Acervo
Vídeos
Galeria
Projetos


Além da Violência - Entrevista com a antropóloga Regina Novaes

Antropóloga descobre um Rio de Janeiro que muitos cariocas não conhecem e diz que as pessoas não sabem como é a vida nos morros

Observatório Jovem    11.01.2005

Revista Época - O recente lançamento do livro A Memória das Favelas, do Instituto de Estudos da Religião (Iser), jogou luz sobre uma das maiores mazelas do país. Mais de 6,5 milhões de brasileiros vivem em favelas, segundo o IBGE. Só no Estado do Rio de Janeiro, os morros abrigam cerca de 1,4 milhão de habitantes. Mas, em vez de escancarar a violência cotidiana desses lugares, a publicação do Iser os humaniza. Valoriza as histórias de vida dos moradores e o que eles têm de interessante para contar. A obra reúne depoimentos de pessoas de dentro e de fora das comunidades. Gente que conhece essa realidade por dentro e desmitifica a idéia simplória de pobreza e violência, como explicou a antropóloga Regina Novaes, em entrevista a ÉPOCA.

ÉPOCA - Por que não se pode falar em favela de forma inocente?
Regina Novaes -
No Posfácio ao Nome da Rosa, o escritor italiano Umberto Eco lembra que para falar do presente é preciso evitar a falsa inocência. Não se pode falar de favela de forma inocente apagando a História, que inclui desigualdades sociais, políticas assistencialistas e políticos populistas. Como falar do presente sem levar em conta o passado que o produziu? A falsa inocência pode se revelar de forma ingênua ou perversa. A ingênua, folclórica, idealiza a favela e os moradores. Visitar a favela, cantar louvores a ela, prestigiar um grupo cultural é o máximo. E chega a ser chique. No outro extremo, há a falsa inocência perversa, que criminaliza. É o pensamento de que eliminar a favela seria extirpar o mal, acabar com crimes e com o narcotráfico. O problema é circunscrever o mal a um local geográfico. A favela é apenas um ponto de uma complexa rede do comércio e consumo de drogas. A história das favelas reflete a história da cidade.

ÉPOCA - Como jovens de classe média se comportam em relação às favelas?
Regina -
Para certos segmentos, a relação é de idealização. Há jovens de classe média que freqüentam bailes funk achando que estão numa incursão a outro mundo. E há os que vão comprar drogas lá na favela como se fosse uma aventura cultural. Descrevem os perigos que correram e os medos que passaram como experiências existenciais. Ir à favela para jovens da elite, que são críticos do sistema, é experimentar ultrapassar preconceitos, sair do mundinho protegido da família. Outros acreditam ser tolerantes ou revolucionários por gostarem da estética da favela e do hip-hop. Essa postura é muito melhor que o preconceito e a discriminação da favela. Mas boa parte dessa comunhão social só ocorre porque eles compartilham a aversão à polícia. Também é preciso refletir sobre a espetacularização da violência que está presente nesse olhar bem-intencionado, complacente ou cúmplice.

ÉPOCA - Os projetos sociais também apelam para a falsa inocência?
Regina -
Eles também correm o risco da falsa inocência se deixarem de considerar as ambigüidades, que são resultados históricos da integração subordinada entre favela e asfalto. Os benfeitores das favelas têm de examinar as ambivalências de seus sentimentos e expectativas. Há os que agem como heróis civilizatórios. Acham que oportunidades oferecidas em seis meses aos favelados podem apagar carências de anos. Não consideram os riscos e as diferentes estratégias de sobrevivência presentes no interior da própria favela.

ÉPOCA - Ouvindo os moradores, a senhora descobriu um Rio de Janeiro que não conhecia?
Regina -
Sem dúvida. Aprendi um pouco do código de comportamento incorporado por cada morador. É um código que permite mapear os perigos de cada dia. Ao voltar para casa, é preciso sentir o clima. Há tempos de mais calmaria e outros em que não se sabe a que horas se pode sair de manhã para trabalhar, nem se vai dar para voltar. É preciso observar tudo. Ao descer do ônibus, é necessário estar atento. Certos lugares são termômetros. O campo de futebol é um indicador. Se está vazio, é porque a coisa não está boa. Se certas luzes estão acesas ou não, também. Se a mãe está no ponto de ônibus esperando o filho, é porque é bom ir direto e rápido para casa. Há frases que funcionam como uma senha. Algumas indicam conflitos entre 'eles' (os traficantes), outras entre 'eles' e a polícia. As pessoas vão incorporando estratégias para transitar, para ir e vir e olhar sem ver. Nos lugares onde trabalham moradores de favelas também correm rapidamente as notícias que justificam atrasos e ausências. 'Ontem o bicho pegou por lá', comenta-se. Mas ninguém pede ou se dispõe a dar mais detalhes. Há cumplicidade. A lei do silêncio também chega ao asfalto.

