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Ação afirmativa na universidade

Pesquisadora do Observatório Jovem Mônica Sacramento estuda impacto da política de cotas na Escola Superior de Desenho Industrial da Uerj

Mônica Sacramento concluiu sua dissertação de mestrado em 2005  “Ação Afirmativa: o impacto da política de cotas na ESDI”, onde analisou as experiências vividas por alunos negros ingressantes através da política de cotas nos vestibulares de 2003 e 2004 na Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI) da Uerj. A pesquisa, traça o perfil destes jovens, as motivações que os levaram a escolher a carreira de design, suas experiências e estratégias de permanência na universidade pública. Mônica acompanha o debate na mídia desde 2001 e hoje é uma das pessoas que lutam pela implantação da Lei de Cotas no Brasil.

A escolha da pesquisa

Minha entrada no mestrado na Universidade Federal Fluminense coincide com o ano da promulgação da Lei de Cotas na Uerj. Neste sentido,  interessava-me saber como seria a experiência da Lei de Cotas e sua aplicação. Ao acompanhar o debate na mídia observava a polêmica provocada pela medida e para além da análise da Lei, decidi pesquisar qual seria o impacto da Lei num curso considerado como de prestígio pela  sociedade como odontologia, medicina, desenho industrial, onde a presença negra é reduzida ou praticamente nenhuma. Minha escolha recaiu sobre o curso de Desenho Industrial da Esdi (Escola Superior de Desenho Industrial) da Uerj.  Este curso possui características peculiares: é um campo que caminha entre a arte, a produção industrial e o mercado de consumo. Considerado como de prestígio, possui horário integral nos dois primeiros anos e demanda a compra de inúmeros materiais. Saber quem eram os/as jovens negros/as que transitariam nesse campo bastante elitizado tornava-se fundamental para análise da experiência da modalidade de cotas nas universidades públicas.

A Esdi

A Esdi foi fundada como escola independente na década de 60 aninhada pelo estímulo desenvolvimentista do governo JK. Somente na década de  70 a Esdi foi incorporada à Uerj. A Esdi, desde sua fundação, possui grande prestígio abrigando em seus quadros docentes que constituem-se como referências no campo do design. Atualmente vem ganhando maior visibilidade em função de inúmeros prêmios e parcerias com empresas e instituições internacionais.
O curso da Esdi possui cinco anos de duração e oferece habilitação integral em design de produto e comunicação visual. Os dois primeiros anos são integrais. O campus tem uma característica especial, pois está instalado em um conjunto prédios numa vila na Rua Evaristo da Veiga, no coração da Lapa. Há uma outra arrumação geográfica em comparação ao campus da Uerj.

O design

Vivemos a sociedade da forma, ou seja, hoje em dia tudo é design, dos objetos mais simples aos mais sofisticados: uma cafeteira, uma cadeira, o mobiliário urbano etc. A questão é que as pessoas em geral não têm noção disso, sendo o design associado a produtos para um público elitizado. Para desenvolver os projetos é necessário  ter contato com arte, cultura geral, imagem, discussão de estética e bens de consumo. Tudo isso passa pelo universo do design e da formação destes profissionais. Então, como os estudantes negros/as iriam dar conta disso tudo?  Fui a campo descobrir...

“No vestibular de 2003, com as cotas,  o curso de Desenho Industrial, por exemplo, alterou fortemente o percentual de alunos negros (pretos e pardos)  que antes era incipiente”.

A Lei de Cotas em 2003

 A Lei foi colocada da seguinte maneira: 40% de vagas, cotas para os negros (entendidos pretos e pardos), 50% de vagas para estudantes oriundos de escolas públicas e mais 5% de vagas para alunos deficientes ou pertencentes a outras minorias. Em princípio, a universidade entendeu que essas leis seriam justapostas, no entanto, o que ocorreria era que as leis seriam sobrepostas. Na verdade, existia o vestibular estadual e o vestibular de cotas. O pessoal que não declarou ser negro ou comprovou estudo em escola pública, entrou pelo vestibular estadual. Nas outras duas categorias foi feito o seguinte: primeiro se preencheu 50% de vagas de cada curso com alunos de escola pública e desses, 40% que se declararam negros. Então, na verdade uma cota se sobrepôs a outra. Como em alguns cursos não havia declaração de negros que preenchessem as cotas buscou-se preencher as vagas com alunos do vestibular estadual para cumprir a lei. No primeiro vestibular do curso de Desenho Industrial, por exemplo, o percentual de cotistas (totais) ficou em torno de 70%. Imagine o caos provocado na sociedade! Já em outros cursos, como o de enfermagem, por exemplo, rapidamente se conseguiu fechar os percentuais. Mas, em curso de prestígios, a universidade teve que pinçar do outro vestibular.

