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1968: a experiência de um movimento nacional

1968: a experiência de um movimento nacional

Introdução:

Pouco se sabe sobre a experiência da UNE de 1968. Os depoimentos sobre o ano mais importante do movimento estudantil brasileiro, em geral fazem referências de algumas manifestações regionais que ganharam grande significado, em particular a passeata dos 100.000 no Rio e as manifestações de São Paulo. A importância dessas mobilizações é inegável, visto a concentração de Universidades nestes dois estados e o grande número de estudantes existentes. Mas o que talvez tenha sido mais importante para a sobrevivência quase exclusiva na memória social é o papel político destes estados e a existência neles de uma imprensa de caráter “nacional” que de certa forma lhe deu espaço e divulgação. Ao contrário, são desconhecidas, por outro lado, importantes manifestações regionais como a mobilização massiva dos estudantes secundaristas baianos, em 1967, que de certa forma foi a “escola” de onde a diretoria da UNE e as entidades regionais tiraram as experiências que impulsionaram para a generalização das mobilizações nacionalmente. Também são praticamente desconhecidas as manifestações estudantis de Minas Gerais que foram importantes atores na reorganização da UNE mantendo erguidas as bandeiras da UNE no pós 64 e onde a repressão foi feroz. Do mesmo modo mobilizações importantes ocorreram em Curitiba, Fortaleza, Recife e Rio Grande do Sul, Pará, por exemplo, para citar apenas algumas, que praticamente não aparecem e não são comentadas (ou o são apenas rapidamente) nos livros e publicações que falam da UNE de 1968. Não se fala também da ação organizada da UNE e de sua diretoria, que foi decisiva na extensão das mobilizações a todo país e em sua coordenação. Neste artigo, falamos um pouco sobre isto. Nossa intenção é apontar alguns elementos e pistas para várias iniciativas de pesquisadores que procuram recompor a experiência do movimento estudantil em todas suas cores.

1968: a experiência de um movimento nacional

Pouco se sabe sobre a experiência da UNE de 1968. Os depoimentos sobre
o ano mais importante do movimento estudantil brasileiro, em geral
fazem referências de algumas manifestações regionais que ganharam
grande significado, em particular a passeata dos 100.000 no Rio e as
manifestações de São Paulo. A importância dessas mobilizações é
inegável, visto a concentração de Universidades nestes dois estados e o
grande número de estudantes existentes. Mas o que talvez tenha sido
mais importante para a sobrevivência quase exclusiva na memória social
é o papel político destes estados e a existência neles de uma imprensa
de caráter “nacional” que de certa forma lhe deu espaço e divulgação.
Ao contrário, são desconhecidas, por outro lado, importantes
manifestações regionais como a mobilização massiva dos estudantes
secundaristas baianos, em 1967, que de certa forma foi a “escola” de
onde a diretoria da UNE e as entidades regionais tiraram as
experiências que impulsionaram para a generalização das mobilizações
nacionalmente. Também são praticamente desconhecidas as manifestações
estudantis de Minas Gerais que foram importantes atores na
reorganização da UNE mantendo erguidas as bandeiras da UNE no pós 64 e
onde a repressão foi feroz. Do mesmo modo mobilizações importantes
ocorreram em Curitiba, Fortaleza, Recife e Rio Grande do Sul, Pará, por
exemplo, para citar apenas algumas, que praticamente não aparecem e não
são comentadas (ou o são apenas rapidamente) nos livros e publicações
que falam da UNE de 1968. Não se fala também da ação organizada da UNE
e de sua diretoria, que foi decisiva na extensão das mobilizações a
todo país e em sua coordenação. Neste artigo, falamos um pouco sobre
isto.

Diversos fatores estão na origem das manifestações estudantis de 68 no Brasil.

É inegável que elas parte de um fenômeno de abrangência mundial já que
foram simultâneas às mobilizações estudantis na França, no México, nos
EUA, na Alemanha e no Japão, para citar apenas algumas das mais
importantes.