ÉPOCA - Quem é de fora tem noção de como é a vida nas favelas?
Regina -
Não. Primeiro por causa da homogeneização, da idéia de que todos os que estão lá dentro são bandidos em potencial. Morar numa favela é inovar cotidianamente as formas de ir e vir. Códigos são criados e transformados sempre. Mas é importante que os jovens saibam que nem sempre foi assim. Não que o passado tenha sido de glória. Mas os morros não tinham donos.

ÉPOCA - Na última década, a população das favelas cresceu quase três vezes mais que a média brasileira. Está mais difícil separar a favela do asfalto?
Regina -
Sim, está. A cada dia ficam mais evidentes a convivência entre pobreza e riqueza e os problemas sociais e de urbanização. Há moradores de bairros simples ou de conjuntos habitacionais populares que não aceitam ser chamados de favelados porque o nome estigmatiza. A contraposição favela-asfalto é uma descrição que nasceu no Rio de Janeiro por causa da topografia, mas que é usada no Brasil inteiro para definir a segmentação das cidades. Tornou-se um símbolo de denúncia.

ÉPOCA - Chamar favela de morro ou de comunidade faz diferença para os moradores?
Regina -
Essas palavras foram colocadas de fora para dentro. Nenhuma delas é nativa ou foi escolhida pelos moradores. Mas eles as usam como lhes convêm. Para relembrar do passado, as lideranças falam em 'favela'. Se vão pedir alguma coisa para o prefeito, querem passar a idéia de solidariedade e, por isso, dizem 'comunidade'. Esses nomes têm conteúdos simbólicos e são fruto de negociações. São rótulos.

ÉPOCA - Comunidade não seria apenas uma forma politicamente correta de referir-se à favela?
Regina -
É eufemismo. É quase uma forma de rico falar de pobre. Essa denominação nasceu em trabalhos religiosos. Mas é importante observar que essa forma politicamente correta não apaga a História. Temos um portal na internet chamado Viva Favela e o título do livro é A Memória das Favelas. Fizemos isso porque havia pessoas que queriam retomar a palavra como uma forma de afirmação de identidade. Essas denominações exprimem relações sociais, interesses diversos. Uma menina da Favela da Maré me contou que quando vai à prefeitura diz que é favela e que na igreja fala em comunidade. Ela usa as palavras de acordo com o que o interlocutor tem a lhe oferecer.

ÉPOCA - Como surgiu a idéia da publicação do livro?
Regina -
Esse trabalho teve início na internet, há quase dois anos, com o projeto Favela Tem Memória. O objetivo inicial era resgatar as lembranças dos moradores mais velhos, criar identidade e valorizar o espaço das favelas. Também foi uma maneira indireta de enfrentar o silêncio que a polícia e o tráfico impõem. No ano passado, fizemos um seminário e agora resolvemos reunir os relatos no livro. Essa coleta de dados continua. O centro de memória da Maré tem a melhor exposição fotográfica já feita sobre aquela região. Mas o pessoal da favela não pretende disponibilizar o material na internet. Eles querem dignificar o próprio território. Quem quiser consultar o acervo terá de ir lá.

ÉPOCA - É possível alguém de fora entrar sozinho na Maré?
Regina -
Não, a mediação é necessária. Alguém do projeto tem de acompanhar os visitantes. Nós fazemos isso porque os moradores querem valorizar a idéia de que o espaço deles é público e reverter a lógica de que a Maré é uma área privada de traficantes.

ÉPOCA - Como o livro e o projeto Favela Tem Memória contribuem para enfrentar o silêncio?
Regina -
É uma tarefa difícil e que acontece de forma indireta. Nem tudo pode ser perguntado a toda hora. Não se podem abordar assuntos que coloquem os entrevistados em risco. Os nossos correspondentes são moradores das favelas e têm de respeitar o silêncio em relação a determinados temas. A cada dia, temos de decidir o que podemos falar. Mas só o fato de as pessoas encontrarem uma forma de falar do passado, dos grupos, das lutas, das músicas e gírias já está fortalecendo a identidade e criando condições para romper a lei do silêncio. Estamos construindo esse caminho através do conhecimento, mostrando que existem outros donos da História que não são os traficantes.