O vestibular de 2004

No vestibular de 2004 em função das discussões na universidade e de campanha na mídia marcada por posicionamentos contrários às cotas a lei passou por reformulações. Reduziram-se os percentuais das cotas para 20%, 20% e 5%. A Uerj também instituiu o critério de “carência” onde além de comprovar os últimos três anos de ensino médio feito em escola pública, os alunos deveriam declarar uma renda per capita inferior a 300 reais. Por conta do índice de carências, basicamente, em alguns cursos a quantidade de vagas ficou proporcional à quantidade de candidatos. A Lei então sofreu outra reformulação no tocante a renda que hoje é de 520 reais per capita.

A dissertação

Foram distribuídos questionários a todos os estudantes das turmas da 2ª e 3ª série para traçar o perfil dos estudantes de desenho industrial. Posteriormente foram entrevistados 12 jovens negros/as e ingressantes através dos vestibulares de 2003 e 2004, através das cotas raciais. A pesquisa revela que a escolha da carreira para estes jovens caminha na linha tênue observada no próprio campo, entre arte e produção industrial. Nesse sentido, os jovens conjugam a possibilidade de expressão (criatividade) com a possibilidade de ascensão social. Outro dado diz respeito a representação de sucesso: Para os/as jovens de 2003, o sucesso está associado à conclusão do curso. Para os/as estudantes de 2004, que possuem nível econômico menor, é a própria entrada na universidade que é vista como um grande sucesso. As turmas se preocupam com a inserção no mercado de trabalho. Quanto à presença na universidade pública observa-se um impacto maior nos/as jovens da turma de 2004 que a consideram como um grande acontecimento em suas vidas. Isso comprova que existe uma demanda por vagas na universidade que precisa ser atendida. Há um número grande de jovens que estão em idade de inserção no ensino superior e de profissionalização para o mercado de trabalho. É preciso que se faça alguma coisa para que esses jovens possam acessar a universidade.

“Os elementos da cultura popular entram na universidade. Cabe a esta se adaptar a esses jovens e tentar responder às demandas que eles apresentam”

Os jovens na universidade

A entrada na universidade representa para os/as jovens negros uma possibilidade de mudança social e traz visibilidade para suas questões. Também representa o fortalecimento ou resgate de sua auto-estima. Relatam que conseguiram respeito dentro dos grupos dos quais participam, e abriram possibilidades de pensar em projetos futuros. Alguns já pensam em fazer outra faculdade, mestrado ou doutorado. Passam a acreditar que é possível um outro futuro e que eles/as, assim como tantos outros jovens,  têm direito a planejar projetos pessoais e profissionais considerando a entrada na universidade como possível.

Modos de estar na Esdi...

Os/as jovens negros trazem conteúdos que são absolutamente particulares e diferenciados do público que até então freqüentava a universidade e desta forma mudanças estão em curso. A universidade necessita criar possibilidades para estes alunos, não só no espaço geográfico (bibliotecas equipadas, salas de informática, bandejão) como no espaço curricular. Os elementos da cultura negra e popular estão na universidade. Cabe a esta como centro de ensino, se adaptar a esses jovens e tentar responder às demandas que eles apresentam. Estar na Esdi para estes jovens redimensiona suas experiências e suscita reflexões... Um exemplo disso foi o trabalho no qual os/as jovens tinham que propor uma intervenção na arquitetura do campus. Um dos grupos criou um barraco com os restos de madeira da marcenaria. O trabalho apresentava elementos da cultura dos/as jovens, muitos deles negros e moradores de periferia. A universidade ,então, incorporou à sua linguagem um conteúdo que é de classe popular, revelando o pertencimento racial, uma vez que no Brasil a pobreza tem cor. Um outro trabalho que serve como exemplo, foi a criação de uma estampa que continha o rosto do humorista Mussum e onde ao redor estava escrito “todo mundo é pretis!”. A imagem foi estampada em vários cartazes em elementos do cotidiano negro como o trem, a saia da baiana e exposta na universidade. Estes elementos, portanto, adquiriram visibilidade e lugar que antes estava ausente da universidade. Ouvi relatos emocionantes. Um dos jovens disse que nunca tinha ido a um museu em seus 26 anos e que agora, a partir da entrada, não deixava de ir. Isto porque alguns espaços para a população negra ainda são impeditivos. Quando você começa a mudar o seu repertório cultural é um ganho maravilhoso. Um outro aluno relatou em relação à respeitabilidade que hoje não é mais parado em duras de policiais e tratado de forma diferenciada em função de sua condição de universitário. Ouso dizer que daqui a algum tempo vamos perceber essa sedimentação, esse fortalecimento da identidade dos/as jovens negros/as numa apropriação de espaço e mudança de conceitos benéfica para toda a sociedade.