Alguns fatores contribuíram para elas ocorressem. Por um lado elas
estão relacionadas a uma certa fatiga, que começava a se sentir, do
processo do crescimento econômico do pós-guerra. Este crescimento tinha
criado uma realidade econômica nova, mas se mostrava incapaz de
promover uma distribuição de renda e resolver problemas sociais,
frustrando as expectativas que tinha gerado. Por outro lado, a “revolta
estudantil”, como chegou a se chamar, era estimulada pela emergência de
novas alternativas de esquerda em escala internacional, estimuladas
pela vitória e consolidação da revolução cubana e pelo sucessos da luta
revolucionária no Vietnam e na Indochina, além da criação da
Organização Latinoamericana de Solidariedade (OLAS) com sua bandeira de
“criar um, dois, três Vietnãs...”

Estes fatores encontraram uma massa estudantil em crescente em número
(pela ampliação do número de universidades e escolas) e desapontada com
a educação em crise e com uma sociedade “moralmente enferma”.

A educação tradicional, em geral, e a universidade arcaica com
chamávamos na época, não era capaz de responder nem mesmo as
necessidades de formação técnica de mão de obra colocada pelo
capitalismo em desenvolvimento, muito menos satisfazer os objetivos
humanistas e sociais que se esperava da educação.

Por outro lado o desenvolvimento dos meios de comunicação e a
concentração urbana tornavam visíveis a “dupla moral” da sociedade,
onde se pregava uma moral que já não era praticada. A sociedade
capitalista com sua incitação aos “prazeres” do consumo, a liberdade
individual, entrava em contradição com a moral conservadora. Se a
contradição não era percebida para os mais velhos habituados a esta
dupla moral, para os jovens não tinha nenhum sentido este tipo de
hipocrisia. Isto os levava a desconsiderar ambas e constituir sua
própria moral, dando espaço praticamente por toda a parte para as
minorias mais diversas, para o “direito a experiência”, para bandeiras
contra qualquer tipo de opressão (“é proibido proibir”) e por liberdade
sexual.

Do ponto de vista particular em nosso país, passávamos um momento onde
a pequeno-burguesia em particular, começava a manifestar timidamente
seu descontentamento estimulado por um movimento estudantil cuja
vanguarda centrava suas ações em manifestações políticas de rua
desafiando a Ditadura. Isto abria uma discussão das classes dominantes
e inclusive dentro dos militares sobre dois possíveis caminhos: o de
buscar a institucionalização da Ditadura abrindo alguns canais
democráticos (redução da Censura, maior espaço para o jogo político,
etc.) para tentar atrair e neutralizar as camadas médias; ou
endurecer...

Foi neste ambiente que se processou a mobilização estudantil de 1968 no
Brasil. As condições eram favoráveis as mobilizações. Mas faltava uma
variável capaz de favorecer a sincronização das iniciativas estimuladas
por este ambiente, e a sua construção como um movimento nacional. E
esta variável, apesar de todas divergências que existiam entre as
lideranças, foi sua capacidade de estabelecimento de uma unidade de
ação na prática. E para isto a UNE e suas estruturas de organização
(Executiva Nacional, Congresso, Conselhos, UEEs, DCEs e Grupos de
Trabalho) tiveram um papel fundamental.

A Une antes de 68

Uma intensa luta política e ideológica se desenvolveu na vanguarda
estudantil no período posterior ao golpe de 1964. Nesta luta política
esta vanguarda colocou em cheque a chamada “esquerda reformista” como
era então caracterizada a política do PCB e formou o que passou a ser
chamada de “esquerda revolucionária”.

No período imediato posterior a 1964 a hegemonia da Ação Popular, com
seu “Movimento contra a Ditadura” (MCD), era inconteste. Nesta época,
até pela grande repressão, mas principalmente pelo privilégio quase
exclusivo dado as ações políticas de rua, a mobilização era
praticamente de setores de vanguarda. Na oposição a esta posição se
encontrava principalmente o PCB que propunha o privilégio quase
exclusivo das lutas específicas estudantis. A Política Operária e o
Partido Comunista do Brasil, na luta política contra o “reformismo” do
“Partidão”, terminavam por se aliar a AP.

