidos era bastante ligado à questão política e que aqui no Brasil, em parte, devido à ditadura, esse viés político não fluia...

CH - Não fluia da maneira como a gente pensava e esperava que fosse. Mas aqui também havia movimentação e resistência. Quais eram as dificuldades pelas quais os negros passavam no Brasil? O contexto de ditadura, o fato de serem negros, de morarem, a maioria deles, em favelas... Na década de 70 havia o Black Power nos Estados Unidos que acabou influenciando no modo de vestir aqui no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro. Aqueles que usavam o cabelo de estilo Black Power eram parados na rua e ganhavam porrada da polícia porque ela forjava um flagrante, afirmando, por exemplo, que eles estavam escondendo maconha dentro do cabelo.

OJ - Mas, e hoje? Existe um significado de resistência no Charme como parece existir no Hip Hop?

CH - Eu acho que essa resistência do Hip Hop está um pouco "folclorizada". As pessoas idealizam o Hip Hop no Brasil e no Rio de Janeiro como uma postura política. Eu não estou vendo isso nesse momento. Eu estou vendo muito mais uma cultura voltada para o consumismo, assim como o Funk. Enquanto o Funk de São Paulo é muito mais de protesto, de posição e de marcar presença, o Funk aqui do Rio é muito mais glamouroso e também apontado como estando à serviço da apologia ao crime e ao tráfico. Há várias linguagens interpretativas do Funk que eu não vejo como postura política. Assim eu observo também com o Hip Hop. Em qualquer evento que queiram chamar a juventude, principalmente se forem pobres e negros, colocam o Hip Hop como ingrediente. Difícil negar o poder da Indústria Cultural. Então, não é que as pessoas que gostam do Charme sejam despolitizadas, elas podem ter outros instrumentos de luta, mas não o movimento cultural do Charme. O Charme é voltado muito mais para o lazer e  para uma forma de preservação de uma cultura que identifica determinados grupos dentro de determinados espaços.

OJ - O Charme não se enquadra nos processos da Indústria Cultural ?

CH - As pessoas que produzem Charme, tanto os jovens, quanto os DJ’s, se apropriam dos objetos de consumo oferecidos pela Indústria Cultural, mas não transformam o Charme em um produto de consumo. Essa não produtivização para o consumo garante a autenticidade, ainda que hibridizado. Por outro lado, isso dificulta a própria expansão do Charme como movimento cultural, diferente do Hip Hop, por exemplo.

OJ - Que já é apropriado pela indústria cultural...

CH - Sim, e de uma maneira bastante avassaladora. O Charme não resulta em produto, ele não tem produtos prontos para consumo. O Hip Hop tem toda uma vestimenta, todo um ritual, um estilo que serve de marca identitária. É uma cultura juvenil mundializada. Ou seja, ele produz consumo. O Charme não tem isso. Trabalham muito na clandestinidade na produção dos CD’s e dos DVD’s de Charme. O Cd é composto, principalmente, de músicas baixadas pela internet e é vendido nos próprios bailes, embora haja pouquíssimos lugares de venda desses produtos.

OJ - Por que não tem Baile Charme na Zona Sul?

CH - Porque, bem objetivamente, na Zona Sul não tem negro nem pobre, na sua grande maioria. Você não tem DJ´s de Black Music que morem e que transitem na Zona Sul. Não sei até que ponto também interfere o preconceito dos donos das casas para permitir ou não o acesso desses DJ´s a esses espaços - e, com eles um grande grupo de freqüentadores negros. Além disso, na medida em que o Charme não é uma expressão cultural bastante difundida na mídia, as pessoas talvez nem conheçam e, por não conhecerem, não gostam. Ou pode ser que as pessoas até gostem, mas não ouvem mais falar.  Em vários lugares nos quais eu fui conversar a respeito do Charme as pessoas se espantavam: “ué ainda existe Charme?” Porque elas lembram do Baile de Charme dos anos 80 e acham que aquilo acabou.
 