“A entrada, o acesso e permanência desses jovens na universidade incomoda muito às elites porque nos obriga a pensar qual é o nosso pertencimento racial. Problematizamos a questão, pois estava naturalizado que os negros ocupariam posições inferiores na sociedade.”

O desafio de romper com o preconceito

Um dos argumentos usados contrários às cotas é de que o nível da universidade iria  baixar com o ingresso através delas, além de preconceito, é bobagem. Penso em quantos talentos estamos desperdiçando? Há estudos que mostram que o desempenho dos jovens que entram na universidade por cotas é igual ou superior aos que não são cotistas. Impressionante é que ao perceber que pode ser reprovado em uma matéria, o/a jovem cotista não desiste e permanece cursando a disciplina havendo uma incidência muito pequena de reprovação por faltas ou trancamento. Eles/as têm noção do quanto aquele espaço é importante e estão empenhados em aproveitá-lo. Então, penso que com estes argumentos, culpamos e punimos a vítima por uma deficiência do Estado que é a ausência de uma escola pública de qualidade para todos. A sociedade exige um esforço heróico de superação desses/as jovens ao continuar repetindo que as chances são iguais para todos. A entrada, o acesso e a permanência desses jovens na universidade incomoda muito às elites porque nos obriga a pensar qual é o nosso pertencimento racial. Problematizamos a questão, pois estava naturalizado que os negros ocupariam posições inferiores na sociedade. Na minha opinião, o que incomoda à sociedade nesta questão das cotas é a desnaturalização dos papéis e o fato de estarem perdendo privilégios. Discute-se que isto não é legítimo mas na verdade isto está na Constituição. O Brasil é signatário de vários acordos internacionais que abrem espaço para a criação de políticas públicas que incidam sobre as discriminações. A política de cotas não é uma novidade para os brasileiros. Já tivemos a “Lei do Boi” (Lei 5.465/68) que determinava cotas para agricultores e seus filhos nas escolas de veterinária ou agronomia. Isto já era reserva de vagas. Temos lei para o percentual de mulheres representativas nos partidos. Temos cotas para deficientes. Então qual é o problema das cotas para os negros? A sociedade brasileira nega o seu racismo estrutural. Com as cotas há uma rediscussão desses papéis e práticas, benéfica tanto para brancos como para negros. Para os/as jovens negros/as é um marco pois adquirem visibilidade, passam a acreditar no seu potencial, a ousarem e descobrirem que podem ser cientistas, acadêmicos e intelectuais.
 
O debate sobre as cotas hoje

A discussão sobre as cotas já se ampliou e hoje está ultrapassada. A Lei de Cotas é um produto da luta do Movimento Negro, pois desde a década de 30 o MN luta pela criação de políticas que interfiram na questão racial através da educação. Hoje em dia são 35 universidades no Brasil que já adotam o sistema de cotas. Essas universidades criaram as cotas através dos seus conselhos universitários. Algumas somente com políticas de permanência aos que já tinham tido acesso, outras criando o acesso.
Há um mérito da medida inicial de 2003, da Uerj, que é popularizar esta discussão, de todos falarem sobre isso. Penso que o grande mérito da questão foi essa discussão de que tipo de democracia racial temos no país. E daí várias campanhas surgiram. Nas novelas há sempre essa discussão, mesmo que às vezes maniqueísta. Ver negros em papéis que não são subalternos é muito bacana, pois se vai acostumando o olhar das pessoas. E precisamos sempre desconstruir a naturalização dos papéis. Um negro de terno no shopping não pode somente ser segurança. A Lei acaba mexendo com estruturas sociais de brancos e negros que estão muito arraigadas.

