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"Antes de ingressar, já sabia que a universidade não era para todos"

Idson Tavares da Silva é aluno da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), onde ingressou pelo sistema de cotas. Ele fala sobre preconceito, universidade e luta pela igualdade

 “Vocês têm que estudar mais que os outros [brancos] e ainda ter sorte se quiserem ser alguém na vida”. Com essa surpreendente e reveladora frase, minha professora do Ensino Médio decidiu chamar a atenção de toda a minha turma – essencialmente formada por alunos(as) negros(as) – para a disputa por vagas nas universidades públicas.
 
 Se nossas escolas "deixam" que esse tipo de atitude racista continue, estarão a serviço da reprodução dos mecanismos reforçadores dos processos de discriminação. Ao invés de problematizar, ela silencia e neutraliza a questão racial com o intuito de diluí-la, comprometendo as diferentes dimensões do fazer pedagógico e acirrando as desigualdades.
 
 Nasci e cresci na periferia de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Sou filho de pais divorciados e tenho uma família numerosa, apesar disso, fui a primeira pessoa a chegar no Ensino Superior. Antes de ingressar no Curso de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) pelas cotas raciais, militei no movimento estudantil e nos pré-vestibulares para negros e carentes.
 
 O fator predominante que consolidou a construção da minha identidade racial foi a própria experiência de ser discriminado, uma lição fundamental para a formação de uma consciência racial. Não é em nada agradável dizer, mas devo isso a escola pública que freqüentei.
 
 Antes de ingressar, já sabia que a universidade não era para todos. Nos meus estudos de graduação, procuro entender as razões pelas quais poucos jovens das camadas populares chegam ao Ensino Superior. Foi com pesquisas e nos debates e seminários que aprendi a analisar as questões mais prementes da nossa sociedade sob a óptica racial. Nesse sentido, faço críticas ao discurso feito por pessoas que encaram a desigualdade como uma questão de pobreza, descartando o aspecto racial. Nessas falas, omite-se, por exemplo, que se nós retirarmos do Brasil o impacto da temática racial e da questão de gênero, a sociedade se transformaria em outra. As pessoas não são pobres por natureza, elas são induzidas à pobreza por artifícios cruéis de exclusão como é o caso do racismo, que existe para expropriar as minorias do acesso a todos os recursos sociais: educação, saúde, habitação, capital.
 No ambiente acadêmico, passada a euforia por ter sido aprovado numa universidade pública, o cotista, geralmente, passa por inúmeras dificuldades, todas elas geradas por esse processo de expropriação a que me refiro. Sem condições para arcar com a tarifa dos ônibus, as apostilas, os livros e a alimentação, continuar na Uerj torna-se um drama diário.
 
 A universidade é a instituição onde supostamente reina a razão, mas na prática é um espaço social dominado por preconceitos, estereótipos e estigmas. O saber científico tem um papel importante na construção de novas visões, mas precisamos reconhecer suas limitações e passar a valorizar o saber elaborado a partir da vida prática. Por isso, a adoção de cotas é importante, mas só faz sentido numa universidade aberta, dialógica e comprometida com uma transformação social efetiva. Ela enriquece o ambiente acadêmico com experiências antes colhidas e tratadas apenas como objeto de pesquisa.
 
 Nos períodos iniciais, participei de um projeto voltado para apoiar a permanência com qualidade dos cotistas da Uerj chamado Espaços Afirmados, uma iniciativa do Laboratório de Políticas Públicas (LPP/Uerj) patrocinado pela Fundação Ford. Foram realizadas oficinas dirigidas, cursos de extensão, grupos de estudo e outras atividades, que contribuíram para o bom rendimento acadêmico dos alunos cotistas. O projeto mobilizou toda comunidade universitária afrodescendente para discutir sua inserção política, identificar suas demandas e propor soluções para garantir condições adequadas de permanência. Foi uma estratégia, no mínimo, interessante, de empoderamento coletivo para efetivar nossa participação no cotidiano da Uerj. O projeto foi encerrado, após recusa de renovação da Fundação Ford.
 
 Além do Espaços Afirmados, a própria Uerj criou em 2004 o Programa de Iniciação Acadêmica (Proiniciar), com vistas a oferecer suporte ao estudante oriundo do sistema de cotas, destinando uma bolsa de estudo de R$ 190,00 por doze meses e disciplinas instrumentais que supram as demandas educacionais dos alunos cotistas.
 
 O Projeto Espaços Afirmados e o Proiniciar mantém objetivos semelhantes, mas seus resultados são bem diferentes. Enquanto o primeiro, impacta positivamente na trajetória acadêmica dos alunos cotistas, o segundo é assistencialista e ineficiente. A bolsa termina, e muitos vêem seus sonhos terminarem junto com ela. São poucos os cotistas com bolsa de iniciação científica ou monitoria, com bolsa de extensão já há um contingente um pouco maior, mas apesar das inúmeras modalidades não há bolsa de estudo para todos.
 
 A luta é incessante, pouco a pouco prosseguimos rompendo barreiras e provocando uma mudança na universidade por inteiro. Já “atropelamos” muitos preconceitos. Levantamentos da própria Uerj mostram que os alunos cotistas apresentaram melhores resultados que os estudantes oriundos do vestibular tradicional.
 
 A vida que hoje tenho, o trabalho ao qual me dedico e tudo mais foram e estão sendo conquistados através da relação estabelecida com a instituição escolar, pois aprendi a interpretar as “regras do jogo” para escapar da trajetória de fracasso destinada a todo jovem oriundo das camadas populares como eu.
 
 Aquela escola, de cotidiano estigmatizante e discriminatório, onde conclui o Ensino Médio passou por mudanças radicais. Hoje, ela é reconhecida nacionalmente por desenvolver projetos com recorte étnico/racial envolvendo alunos, professores e a comunidade. Suas ações resgatam a auto-estima dos alunos e promovem atitudes de solidariedade, cooperação, repúdio às injustiças e respeito mútuo. Tornou-se uma escola de referência, comprometida com uma pedagogia multirracial e interétnica, formadora permanente de cidadãos conscientes e ativos.
 
Orgulho-me profundamente de fazer parte dessa história de transformação e superação.