Em 1966/1967 começa uma modificação da correlação de forças com a luta
interna dentro do PCB que termina por levar a ruptura dos setores mais
importantes de suas bases estudantis, particularmente em São Paulo, Rio
de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, influenciados pelo
surgimento internacional de uma esquerda revolucionária formada sob o
impacto da revolução cubana, do Vietnam e da OLAS, e no país pela
Política Operária, PC do B e pela AP. Nesse período as mobilizações são
basicamente de vanguarda e co raras exceções não passam de algumas
centenas de estudantes os que fazem passeatas, sempre reprimidas, e
confrontam a repressão

Em agosto de 1967, se realiza em um convento de padres na cidade de
Valinhos, Estado de São Paulo, o 29o Congresso da UNE. A diretoria
eleita foi uma composição de esquerda revolucionária, com presidente e
3 diretores da AP, 3 diretores da Política Operária (PO) e 3 das
Dissidências Internas Regionais (DIs) do PCB (1 do RJ, 1 de SP e 1 do
RS).

No Congresso foi aprovada a “Carta Política da UNE”, dedicada a uma
análise da situação internacional, da situação nacional e ao
estabelecimento de um programa geral. A modificação que o XXIX
Congresso provocou foi o resgate da bandeira das lutas específicas,
tentando retirá-las daqueles que procuravam dar-lhes um conteúdo
legalista e reformista.

“Era necessário lutar também contra aqueles que diziam que a ‘luta
específica é reformista e a luta política é revolucionária’. Era
necessário compreender que tanto a luta política quanto a específica
poderiam ter uma condução reformista ou revolucionária. E o Congresso
procura então representar uma alternativa de condução das lutas
específicas, de modo da vinculá-las a uma luta política contra a
Ditadura Militar” (História da UNE, 1980: 66-70)”.

Os eleitos para a nova diretoria foram como presidente Luiz Gonzaga
Travassos da Rosa (AP-SP), e como vices Nilton Bahlis dos Santos (DI -
Rio Grande do Sul) José Roberto Arantes de Almeida (DI - São Paulo),
Luís Raul Machado (AP - RJ), Jacques Zajdsznajder (DI - Rio), José
Carlos Mata-Machado (AP - Minas Gerais), José Carlos Moreira (AP -
Pernambuco), Peri (PO - Bahia), Jari Cardoso (São Paulo) e Edson (Minas
Gerais). Como já foi dito, “um presidente e nove vices, um grupo de dez
pessoas que passou a utilizar nomes frios, dirigentes de uma entidade
sem sede, sem patrimônio, sem arquivos e sem infra-estrutura, a não ser
aquela das entidades estaduais” (Sanfelice, José Luís. Movimento
Estudantil: a UNE na resistência ao golpe de 64. São Paulo: Cortez:
Autores Associados, 1986).
.
Ainda em Valinhos, foi feita uma rápida reunião de articulação da
Diretoria, e se decidiu que os novos diretores se dividiriam e iriam
“levar as decisões do 29º Congresso às bases estudantis de todo o
país”. Depois de passar um mês, dando informes sobre as decisões do
29.o Congresso em reuniões mais ou menos massivas nas principais
universidades do país, os 10 diretores se encontraram em sua primeira
reunião, durante dois dias no Rio de Janeiro, para organizar a
diretoria e planejar a sua ação na gestão que se iniciava.

Apesar das divergências de posições políticas e de que o deslocamento
dos diretores se dava em grande parte por iniciativa de suas tendências
estudantis, a direção da UNE de 1967/1968 conseguiu na maior parte da
gestão de maneira coordenada e com decisões tomada por decisão da
maioria.

Já nos primeiros meses, quando seus diretores ainda se apresentavam
pelo país, esta diretoria viveu sua primeira grande experiência de
mobilização de massas. E elas aconteceram na Bahia, onde estudantes
secundaristas começaram uma luta contra a Lei Orgânica. Uma intensa
agitação começou a se desenvolver praticamente em todas as escolas.
Esta mobilização de milhares de estudantes foi ganhando as ruas dos
bairros e da cidade, e luta que começara em torno de questões
tipicamente estudantis foi ganhando um conteúdo político a partir de
sua própria dinâmica no confronto com a política educacional e a
repressão da Ditadura.

A preparação das mobilizações de 1968

Apesar das mobilizações secundaristas na Bahia não terem sido
convocadas pela UNE, dois de seus diretores (Luis Raul e Peri)
terminaram por participar na liderança do movimento. A experiência
destas mobilizações foi intensamente discutida na direção da UNE e
entre as lideranças estudantis, nas discussões de preparação do
Conselho Nacional da entidade que se realizou em fevereiro de 1968, com
representantes de UEEs e DCEs.