O papel da Escola

As crianças vivem o racismo dentro da escola, pois esta não problematiza a desigualdade racial. Aprendem e naturalizam os lugares sociais. A escola não dá conta disso, não enfrenta essa discussão.  Daí a necessidade de leis que questionem e revertam este quadro como a Lei de Cotas, a lei 10.639 e o estatuto da Igualdade Racial.
Devemos entender que para cada pessoa que é discriminada existe uma outra que acha que deve discriminar. Um constrói um ethos de inferioridade enquanto outro de superioridade. A questão racial passa também pelo padrão estético. Somos ensinados a assumir o comportamento de rejeitar o padrão que a sociedade diz que é feio, desqualificado. Então para os/as negros/as construir identidade valorizativa é um processo doloroso e cheio de dificuldades pois ser negro/a numa sociedade que nos associa ao que é negativo e que discrimina, faz com que muitas vezes nossa auto estima e padrão estético se aproxime do que é valorizado numa questão de sobrevivência. Se estivéssemos num ambiente que nos estimulasse a perceber essas diferenças como fundamentais na humanidade seria diferente. Mas, num ambiente onde essa diversidade é vista hierarquicamente, tudo que for relacionado ao negro (trança, roupa colorida etc) torna-se negativo. A construção da identidade racial não é imediata e a escola pouco contribui para isso. 

“Esta Lei é uma pista para a discussão de uma nova cidadania que desconstrói também a cordialidade do brasileiro onde todos parecem se dar tão bem e tudo acaba em “samba”.

Lei 10.639

Esta Lei foi promulgada em 09/01/2003 por conta das reivindicações do Movimento Negro. A proposta da Lei é a inclusão nos currículos da Escola Básica (série inicial até o ensino médio) tanto em escolas particulares como em escolas públicas, da história da África e dos africanos, da luta dos negros e das contribuições dos afro-descendentes no campo social, econômico e político. A Lei inscreve-se num conjunto de medidas afirmativas para essa discussão sociorracial. Quando se resgata a história da África e dos africanos, a relação com a escravidão e a história da diáspora negra, traz um sentido de raiz, de pertencimento para todos os afro-brasileiros.  Sabemos que um dos aspectos dos países da África é a pobreza, mas não é somente isso. São 56 países com situações políticas diversificadas, situações étnicas diferenciadas. A África do Sul, por exemplo, é rica dentro de sua particularidade. A gente costuma ter aquela idéia geral, transformando a África num país e não a considerando como um continente. Isso é um aspecto que esta Lei pretende discutir e desconstruir. A luta dos negros ao longo da história também é fundamental. Eles resistiram muito à escravidão. Nos livros há sempre o negro numa posição de passividade diante do feitor. Nunca se mostra a reação. Sabemos que vários movimentos de revolta foram arquitetados pelos negros, mas isso não entra na história oficial. E aí ensinamos às gerações que o negro é pacífico. Isto é diferente de passividade. E sempre se coloca que o negro é passivo diante da tortura e da submissão.
Esta Lei é uma pista para a discussão de uma nova cidadania que desconstrói também a cordialidade do brasileiro onde todos parecem se dar tão bem e tudo acaba em “samba”.

Somos todos afro-brasileiros!

A biologia diz que não existe uma raça pura. Quando falamos de raça falamos de um conceito sociológico que é a hierarquização social dessas raças para justificar uma atuação política-econômica No aspecto biológico somos todos afro-brasileiros, pois somos todos miscigenados. Só que vivemos num país onde o racismo é muito severo. Nos Estados Unidos, por exemplo, a discriminação se dá pela ascendência. Aqui a classificação se dá pela marca que é a cor da pele, a textura do nariz, o cabelo etc. O preconceito é de marca e vivenciado em todos os lugares e posições sociais. Todas as políticas que incidem sobre a discriminação racial acabam fortalecendo a reação contra o racismo. Quando criamos uma Lei estamos corrigindo uma desigualdade. Os negros têm tanto direito quanto os brancos. Então não se trata de favores e sim, de cumprir a igualdade de direitos numa atuação transformadora.  

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SANTOS, Renato Emerson dos e LOBATO, Fátima (orgs) Acoes Afirmativas: Politicas publicas contra as desigualdades raciais.Rio de Janeiro, DP & A, 2003.

SISS, Ahyas. Afro-brasileiros, cotas e Açao Afirmativa: razoes históricas. Rio de Janeiro: Quartet, Niterói: Penesb, 2003.

SILVA, Petronilha Bestriz Gonçalves e SILVÉRIO, Valter Roberto(orgs). Educação e Ações Afirmativas:entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2003.

QUEIROZ, DelceleMascarenhas. Universidade e Desigualdade:brancos e negros no Ensino Superior. Brasília: Liber Livro Ed., 2004.