OJ - Onde são realizados hoje os Bailes Charme do Rio de Janeiro?

CH - No centro, em Rocha Miranda, Padre Miguel, Realengo, Bangu, Irajá, Meier, Engenho de Dentro, Bento Ribeiro, Madureira, Duque de Caxias...

OJ - O funk e o Hip Hop também eram culturas específicas dos negros e pobres moradores de espaços populares. Mas depois se tornaram moda e as pessoas da Zona Sul vão para a favela participar do baile Funk. Você percebe que o Charme caminha para essa miscigenação com a cultura branca? Além desse baile no Bola Preta, tem também um na Carioca...
 
CH - Eu não gosto muito de fazer essa separação. Até porque eu sou branco e estou lá há muitos anos. Você se referiu ao baile que acontece no Tangará na última sexta-feira do mês. O grande barato é que aquilo começou como um movimento de resistência negra no sentido de não ter espaços culturais negros. É por isso que quando eu falo de resistência eu falo de uma forma de resistência politizada, mas que não necessariamente esteja reivindicando questões específicas. Por exemplo, foi a partir da música que esse grupo que freqüenta e freqüentou o Tangará denunciou a falta de espaço para determinados segmentos sociais, dentre eles, os pobres e os negros. Esse baile começou com um som na rua. Aí as pessoas ligadas aos movimentos negros começaram a se reunir nesse bar. O bar acabou porque o prédio entrou em obras e até hoje não voltou a funcionar, mas o som continuou. Um encontro que reunia 200, 300 pessoas, hoje reúne duas mil pessoas. Isso para quem está chegando é uma novidade. Mas para quem já estava ali como a gente, o sucesso nos está expulsando. Nesse momento pode ser que descaracterize. Perca a identidade no sentido de que era uma expressão de encontro da Black Music e passe a ser quase uma atração turística.
 
OJ - Esse grande público interfere na característica das músicas e da dança?

CH - Não interfere porque acaba não tendo dança. Pela quantidade de gente, você fica sem espaço para dançar.
 
OJ - Então não se parece com um Baile de Charme típico, já que não tem dança?

CH - Exatamente. Não tem dança porque não tem espaço. Quando se consegue um espaço é um micro espaço para se dançar. Outro agravante é a grande quantidade de vendedores ambulantes. Isso se deve, entre outras coisas,ao próprio empobrecimento da cidade. Antes havia dois, três, hoje há uns 30.
 
OJ - Então será que não está tendo esse movimento em direção ao que aconteceu com o Funk há alguns anos e também com o Hip Hop?

CH - Não consigo prever.
 
OJ - De virar moda...

CH - O que eu posso dizer é que tenho observado uma retomada do crescimento do número de bailes e não necessariamente do número de freqüentadores. Fazem muitos bailes ao mesmo tempo e os charmeiros não conseguem ir a todos os lugares. Obviamente vão ter que se dividir, no que se dividem, esvaziam os bailes, principalmente se for cobrado. Mas por outro lado, por exemplo, em Madureira há cinco bailes aos domingos, todos cheios.
 
OJ - O Charme continua tendo relação com a auto-estima da população negra?

CH - Eu não acho que seja mais pela questão da auto-estima, mas um ponto de identificação com a comunidade negra. Ou seja, mais um local, onde os negros sabem que vão se encontrar. Vejo o Charme mais situado como um espaço de lazer para a comunidade pobre e negra. Muitas vezes, ter um baile Charme perto de casa ou no bairro ao lado significa uma possibilidade de lazer barato, onde o sujeito vai estar com pessoas que ele gosta e onde ele vai retomar a questão da musicalidade, da memória, da dança, e, principalmente, o espaço da sociabilidade. E, o que parece ser melhor, em segurança, no caso da cidade do Rio de Janeiro.
 
OJ - Existe algum traço de violência nesses espaços?