A Ditadura Militar estava dando sua resposta a crise da Universidade,
que não respondia as necessidades de formação de mão de obra para o
mercado. Com o Acordo Mec-Usaid, ela propunha a privatização da
Universidade. Para criar uma opinião favorável a aceitação de sua
política a Ditadura corta verbas do ensino, aprofundando a crise e
praticamente levando o sistema educacional à falência, começa a cobrar
Anuidade dos estudantes (inicialmente de caráter simbólico para criar o
hábito) e restringe as vagas nos vestibulares criando a figura dos
excedentes (que passavam no vestibular mais não tinham vaga).

A UNE também oferece sua resposta. A experiência da Bahia mostrava na
prática que se manifestando, de forma independente, na luta por suas
reivindicações, os estudantes podiam assumir uma dinâmica de luta
contra a política educacional do governo que se desdobrava em uma luta
política contra a Ditadura e a repressão.

O Conselho da UNE de início de 68 define assim, como centro da
mobilização, a luta contra a política educacional do Governo e contra o
Acordo Mec-Usaid, Suas resoluções apontava o caminho das luta por
reivindicações específicas centradas em 3 bandeiras: Mais Vagas, Mais
Verbas para a Universidade, e contra as Anuidades. Por outro lado
define a necessidade de uma estruturação e massificação do movimento
estudantil em torno de suas entidades e em Grupos de Trabalhos (GTs)
como organizações de base para a mobilização dentro das Universidades e
nas lutas de rua, permitindo mantê-las apesar da repressão com
processos de dispersão e reagrupamento.

Esta estratégia, nos meses seguintes, leva a um processo de
sincronização do movimento, favorecendo que as entidades estudantis
ganhem um caráter massivo, e que se crie um ambiente de intensa
agitação nas universidades. A intensificação das mobilizações, em graus
e ritmos diversos, se desenvolve então em todo o país, com picos ora
numa ou em outra região. As mobilizações estudantis que explodiam por
toda a parte no mundo, nesta mesma época, vêm ainda estimular o seu
desenvolvimento.

Mas este crescimento começa a colocar novos problemas. A radicalização
política do movimento estudantil, atuando de forma independente e
atraindo camadas da pequena burguesia, começa a chegar em um impasse,
já que ele não tinha capacidade de derrotar a Ditadura. O movimento
estudantil atraindo professores e funcionários, reivindicando a
autonomia universitária e criando comissões paritárias de estudantes,
professores e funcionários, disputa o poder dentro da Universidade. Por
outro lado o crescimento das mobilizações em muitos lugares consegue
conquistar as ruas e neutralizar a repressão, que fica acompanhando a
distância e apenas intervindo às vezes, quando a manifestação já estava
se dispersando.

Mas o movimento estudantil não tem condições de impor sua vontade.
Nestas condições reaparecem com força as divergências entre as
diferentes alternativas das tendências: alguns apontam o caminho da
radicalização das lutas de rua contra a Ditadura, com a expectativa de
acumular forças para derrubá-la; outros apontam o caminho da violência
armada de vanguarda ou de massas; outros ainda propõem a radicalização
da luta disputando o poder dentro da Universidade e buscando contribuir
para uma embrionária reorganização das lutas operárias que começavam a
se manifestar nas Greves de Osasco e Contagem e na organização das
oposições sindicais. Do mesmo modo, do outro lado, aparecem
divergências no interior do bloco de poder: liberalizar ou endurecer.

Enquanto ainda se desenvolviam manifestações em diversas regiões do
país, a diretoria da Une em meados do ano de 68, se reúne para
organizar o XXX.o Congresso e coloca nele as esperanças de resposta
para a continuidade do movimento e de reorganização de sua Unidade.

O Congresso da Une

O XXXo Congresso da Une foi concebido em quatro fases:

1) Debate nas escolas e eleição dos Delegados diretamente na Base;
2) Congressos Regionais de amadurecimento das discussões;
3) Congresso Nacional fechado realizado em São Paulo;
4) Apresentação das Resoluções às Bases.