ÉPOCA - Como o projeto é conduzido?
Regina -
Atuamos em cinco favelas: Maré, Rocinha, Alemão, Cantagalo e Cidade de Deus. Em cada uma temos um correspondente, que colhe os relatos e coloca na internet (www.favelatemmemoria.com.br), e um fotógrafo. Esse é um dos pontos mais importantes, porque eles continuam lá e têm informações relevantes. É diferente quando um repórter consegue entrar, faz uma matéria e vai embora. Não existe a mesma preocupação com o que pode ou não ser publicado, de forma que a vida dos entrevistados não seja colocada em risco. Nosso objetivo é que as pessoas possam ouvir falar de favela de uma maneira que não leve ao preconceito e à discriminação. Os moradores falam de usos, costumes, cultura. Contam a história de uma cidade que tem sido pensada apenas sob o aspecto das carências, da falta de estrutura e segurança. Mas nunca pelo que ela tem.

ÉPOCA - Fala-se muito do preconceito de fora para dentro das favelas. Mas também há preconceito interno. Como ele se manifesta entre os moradores?
Regina -
Achar que quem mora numa favela é bandido em potencial é preconceito, mas pensar que as pessoas que vivem ali se gostam muito, que formam uma comunidade é ilusão. Ninguém gosta de morar nas favelas como elas são hoje. Quem gostaria de morar num lugar em que é estigmatizado, que se define pela carência, pelo que não tem? Porém, diante dessa situação de precariedade, há reações diferentes entre os moradores. Há quem está ali simplesmente porque não tem onde morar, esconde o endereço, odeia seus vizinhos e quer se diferenciar deles. Mas há também quem investe na idéia de comunidade, que faz parte de grupos de igrejas, de ONGs, de associações de moradores. Há quem misture esses dois expedientes: ora repudia, ora investe. Nas favelas há vida e contradições como em qualquer lugar da cidade.

ÉPOCA - Favelas costumam ser associadas à violência. Como mudar essa imagem em um momento em que a guerra do tráfico e as mortes não cessam?
Regina -
Não é simples. A situação no Rio nunca foi tão grave como hoje, quando o poder privado dos traficantes desafia a cada dia tanto os poderes constituídos quanto organizações da sociedade civil. Ainda assim, sou otimista quanto ao futuro. Minha esperança vem das notícias sobre o que está acontecendo nas próprias favelas, por iniciativa de uma nova geração de moradores. A novidade hoje está na maneira como uma parte dos moradores das favelas circula. Há 20 anos, um antropólogo descrevia sua ida à favela como se descrevia a ida a uma tribo indígena. Lá havia um outro, que o antropólogo de classe média deveria descobrir.

ÉPOCA - Qual é o diferencial dessa nova geração de moradores?
Regina -
Hoje, vários jovens que fazem cursos de Ciências Sociais em universidades públicas moram nas favelas e se propõem a estudar a vida social nos locais onde vivem. Há programas de formação e intercâmbio entre jovens universitários moradores de favelas. Há rappers consagrados, poetas, escritores premiados, doutores e educadores da favela. Existem centros e ONGs que se organizam e se movem a partir de recursos humanos locais. Há 'correspondentes comunitários' que estão fazendo curso de Jornalismo. Os fotógrafos do site Viva Favela expõem junto com outros tantos que moram e fotografam a favela. Conhecimento e argumentos circulam entre estudiosos, lideranças locais e imprensa. Cada vez é mais difícil estabelecer as fronteiras entre 'nós' e 'eles' quando se trata de buscar soluções que resultem em direitos e deveres da cidadania no espaço das favelas. Isso é novo. Há uma geração que vem aí e pode reagir de maneira diferente de seus pais. Quanto mais informação circular, para dentro e para fora, mais difícil será garantir o silêncio e a submissão.

 

REGINA NOVAES - Quem é?

Nasceu em São Carlos, interior de São Paulo, mas vive no Rio de Janeiro há mais de três décadas. Tem 53 anos, é casada e mãe de três filhos

Vida profissional: Antropóloga, pesquisa temas relacionados a favelas há dez anos. É professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora-geral do projeto Favela Tem Memória, do Viva Rio/Instituto de Estudos da Religião (Iser)