CH - Não. Eu freqüento o Charme há 15 ou 20 anos. Para a pesquisa eu fui a 102 bailes. Nesse tempo todo eu vi três brigas, as três foram mulheres brigando por motivos pessoais. Me intriga profundamente como isso acontece num contexto em que os jovens e adultos estão envolvidos com violência e aquele espaço do Charme fica tão preservado. Isso é assim em todos os lugares, tanto no centro da cidade, quanto na Cidade de Deus, por exemplo.
 
OJ - Como é a relação entre os jovens e os adultos?

CH - Os jovens conseguem estabelecer o Charme como espaço de sociabilidade, conseguem organizar e elaborar as suas identidades a partir da musicalidade, da dança e da própria relação com os adultos. A intergeracionalidade é forte. Mas há momentos em que essa relação se dá de maneira conflituosa.
 
OJ - Por que?

CH - Porque em determinados espaços, por exemplo, os adultos não aceitam a presença de jovens porque assim como eles podem representar a continuidade, eles podem representar também a transformação e a mudança. A forma como o jovem está vestido, por exemplo, pode identificar essa diferenciação.
 
OJ - Mas tem uma classificação etária para entrar nos bailes?

CH - Não, em alguns bailes há segurança na porta para verificar se as pessoas estão armadas, mas não se verifica a idade. Inclusive, um fato interessante de se observar é que principalmente nos bailes happy hour, que começam no fim da tarde, há uma grande quantidade de crianças. 
 
OJ - E elas dançam também?

CH - Dançam. É maravilhoso! Isso é a certeza da continuidade do Charme, mesmo que seja para a transformação.
 
OJ - Você falou no Charme como um espaço gerador de um processo de sociabilidade muito grande. Como são as relações afetivas?

CH - Existem normas ocultas que são de alguma forma introjetadas por essas pessoas que freqüentam os bailes. Por exemplo, o princípio de não mexer com a mulher do outro. Uma pisada no pé é motivo para se pedir desculpas, as pessoas não se olham de cara feia. Outro exemplo, a socialização da bebida é algo marcante. A mesa funciona como um espaço de socialização. Quatro grupos diferentes dividem uma mesma mesa, aí, depois de um tempo, uns já estão enchendo os copos dos outros.
 
OJ - De onde você acha que vem esse modo diferente de festejar?

CH - Talvez sejam as normas, os códigos. Vira uma norma quase introjetada de que nesse espaço é possível dividir as coisas com as pessoas. Dividir o espaço das mesas. A questão do dançar, por exemplo. Se você é nova, as pessoas fazem questão de ensinar os passinhos básicos.
 
OJ - Mesmo se a pessoa é branca?

CH - Mesmo sendo branca. Não observo esse tipo de preocupação entre os frequentadores.
 
OJ - Você vai continuar trabalhando com o Charme?

CH - Meu projeto de doutorado é trabalhar com memória de jovem. Porque nessas andanças eu pude entender que essa relação intergeracional é estabelecida pela memória. E o que eu observo é que não tem nenhum trabalho discutindo ou investigando a construção da memória do jovem. A abordagem está sempre voltada para o idoso e para o adulto. O que eu quero investigar é exatamente isso, que o jovem possui uma memória, independente, de longa ou curta duração, mas que essa memória é construída a partir da experiência vivenciada também na relação intergeracional. No caso do espaço do Charme, o gosto do jovem, por exemplo, é influenciado diretamente pela relação intergeracional. Foi o pai, a tia, o avô, o vizinho, foi alguém do grupo afetivo que apresentou a musicalidade ao jovem e fez com que ele, aos poucos, se apaixonasse pelo Charme. Hoje isso está sendo feito inclusive com as crianças, mas não de uma forma "religiosa". As crianças vão ao Charme com prazer. Nessa relação eu comecei a observar a possibilidade de entender a construção da memória, uma relação com a experiência do adulto e o projeto do jovem. Quero falar sobre como essa memória pode influenciar não só na sociabilidade, mas, principalmente, na elaboração da identidade juvenil a partir das relações intergeracionais.

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