A estrutura do congresso demonstra já uma mudança em relação aos
congressos anteriores realizados na clandestinidade. O que se pretende
agora é consolidar a UNE enquanto uma representação estudantil de
caráter massivo com a base estudantil participando diretamente
nasdiscussões das teses apresentadas ao congresso e nas decisões.

A orientação da diretoria da UNE era de, onde fosse possível, organizar
a discussão das propostas políticas do congresso em assembléias abertas
e massivas nas Universidade, e escolher os delegados com representação
proporcional a participação e posicionamentos. Onde isto não era
possível se deveria no mínimo se eleger os delegados em reuniões
fechadas e nos GTs, organização da vanguarda estudantil nas escolas.

Esta concepção aprovada unanimemente pela diretoria refletia a
compreensão que a UNE entrava em uma nova fase onde ela não era mais o
“prêmio” de uma disputa e negociações entre tendências de caráter
político-partidário, mas uma entidade realmente de massa apesar
colocada na ilegalidade pela Ditadura.

Julgávamos que com as mobilizações massivas de 68 criáramos as
condições para dar este passo e que ainda que realizássemos a fase de
reunião nacional fechada, poderíamos garantir a representatividade dos
estudantes nas fases anteriores. O que não compreendemos naquele
momento e só percebemos com a dinâmica do congresso, é que a UNE já não
cabia mais em um Congresso fechado. Que o número de delegados,
conhecidos e eleitos abertamente, com a representatividade que ganharia
o congresso cresceria tanto que não seria mais possível manter qualquer
caráter conspirativo.

Os diretores tinham ido para as bases para organizar o congresso junto
com as entidades locais e de base; as assembléias e debates se
multiplicavam e de repente o número de delegados já passava de 800.
Algumas discussões ainda são feitas entre diretores sobre a
possibilidade de fazermos a fase do congresso nacional aberta, no
CRUSP. Mas a engrenagem já estava em marcha e dificilmente
conseguiríamos consenso para uma mudança de rumo. Se tentássemos
poderíamos quebrar a entidade...

... e nos reunimos no Congresso com a esperança de que a Ditadura não
encontrasse um consenso para reprimi-lo e prender um número tão grande
de lideranças estudantis.

A queda do congresso e as repercussões da prisão de quase 1000
lideranças estudantis mostravam o impasse da co-relação de forças
apresentava. As manifestações dos delegados dentro da prisão (que
fizeram greve de fome para quebrar a incomunicabilidade), dos
estudantes que explodiram em manifestações por todos o país, e a
mobilização de outros setores populares ajudaram a apressar a
libertação de quase todos os presos de Ibiúna. A ditadura manteve
presos apenas menos de uma centena de estudantes, àqueles mais
evidentes, lideranças regionais como Vladimir Palmeira, José Dirceu,
Jean Marc entre outros e os diretores nacionais da entidade.

Escaparam, graças a fuga e uso de identidades falsas apenas três
diretores da UNE: o Luis Raul, o Arantes e eu. Por acaso de três
posições diferentes e na reunião de diretoria, foram apresentadas três
propostas de como eleger a nova diretoria. O Luis Raul propunha um novo
congresso clandestino com a mesma configuração de antigamente; o
Arantes propunha eleger a diretoria em congressos regionais e somar os
votos nacionalmente; e eu, propunha uma “fuite en avant” (fuga para a
frente), um processo de eleição direta nas escolas o que colocaria a
defesa da UNE diretamente nas mãos da base estudantil e obrigaria a
repressão a se dispersar.

As propostas decorriam de posições políticas e avaliações diferentes do
quadro político que se apresentava na vida do país. A corrente do
Arantes começava a ver a possibilidade de responder ao endurecimento do
regime militar pela luta armada; a minha tendência julgava ser possível
oferecer uma resposta pelo aprofundamento da organização e
representatividade do movimento[2], para manter as mobilizações mesmo
com um endurecimento do regime, e acumulando forças para desdobramentos
futuros; por último, para a corrente do Luis Raul, o movimento
estudantil devia continuar ido as ruas e continuar golpeando a
Ditadura, apoiando-se na pequena burguesia.

O Conselho da UNE, chamado a tomar a decisão sobre isto, deliberou pela
posição de Arantes. E quase na clandestinidade, sem representatividade
e conhecimento dos estudantes, foi eleita uma nova diretoria,
praticamente desmantelada e dizimada pela repressão em pouco tempo.

Aqueles estudantes que se mobilizaram por toda à parte levantando suas
bandeiras específicas, disputando o poder no interior da Universidade,
indo as ruas por suas lutas específicas e garantindo sua mobilização
apesar da repressão da Ditadura, não conseguiam garantir a
sobrevivência orgânica de suas entidades. Mas aquelas mobilizações
permaneceram na história do país e na memória de sua vanguarda até
serem retomadas quase uma década depois. Significaram também a
formação, a educação política e a experiência de organização de uma
geração de brasileiros que continuaram lutando de várias formas na
clandestinidade e que depois ofereceram sua experiência para a
reorganização das lutas e a democracia no país.

[1] Quando Otávio Luiz Machado me convidou a escrever este artigo ele
me perguntou sobre o livro História da UNE. Comentei que não via
importância neste livro, apesar de ter conseguido depoimentos de vários
dirigentes da década de 60. Apesar dele ter uma tiragem de 3000
exemplares, pensava que pouco impacto ele tivera já que não via
referências ao livro nas notícias e artigos sobre 68 que eu tomava
conhecimento. Posteriormente a sua pergunta, fiz uma pesquisa na
Internet e descobri que vários pesquisadores e livros sobre a UNE fazem
referência ao livro, já que ele é um dos poucos documentos que traziam
depoimentos de dirigentes de várias gestões da UNE em uma época que
eles não davam entrevistas em jornais e televisão. Mudei então de
opinião: acho que ele cumpriu seu papel.
O livro sobre a UNE foi uma das formas de colaboração que estabeleci
com as diretorias que reorganizaram a UNE nos anos 1979/1982 a partir
de uma solicitação, aos ex- Diretores da entidade que estavam no
exílio, feita por Rui César em um Congresso da Anistia realizado em
Roma no início de 1978. Ele solicitou que voltássemos para ajudar na
reorganização da entidade e eu retornei às vésperas da eleição da
Diretoria da UNE, no final de 1979.
Fiz então inúmeras palestras e percorri, com lideranças da época, salas
de aula falando da História do Movimento Estudantil e da UNE. Estas
atividades me levaram a organização do livro em colaboração com a
entidade.
Na época participei também da ocupação simbólica do prédio da UNE como
resposta às ameaças do Governo de reprimir as eleições da diretoria da
entidade. Era um pouco a mistura de duas épocas. Após as eleições
participei da primeira reunião da nova diretoria e propus que ocupassem
definitivamente o prédio da entidade. Os diretores me ouviram e ficaram
de discutir o assunto. Minha idéia era que a diretoria e um grupo de
estudantes ocupassem e se entrincheirassem no prédio chamando os
estudantes para se incorporar e garantir a ocupação.
Esperava que isto acontecesse a qualquer momento. Passaram-se, no
entanto alguns meses e não tive retorno da proposta ou percebi qualquer
movimentação com este objetivo até o momento quando os jornais
estamparam notícias que os estudantes reunidos em um conselho da UNE na
Bahia tinham decidido retomar o prédio da entidade. Alguns dias depois
a polícia ocupou o prédio e o mais rapidamente possível começou a
demolição.
[2] Minha tendência se chamava Universidade Crítica e o fato de ser sua
principal levava o pessoal de outras tendências a brincar me chamando
de “Reitor da Universidade Crítica”.
A Universidade Crítica se constituiu como tendência formal no bojo de
alguns movimentos estudantis de 1968 no Brasil que propunham a
organização de comissões paritárias de estudantes, funcionários e
Professores para disputar poder no interior da Universidade e
desenvolver uma crítica ao conteúdo de ensino. Sofríamos, também, uma
certa influência dos movimentos estudantis de maio na França que
contestavam o próprio sistema educacional e da Universidade Crítica de
Berlim que colocavam sobre crítica, paradigmas da ciência e da
sociedade capitalista industrial.

Publicado em 21 de Setembro de 2007
Autor: Nilton Bahlis dos Santos – Vice-presidente da UNE em 1967/1968,
Organizador do livro “História da UNE”, publicado em 1980 pela Editora
Livramento[1].

Cientista da Informação e Pesquisador da FIOCRUZ, especializado em sistemas complexos e na Internet